sábado, 25 de janeiro de 2020

Guiné 61/74 - P20591: Os nossos seres, saberes e lazeres (374): A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
A viagem de 1977 encetou uma relação afetiva, criou um lugar pleno de vínculos, rapidamente ir a Bruxelas significava trabalho aprazível e aventura. Ao princípio, eu estava confinado aos guias, entrava no Turismo para saber das exposições e espetáculos. Depois a sociedade digital alterou o acesso às informações, fizeram-se amizades. E convém ter sempre sorte, esta aqui nunca me abandonou.
Uma vez, aqui desembarquei ao princípio da tarde, deixei a trouxa numa albergaria e às dez para as seis encaminhei-me para a bilheteira da Ópera de Bruxelas, dentro de minutos começava "Tristão e Isolda", de Richard Wagner. A senhora lamentava-se, espetáculo esgotadíssimo, eu choraminguei, inadmissível, vir com o propósito de ir à Ópera, ainda por cima com dois cantores fabulosos, sair de mãos vazias. A senhora suspirava, havia uma hipótese que não recomendava, lá junto ao teto havia uns lugarejos com uma vista a pique, o som magnífico, mas era preciso ter cuidado com as vertigens, custava dez euros.
Paguei imediatamente, subi as escadas a correr, foram seis horas de delírio, o pior é que à meia-noite estava tudo fechado, era uma fome abrasadora, tudo se resolveu numa lojeca que vendia bananas e bolachas. Deitei-me com o estômago minimamente aconchegado, aquela récita tinha sido o maior manjar que Bruxelas me podia ter oferecido.
A sorte favorece os audazes.

Um abraço do
Mário


A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (2)

Beja Santos

O arrebatamento por Bruxelas data da primeira visita, em 1977. Guardei durante anos o caderno dos contactos estabelecidos, o nome de quem me recebeu na então Direção-Geral de Informação e me estabeleceu a série de contactos que se prolongaram durante oito dias úteis, de manhã até ao fim da tarde. Era um caderno onde se resumiam todas as visitas, os nomes das pessoas com quem contactava, a síntese das atividades, tudo o que importava ponderar para uma futura institucionalização da política dos consumidores. O caderno dessa viagem desapareceu, a maior parte dos nomes esvaiu-se, só se guarda referência das pessoas com quem durante anos sucessivos se manteve o contacto profissional. O que assalta à mente, de chofre, foi a impressão do Berlaymont, cheguei cedo, e antes de avançar para a receção mirei o edifício de diferentes ângulos, era impressionante, nunca vira tal estrutura metálica, tinha-se a sensação que o edifício estava pronto a levantar voo. Mais tarde, o edifício da Comissão Europeia encerrou para obras ciclópicas, arrancaram-lhe todo o amianto, deve ter ficado mais caro do que se o tivessem construído de novo, mas a maioria das vozes recusou a sua demolição, era o edifício-ícone que simbolizava o sonho criador de uma Europa de paz, como veio a acontecer. Depois de um encontro agradável mas formal, e com a promessa de que nos havíamos de rever na véspera do meu regresso a Lisboa, saí para a rua, tinha uma hora de avanço para o primeiro encontro, percorri uma avenida com o nome de rua, metia uma certa impressão naquela mistura caótica de novo com velho, embrenhei-me em ruas laterais, voltei, no fim de cada quarteirão a olhar para o fundo e depois em sentido contrário, na direção do Parque Real. Se é verdade que a Rue de la Loi não tem beleza nenhuma, guardo saudades de a ter percorrido nos alvores da manhã, por vezes altamente preocupado com discussões ou debates em que iria participar, aqui ou acolá, naquele tempo ainda não se podia falar num bairro europeu, era tudo disperso, passava-se ali o dia enterrado, e ao fim do dia esperava-nos um trânsito tumultuoso. Conheci a Rue de la Loi com sol e neve, chuva inclemente e dias primaveris. Ficou na minha vida como uma recordação inesquecível.

Edifício Berlaymont atual.

Rue de la Loi no poente e sem chuva.

A Igreja de Nossa Senhora da Capela, onde está sepultado Pieter Bruegel, o Velho, que habitava neste bairro castiço de Marolles, tem imponência exterior, gosto muito daquela altaneira torre sineira que aponta na direção da Rue Claes, ao fundo está a Feira da Ladra de Bruxelas, minha paragem obrigatória. Não conheci esta Place du Jeu de Balle na primeira visita, quando regressava, nos dias úteis, ao fim da tarde, percorria as ruas do centro histórico em todas as direções, a primeira grande descoberta foram as livrarias de livros usados, uma delas, perto da Ópera, estava aberta até às dez da noite, ali me entretive antes de regressar ao meu pequeno hotel.

Église Notre Dame de la Chapelle, Marolles.

Era na Rue Royale que a Organização Europeia de Consumidores tinha a sua sede. Fui muito bem recebido e, imagine-se, encontrei lá Teresa Santa Clara Gomes, que ali fazia voluntariado. Acredite o leitor ou não, aquela igreja ao fundo sempre a conheci fechada. Em 1996, numa das minhas deambulações, entrei numa loja de tapetes orientais, havia para ali promoções a sério, comprei um tapete nepalês que transportei ao ombro, pesadíssimo, hoje é impensável, nem entrava no avião. Não vou deter-me nas compras que fiz ao longo destas décadas. Numa visita de trabalho à Organização Europeia das Famílias, no Bairro d’Ixelles, na Rue Dublin, encontrei uma loja em liquidações, fui atraído por uma porcelana de Meissen, a senhora pediu-me um balúrdio, agradeci, depois a senhora entrou em confidências, estava semiarruinada com um filho toxicodependente, olhei para um quadro que tenho hoje à entrada da minha casa, um grande quadro a giz com uma floresta emaranhada e uma luz ao fundo numa casinha de campo, uma moldura talhada à mão, uma beleza. Comprei ao preço de chuva, vi-me na rua com cerca de dez quilos de madeira, um volume enorme. Ainda hoje estou para saber como entrei num avião da TAP com este volume descomunal.

