sábado, 1 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20613: Os nossos seres, saberes e lazeres (375): A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Visitar regularmente um país, e sobretudo a sua cidade principal, com uma regularidade de 4 décadas, quase sempre em viagens de entusiasmo, deixa marcas. Primeiro descobrir Bruxelas, assentar referências e âncoras: os museus, as livrarias, as férias da traquitana, os parques. Depois aprender a usar o comboio, ir à Antuérpia ou a Gand, depois Namur e Liège, etc. Aprender, com o guia na mão a distinguir as belezas de diferentes comunas, Ixelles é diferente de Saint-Gilles e Schaerbeek de Uccle.
Um amigo de peito acolheu-me em Watermael-Boitsfort, ajudou imenso, contei com a sua companhia para conhecer os arredores de Bruxelas, as pequenas aldeias, percorrer o espetacular parque de Tervuren.
É de todas essas marcas que me deixam saudades que aqui vos falo.

Um abraço do
Mário


A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (3)

Beja Santos

Naqueles primeiros anos de digressões por Bruxelas, ainda sem amizades cimentadas, preparava previamente o meu dia de férias, de um modo geral viajava ao sábado, tinha o domingo por minha conta, os dias subsequentes pertenciam aos serviços da Comissão Europeia ou à vida da associação de consumidores, de que fui um dos seus diretores. Às vezes era ao contrário, ia quinta-feira à noite, trabalhava sexta-feira, o sábado pertencia-me, regressava nessa noite, havia duas filhas pequenas que requeriam muita atenção. A floresta de Soignes é de uma enorme extensão, só a conheci mais tarde, quando passei a aboletar-me em casa do meu amigo André Cornerotte, passeámos muitas vezes em qualquer das estações do ano. A floresta é muito procurada pelos pedestres, pelos cavaleiros e por quem tem cães. A floresta estende-se de Uccle a Waterloo e de La Hulpe a Tervuren, são mais de 4360 hectares. Serei muito ignorante, mas não conheço outra grande metrópole que beneficie de um maciço arborizado ou coberto florestal com estas dimensões. Recomendo a quem visite Bruxelas que se meta num transporte público, de preferência o metropolitano (saída na estação Herrmann-Debroux) e entra diretamente nas belezas desta floresta, se tiver bom tempo prepare um piquenique, o melhor do bucolismo estará por sua conta.

Floresta de Soignes.

Nos preparativos da primeira viagem, alguém advertiu que a cervejaria mais típica da cidade se chamava A la mort subite, noutros tempos por ali passava com alguma frequência o mítico Jacques Brel. Fiquei impressionado, viera a pé não sei de onde, o tempo não estava famoso, procurei um lugar, mirei à volta, chamou-me a atenção uma cerveja cor de sangue, era uma kriek, saborosíssima, tinha o fim de tarde por minha conta, fechei os olhos, ouvi conversas, abri os olhos para reter os aspetos assombrosos da decoração. Mesmo que não goste de cerveja, não deixe de ir A la mort subite, peça um croque monsieur e talvez um chocolate e deixe-se estar, está ali uma Bruxelas intemporal.

Fachada do café A la mort subite.

Em nenhuma circunstância, um aficionado de banda desenhada pode deixar de visitar a sua Meca, belgas e franceses são os sumo-sacerdotes da BD ocidental, aqui estão elementos essenciais dos grandes momentos desta arte, aqui se podem reverenciar os trabalhos de grandes senhores como Hergé ou Edgar P. Jacobs, é um estendal de desenhos de primeiríssima água, reproduções de peças mitológicas como o foguete em que Tintin foi à lua ou a imagem de Lucky Luke. Se é devoto, prepare-se para uma longa e agradável peregrinação, além disso há as compras, ou de relíquias dessas tantas figuras ou álbuns irresistíveis. Não sairá daqui dececionado, acredite.

O centro belga de banda desenhada.

Já se disse que Bruxelas possui um alfobre invejável de chocolatarias, livrarias, museus, monumentos, galerias de compras e edifícios do mais valioso património. Aliás, estar em Bruxelas no dia em que se celebra o património é uma festa inesperada, tanto se pode entrar em templos maçónicos como visitar instalações de grandes fábricas do passado. Há grandes surpresas, por exemplo o velho mercado de Saint-Géry, hoje um espaço multiusos, muito aprazível, com exposições, cafés e lojas onde se podem adquirir publicações sobre património. Num desses passeios iniciais, surpreendeu-me a sumptuosidade de uma fachada que até lembrava um daqueles edifícios da Grand-Place, era a Maison de la Bellone, vem dos finais do século XVII, tem ornamentação barroca. La Bellone é a deusa da guerra. É uma casa de espetáculos que abriga um variado conjunto de associações culturais. Da primeira vez, limitei-me a ficar especado diante da fachada, depois perdi a vergonha e pedi autorização para andar lá por dentro a bisbilhotar. E fui sempre bem-sucedido.

A casa Bellone.

