1. Notas de leitura:
Lucinda Aranha - O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim. Alcochete: Alfarroba, 2018, 165 pp.
Lucinda Aranha - O homem do cinema: a la Manel Djoquim i na bim. Alcochete: Alfarroba, 2018, 165 pp.
Continuando a nossa leitura do "romance" ou "biografia ficcionada" do homem dos sete ofícios que foi o Manuel Joaquim dos Prazeres, que nasceu (1901) e morreu (1977) em Lisboa, mas cuja decorreu, em grande parte, em África, em Cabo Verde e na Guiné.(*)
A autora chama "romance" ao seu livro, em parte para contornar as dificuldades que é escrever sobre alguém que nos é tão próximo: o pai, a mãe, a ama, as irmãs, os amigos de casa... É mais simples dizer-se que é um conjunto de histórias de vida, que giram à volta da figura do "africanista" Manel Djoquim, e das "matriarcas" da família, a Julinha, sua segunda esposa, e a "vovó Nené", a ama das filhas e depois cozinheira, vinda da Praia, Santiago, para Bolama e depois, já a seguir à II Guerra Mundial, para a casa de Lisboa.
Nomes de figuras mais íntimas (irmãs, cunhados, amigos e seus descendentes...) foram em parte trocados, para evitar suscetibilidades. Mas a nós, aqui, o que nos interessa são as andanças, por terras da Guiné, do "Manel Djoquim" (, como era conhecido o "homem do cinema", lembrou à autora nosso irmãozinho Cherno Baldé....).
Não vou dizer que é um "livro escrito a quatro mãos". mas tem, sem favor, algumas "dedadas" dos nossos amigos e camaradas da Guiné, do Valdemar Queiroz ao Carlos Geraldes, do Cherno Baldé ao Vital Suane (nomes, de resto, que são citados no livro, pelos seus contributos).
2. Um dos nossos camaradas que conheceu o "velho" Manel Djoquim foi o saudoso Carlos [Adrião] Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66). A Lucinda Aranha tentou contactá-lo quando estava a escrever o livro mas ele já tinha tendo morrido, em Viana do Castelo, em 5 de janeiro de 2012, vítima de ataque cardíaco, aos 70 anos, conforme foi noticiado no nosso blogue (**).
2. Um dos nossos camaradas que conheceu o "velho" Manel Djoquim foi o saudoso Carlos [Adrião] Geraldes (1941-2012), ex-alf mil da CART 676 (Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66). A Lucinda Aranha tentou contactá-lo quando estava a escrever o livro mas ele já tinha tendo morrido, em Viana do Castelo, em 5 de janeiro de 2012, vítima de ataque cardíaco, aos 70 anos, conforme foi noticiado no nosso blogue (**).
O Carlos Geraldes é citado no livro, a pp. 85, mas eu não encontrei essa crónica a que ele teria chamado "O dia de S. Cinema", alegadamente publicada no nosso blogue e também em "O Aurora do Lima". Não encontrei essa, mas encontrou outra, que, espero, tenha sido do conhecimento prévio da Lucinda Aranha. Vamos aqui republicar a parte que nos interessa, em que o Geraldes conheceu, em carne e osso, o "Manel Jaquim", em Pirada, sempre ansiosamente esperado no mato, e de que lhe falavam tanto o chefe de posto coomo o comerciante "M. Santos" (, ou seja, o célebre Mário Soares, de Pirada, por muitos considerado um "agente duplo"). Trata-se de uma das suas cartas, datada de Pirada, 3 de janeiro de 1965, e que é um verdadeiro regalo literário:
Pirada, 03 Jan. 1965
(...)
(...)
Mas, ah! É verdade! Também tivemos cinema por cá! Foi no dia antes da véspera de Natal.
De repente, precedido por uma multidão de miúdos em grande chinfrineira, apareceu na entrada da aldeia, uma grande carripana, um daqueles Ford-T, quase pré-histórico que, ostentava um pomposo dístico, pintado nas portas: “Cine-Guiné”. Ao volante, um velhote de chapéu à colonial na cabeça acompanhado por um negro.