Rue Royale.

Em 1987, estava eu já em estreita colaboração com a Confederação Europeia dos Sindicatos, organizou-se em Veneza uma conferência sobre normalização. Para minha surpresa, havia interpretação para português, já nessa altura coisa rara. Foi aí que começou a minha amizade com Nelly Alter, fazia interpretação em sete línguas. Sempre que estava em Bruxelas e passava por lá, exigia que a visitasse, a contrapartida eram livros em português, de preferência romances acabadinhos de sair. Vivia então na Avenue Georges Petre, na Comuna de Saint-Josse. Quando perguntei à Nelly como lá chegar, ela respondeu que devia sair na Place Madou. Fui inúmeras vezes jantar com a minha amiga, e quando tive oportunidade de fazer fins de semana, sempre que ela podia, damos belíssimos passeios. A Nelly vive em Namur, de vez em quando bato-lhe à porta, recebe-me com uma alegria esfusiante.

Place Madou.

Nas propostas turísticas para aquele primeiro fim de semana, a escritora Fernando Botelho sugerira-me a Casa de Erasmo, cheguei lá de autocarro, é um edifício encantador e depois da visita passeei e entrei numa espantosa beguina, as beguinas eram casas que recebiam viúvas ou senhoras com algumas posses, desde a Idade Média, com as suas casinhas e uma vida coletiva a preceito. Muitas vezes as beguinas eram enriquecidas com doações, ficaram autênticos museus. Espero voltar ao assunto, a partir de então andei sempre à procura de beguinas por onde quer que passeasse.

La Maison d’Érasme, Anderlecht, Bruxelas.

De autocarro, segui de Anderlecht, que é já na periferia de Bruxelas para uma visita que acalentava desde que organizara o eventual programa de lazer: o Museu Victor Horta, na Rue Americaine, na Comuna de Saint-Gilles. Devoto que sou da Arte Nova, Victor Horta é um dos arquitetos que mais admiro, Horta não se limitava a desenhar edifícios, concebia as artes decorativas desde a iluminação ao mobiliário, cuidava de todos os pormenores das escadarias, por exemplo. Passei aqui uma tarde admirável. Com a dispersão dos passeios, imagine-se, só lá voltei de novo, décadas depois, e continuei muito impressionado.

Musée Victor Horta.

Esta rua, sem beleza nenhuma, alberga um edifício da Comissão onde diariamente se realizam inúmeras reuniões, é possível olhar para um painel e encontrar todos os temas desde agricultura e pescas, passando pela ajuda humanitária até transportes e comunicações. Aqui vim muitas vezes, quer como funcionário público quer como militante associativo. Nunca esqueci uma reunião convocada pelos Serviços da Comissão, tinha a ver com a revisão da legislação da publicidade enganosa. Ia a reunião a meio e apareceu uma senhora que se identificou como representante da Grécia, tinha vindo para uma reunião sobre cosméticos, mas tinham-lhe pedido para aparecer por ali, tomar notas do que se dizia para transmitir aos competentes serviços. Disse isto com uma candura enorme, sorriu para toda a gente, não lhe ouvimos uma palavra mais…

Rue Froissart.

O Boulevard Anspach é um dos eixos principais do centro da cidade, terá sido majestoso até ao fim da II Guerra Mundial, depois a grande burguesia abandonou o centro, quem aqui reside são essencialmente imigrantes. Desde a primeira visita passou a ser um itinerário obrigatório por causa dos alfarrabistas, havia lá muitos até ao fim do século. Desapareceu um café onde se bebia um saborosíssimo chocolate, é do domínio público que os belgas estão na primeira linha da chocolataria.

Boulevard Anspach.

É só para saberem que passei aqui muito tempo e que gostaria de continuar a visitar este local onde é possível encontrar desde binóculos a caixas de costura, álbuns de viagens, livros e tudo quanto a imaginação oferece. Uma vez comprei aqui um álbum com fotografias de alguém que entrou em Vilar Formoso e visitou Lisboa em 1952, estava lá uma fotografia do Rossio que é uma joia. Gostava que este álbum ficasse numa instituição certa, mas não sei qual.

Place du Jeu de Balle, uma das Feiras da Ladra da minha vida.

Despeço-me com uma confissão. Não é a primeira, nem a segunda, nem a terceira vez que entro neste museu, este é o quadro que visito em primeiro lugar, é de uma beleza intemporal, não encontro palavras. Parece ser uma paisagem mediterrânica e a primeira vez que o olhei andei à procura do Ícaro, lá está ele em grande mergulho, perante a indiferença de quem está a arar a terra e do pastor que contempla os céus. Aquele veleiro parece uma caravela portuguesa e os tons turquesa do mar são surpreendentes. Só depois de estar aqui quase em oração é que vou visitar outros génios das Belas-Artes. Este é um dos quadros da minha vida.

La Chute d’Icare, de Bruegel, o Velho, Museu de Belas-Artes e História, Bruxelas.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20570: Os nossos seres, saberes e lazeres (373): A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (1) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Xico Allen disse...

!!!!!!!!!!!!!! que é que estas fotos interessam ao "Pessoal" da Guiné??