Alguém que vá uma ou duas vezes a Bruxelas e que se limite a participar numa conferência ou numa reunião de trabalho não terá oportunidade de encarar um edifício colossal que no seu tempo foi dos maiores do mundo, o Palácio de Justiça. Ao longo destas décadas de visitas encontrei-o sempre com algumas obras, ou na cúpula, nos vestíbulos, nas faces laterais, enfim, vi sempre o colosso com andaimes. É impressionante, até porque andar dentro do casco histórico ele persegue-nos sempre, havemos sempre de deparar com uma nesga desta monumentalidade. Há mesmo um livro sobre Bruxelas que arranca com a história do Palácio de Justiça, uma empresa faraónica que jamais terá conclusão, acreditem.

O Palácio de Justiça.

Fiz amizade com o Monte das Artes por diferentes razões. A mais importante é que lá do topo da escadaria goza-se um panorama ímpar do centro. Ali perto, estão importantes centros culturais, a Biblioteca Real, o Palácio das Belas-Artes, não só uma grande casa de música como ali se acolhem exposições fora de série, mais acima o Museu dos Instrumentos Musicais no velho edifício do Old England, o Palácio de Carlos da Lorena, mais acima o hoje Museu de Arte Moderna ou Museu Magritte, que confina com o Museu de Artes e História da Bélgica. Descendo o Monte das Artes estão galerias com alfarrabistas e de arte, décadas atrás era uma área de grande atração, havia ali a Posada Books, uma riquíssima livraria, há muito que desapareceu. Naqueles anos 1970-1980 saía-se da gare central e tinha-se um descampado pela frente, caminhava-se até à Igreja da Madalena e depois descia-se em direção ao centro da cidade. Volto atrás para referir que ao lado da Galeria de Arte Alberto I, na Rua da Madalena, continua aberto um alfarrabista e quinquilheiro que visitei vezes sem conta. Continuo a ir lá cumprimentá-lo, mas prefiro os preços mais apetitosos da Feira da Ladra: é o saber de experiência feito.

Monte das Artes.

Em muitas ocasiões, quando vim a Bruxelas para conferências, a Comissão Europeia punha-nos em hotéis de várias estrelas, nos bulevares principais. Caso não chovesse, ou mesmo com friagem, era um prazer imenso ir a pé até ao quarteirão europeu. Tinha que se atravessar o Parque Real, em frente ao palácio onde o rei trabalha e concede audiências. É um parque à francesa, muito bem desenhado, com bela estatuária, belas fontes a esguichar água. Não perdia este passeio, no verão enche-se de famílias, é uma delícia para as crianças.

Parque Real de Bruxelas.

Num dos guias que adquiri já em Bruxelas vi uma referência a Laeken e a dois pavilhões visitáveis, o chinês e o japonês, Leopoldo II comprou estas relíquias na Exposição de Paris de 1900. Como a primeira viagem fora penosa, um elétrico demorado, a atravessar artérias desinteressantes, e uma passeata sob sol inclemente, só lá voltei na companhia de uma grande amiga que aproveitou a ocasião para me mostrar as estufas reais. Não estavam visitáveis, então, mas impressionou-me muito as estruturas, agora sou um visitante assíduo, quem gosta de floricultura tem muito que se entreter.

Estufas reais no Palácio de Laeken.

Muitos anos já eram passados em deambulações em Bruxelas e eu ainda não tinha atinado naquela verdade que Bruxelas é feita de uma manta de retalhos com muita água pelo meio, a Bruxelas medieval estava repleta de embarcações. No mundo contemporâneo foram feitas imensas operações para abobadar esses caudais de água, mas restam canais. Estive mesmo num curso em que a organização promotora ofereceu um passeio pelos canais de Bruxelas, deu para avaliar a importância do seu significado económico, mas não são beleza nenhuma, os meios envolventes são pouco cativantes.

Um dos canais de Bruxelas.

Tal como o Palácio de Justiça, a Basílica do Sagrado Coração vê-se à distância, um pouco por toda a parte. Como Laeken, não é de acesso muito fácil. É o mais gigantesco templo Arte-Deco da Bélgica, roça a colossalidade, impressiona por fora, é muito frio por dentro. Visita-se e não apetece voltar, a não ser para disfrutar uma das mais belas panorâmicas sobre Bruxelas.

Basílica Nacional do Sagrado Coração.

É bem provável que estas informações sejam praticamente inúteis para a generalidade dos leitores, guardo na memória igrejas e outros monumentos que visitei ao longo destas décadas, por exemplo em Lovaina, Lierre, Antuérpia ou Bruges. Mas a Bélgica tem magníficas campinas, à volta de Bruxelas há pequenas e ternas igrejas medievais, há quintas, abadias inesquecíveis, castelos… Pois foi com o meu amigo André Cornerotte que visitei a Abadia de Orval, nas Ardenas, muito próximo da fronteira francesa, uma preciosidade. Bom, demos livre curso a estas recordações!

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 25 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20591: Os nossos seres, saberes e lazeres (374): A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (2) (Mário Beja Santos)

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