Num abrir e fechar de olhos juntou-se uma pequena multidão que o saudava entusiasticamente enquanto ele estacionava aquela estranha traquitana mesmo no centro da aldeia. Imperturbável saiu e logo se dirigiu para uma das lojas comerciais onde parecia já ser esperado.
Era o Manel Jaquim, o famoso homem do cinema ambulante, de quem o M. Santos e o Chefe de Posto já tanto nos tinham falado que quase o considerávamos como uma personagem lendária.
Convidado a instalar-se em nossa casa, não se fez rogado, erguendo um leito de campanha, com o respectivo mosquiteiro, mesmo no meio do nosso quintal. Ao jantar, revelou-se um indivíduo muito patusco, conversador e filósofo. Apesar de já ter uma idade avançada [, 64 anos...], parecia irradiar uma impressionante força anímica.
Fiel ao velho estilo colonial, de largos calções de caqui azul-escuro, chapéu de cortiça, olhar felino, revelando uma sabedoria de velha raposa, o Manel Jaquim é um sobrevivente de outras eras e aventuras, ao estilo dos filmes de Tarzan e da macaca Cheeta, da nossa meninice.
Conhecia todos os trilhos da Guiné e tratava quase toda a gente por tu, completamente à vontade e com a maior franqueza. Numa época de guerra como esta que estamos agora a travar, cheia de emboscadas, minas e selvajaria, nada parece deter este velho descendente dos conquistadores de antanho. Não há recanto nenhum da Guiné que ele não conheça e vai a sítios onde a tropa até tem medo de passar ao lado.
Rápida e metodicamente montou a velha máquina de projectar de 16 mm, completamente portátil, relíquia que afirmou ter comprado aos americanos, como salvado da guerra do Pacífico e à qual dedica toda a atenção e carinho. Aproveitando a largueza do nosso quintal, montou ali mesmo a sala de espectáculo, com um enorme lençol branco a fazer de ecrã (que chega para o formato Cinemascópio).
A toda a volta do recinto colocou uma série de fios com lâmpadas eléctricas. A energia para tudo aquilo é fornecida por um pequeno, mas potente, gerador a gasóleo que também trazia com ele. Na entrada, pendurou meia dúzia de cartazes a anunciar a sessão de cinema para hoje, do Cine-Guiné. À noite o nosso quintal até parecia a Feira Popular.
Empoleirado em cima de uma enorme caixa que, também lhe servia de cofre, mestre Manel Jaquim, com uma impressionante carabina de caçar elefantes, pousada nos joelhos, começou a cobrar os bilhetes aos clientes que acorriam em massa.
Preços: 4$00 para os pretos; 10$00 para os soldados; 25$00 para os comerciantes e oficiais, mesmo para aqueles que, como nós, tinham emprestado o recinto. Cada qual providenciava o assento que lhe fosse mais cómodo ou sentavam-se mesmo no chão. Era engraçado observar a fila de clientes que se ia formando à porta do cinema, todos com os mais variados bancos e cadeiras à cabeça.
O filme, “Hércules e a Rainha ]da Lídia" [ 1959, com Steve Reeves], era mais um daqueles pastelões italianos sobre temas mitológicos mas que, curiosamente, faz sempre as delícias destas plateias, a quem o astuto Manel Jaquim procura contentar.
Apesar de a maioria dos espectadores ser analfabeta e também não perceber nada do que os actores diziam, inacreditavelmente todos pareciam entender a trama, não desviando os olhos ecrã, vibrando entusiasticamente com as proezas do grande herói da mitologia grega. [O filme pode ser visto aqui, legendado, em versão integral, no You Tube. Sinopse: Hércules vai a Tebas para ajudar o Rei Édipo a encontrar uma saída democrática e decidir qual de seus filhos herdará o trono. Mas o herói bebe da "Fonte do Esquecimento" e perde a memória, ficando prisioneiro da perversa Rainha Ônfale, da Lídia.]
Quando veio o final, aplaudiram maravilhados. (...)
3. Ficamos a saber, pelo Carlos Geraldes, os preços de alguns bens de consumo corrente que se praticavam em Pirada, de acordo com a sua Carta de Pirada, 15 de outubro de 1964:
3. Ficamos a saber, pelo Carlos Geraldes, os preços de alguns bens de consumo corrente que se praticavam em Pirada, de acordo com a sua Carta de Pirada, 15 de outubro de 1964:
(...) "A carne de 1.ª é a 150$00 o quilo e as bananas, de excelente qualidade, custam 10$00 cada grupo de 4. As galinhas variam entre 10$00 e 15$00 cada e os cabritos 50$00." (...)
Não esconde, por outro lado, a sua admiração pelo comerciante Mário Soares, um homem "providencial" que resolve tudo e tem tudo, até uma máquina de projetar filmes chamar. Éo M. Santos, na correspondência publicada no blogue: "Daqui em diante, sempre que mencionar esta personagem, designá-lo-ei pelo pseudónimo, M. Santos, para não suscitar quaisquer parecenças, com a figura pública actual que todos conhecem." (****)
(Continua)
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Notas do editor:
24 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20588: Manuscrito(s) (Luís Graça) (177): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte II
14 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20558: Manuscrito(s) (Luís Graça) (176): Manel Djoquim, o homem do cinema ambulante, o último africanista - Parte I
(**) Vd. poste de 3 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13022: Em busca de... (241): Fotos e histórias do cinema ao ar livre e do empresário Manuel Joaquim dos Prazeres, que deambulou pelo território entre 1943 e 1972 (Lucinda Aranha, filha e escritora)
(...) Em tempos, encontrei no vosso site umas crónicas escritas pelo Carlos Geraldes, uma das quais se intitula 'O Dia de S. Cinema'.
Entrei então em contacto com o Diamantino Pereira Monteiro que pôs o meu cunhado José Filipe Soares, que fez o serviço militar na Guiné, em contacto com o Geraldes. O caso é que sou filha do Manuel Joaquim, o personagem dessa crónica que tinha um cinema ambulante com o qual percorreu toda a Guiné entre 1943/70.
Era minha intenção escrever uma biografia do meu pai, projecto que então abandonei porque tinha entre mãos um outro livro que entretanto foi editado pela Colibri. Finalmente, a biografia do meu pai está praticamente acabada, mas não consigo resposta do Carlos Geraldes e também não o encontro como vosso seguidor. Faço-lhe, no entanto, referência no livro assim como ao vosso site. Espero não haver problema.
Também gostaria de poder contar com o vosso apoio, quaisquer informações, divulgação.
Muito obrigada,
Lucinda Aranha Antunes (...)
(***) Vd. poste de 3 de setembro de 2009 >Guiné 63/74 - P4892: Cartas (Carlos Geraldes) (5): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1965
(****) Vd. poste de 28 de agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964
1 comentário:
Lucinda Aranha
29 jan 2020 17:54
Luís,
A(...) .
Quanto al artigo do Carlos Gefaldez, ainda nunca tinha ouvido falar do vosso blogue, encontrei-o quando resolvi pesquisar na net 'cinema na época colonial' ou qualquer coisa do género.
Tirei uma cópia. Quando lrocurar as fotos vou procurar também o conto qje, aliás, fazia larte de uma colectânea. Caracterizava o meu pai como um homem idoso, de barbas brancas( que o meu pai nunca usou), transmontano.
Creio que pertendeu evitar problemas porque o meu pai não era velhote nem nada que se parecesse, sempre foi glabro e não era transmontano. O Esteves é que o era.
Também duvido dos preços dos bilhetes por excessivos e já agora do chapéu de cortiça.
Acho que o C Geraldes responde à tua dúvida sobre a máquina de projectar. Por outro lado, o C Geraldes fala de uma arma de caça mas não menciona nenhuma arma de guerra.
De qualquer modo tratarei de pôr estss dúvidas ao Pereira [, o genro do Esteves,] que muitas vezes lhe despachou filmes e barris de peles.
Lucinda
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