domingo, 29 de novembro de 2020

Guiné 61/74 - P21591: Bombolom XXIX (Paulo Salgado): "Dezasseis anos depois", um poema meu, que li em Santarém, no encontro anual da CCAV 2721, em Abril de 1986, onde esteve presente no final do almoço o Salgueiro Maia (1944-1992)


Guiné > Região do Oio > Olossato > CCAV 2721 (1970/72) > 1970 > O Alf Mil Cav Salgado, dando uma mãozinha ao pessoal dos serviços de saúde


Foto (e legenda): © Paulo Salgado (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem de Paulo Salgado (ex-Alf Mil Op Esp da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72), autor dos livros, "Milando ou Andanças por África", "Guiné, Crónicas de Guerra e Amor" e "7 Histórias para o Xavier":


Data - segunda, 26/10/2020, 16:14
Assunto . Um poema

Meu caro Luís Graça,
Meus Caros Editores,

Junto um poema que fiz em Abril de 1986. Li-o em Santarém no encontro anual da minha Companhia - CCAV 2721.

Esteve presente no final do almoço o capitão Salgueiro Maia. que veio dar um abraço à malta, em especial ao seu camarada Mário Tomé.

Peço-vos o favor - se for publicado no nosso Blogue - de atender à separação das estrofes. Obrigado.

Um abraço a todos.
E votos de resistência.

Paulo Salgado



DEZASSEIS ANOS DEPOIS

por Paulo Salgado


Anos de setenta

de surpresas e desventuras,

de guerra e de paz,

de ódio e de amor,

de carnificina e fraternidade.

 

As viaturas lançando poeira vermelha.

O cigarro fumado à sombra do mangueiro.

As crianças atraídas pela nova gente.

Os velhinhos dizendo chacota e piada.

As casas cobertas de capim.

O arame farpado rodeando o imenso terreiro.

Mulheres e homens de olhar indiferente.

As casas comerciais antigas.

As casernas  os abrigos  as valas

Os postos de sentinela o longe mirando

O rio correndo ao fundo pelos matagais

A floresta e a bolanha de grandeza nunca vistas

Os carreiros por entre matas serpenteando

- Pedaços de Abril de setenta

 

Anos de setenta

de surpresas e desventuras ,

de guerra e de paz,

de ódio e de amor,

de carnificina e fraternidade.


 P’ra trás ficou Bissorã,

Mansoa, Bissau, o Pidgiguiti cais

da luta sangrenta de operários e arrais

lá onde acostou o “Carvalho Araújo”,

(com nome do bravo marujo)

trazendo no seio carne para canhão.

 

A viagem foi lenta e segura.

Levar a bom porto tal gentalha

(que a guerra há tanto tempo dura)

p’ra alimentar de novo a fornalha.

Cada qual chorando os entes queridos,

alguns, do porão, lançando vómitos repetidos,

outros, amigos, conversando na amura.

 

Mar alto, mar de calma,

muitos companheiros nunca olharam,

mas outros antanho navegaram,

fosse Zarco ou Tristão, Nola ou Gama,

aqueles que sonharam com impérios

(se tais sonhos, loucos, ousaram)

de Lisboa até à Oceânia

vivos, agora, lançariam vitupérios

à desordem, à guerra, à infâmia

que de guerras tantas sofreram.

 

Anos de setenta

de surpresas e desventuras ,

de guerra e de paz,

de ódio e de amor,

de carnificina e fraternidade.


Olossato, Cansambo, Canicó,

Cansonco, Fajonquito, Nemanacó,

Amina Dala, Canjaja, Morés,

Iracunda, Bissancage, Maqué,

e outra belas tabancas,

de fulas, mandigas, balantas

mil etnias desta Guiné.

 

Destruídas, arrasadas, queimadas,

incultas, nuas, abandonadas,

terras que deram fruto e vida

agora chão fratricida.

Irmãos de raça ou de cor

lutando no lado de lá

com armas deitando fogo.

As voltas que a vida dá.

 

Já não se saboreiam cajus,

já não se cultivam bolanhas

nem se colhe o bom feijão

apenas se ouve o obus

e se contam as façanhas

de cada guarnição

 

Quem imagina um passeio

rio acima de canoa

ou viagem a Mansoa

Bafatá ou Farim?

Não passará de anseio,

quem pensa coisa assim?

Mancebo quer casar

bajuda formosa, nubente.

Como podem eles folgar

ao som do batuque dançar

e amarem-se no palmar

se a pobreza está presente?

 

Mistério este incompreendido

por deus.

lá no alto dos céus

bem por cima dos poilões

ele não vela

não vê o que se passa na Terra.

Terra

Negra Terra

Dura

Obscura

em que os homens são caminheiros

de estradas cortadas

esbarrando no arame farpado.

Com as mãos sangrando

aos seus deuses gritando:

Acabaram-se os sonhos?

Acabou-se o amor?

Não vedes, ó deuses,

as crianças de olhar parado e triste?

 

Anos de setenta

de surpresas e desventuras ,

de guerra e de paz,

de ódio e de amor,

de carnificina e fraternidade.


Troaram metralhadoras

e cantaram “costureirinhas”

pelo tarrafo lá ao fundo

e pelo rio atá à foz.

E a nossa voz

é um grito profundo

 

Quantos padeceram

a doença e o sofrimento

da fome e da solidão!

Quantos se picaram

e se vergastaram

pelo movimento

dos corpos suados!

Tristeza no coração.

 

Tapámos os olhos para não ver

o sangue escorrendo nas carnes feridas.

Tapámos os ouvidos para não ouvir

os ais lancinantes de desesperança

que brotavam das bucas sujas,

cheias de terra.

  

 Ah, o nosso mundo não é este.

Nos dedos escorre a morte   a dor   o suor.

Os olhos choram companheiros

sem sorte.

Nós queremos erguer

a bandeira branca

e cantar

e ouvir

canções contra a injustiça

contra as trevas

contra a infâmia maldita

que lançaram sobre o nosso destino.

 

Anos de setenta

de surpresas e desventuras ,

de guerra e de paz,

de ódio e de amor,

de carnificina e fraternidade.

 

Tantos anos já passaram

desde aquelas horas

à chuva

ao calor

ao cansaço

ao sofrimento…

 

Dezasseis anos passaram

depois de tantos homens

e tantas mulheres

e tantas crianças

morrerem

sofrerem

no mato

na bolanha

na tabanca ardida

incendiada

violada.

 

Dezasseis anos passaram

cheias de mortes,

anónimas, algumas concretas   próximas   desesperantes

vivas.

 

Dezasseis anos já passaram.

A nossa memória

paira na poeira do tempo

e da história .

Não esqueceremos

o capitão,

o Sebastião

a Kadi mulher

e os homens e mulheres

que na guerra se encontraram.

 

Tantos anos depois

não esqueceremos.

 

Anos de Abril de setenta

sonhando com Abril próximo

Abril sem ódio e sem guerra.

Com paz e fraternidade

na nossa terra.

 

Paulo Salgado

Abril de 1986 

(nas vésperas do encontro da nossa Companhia – CCAV 2721, 

em Santarém).

 __________

Nota do editor:


Último poste da série > 27 de novembro de  2020 > Guiné 61/74 - P21587: Bombolom XXVIII (Paulo Salgado): Saudação e participação

3 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Paulo. não é uma vida, nem metade,mas foram dois dos nossos verdes anos, mais o tal "sono reparador" que, nalguns casos, levou outro tanto, se não mais... Preciso de reler o teu texto com tempo e vagar e distanciamento... Agora vou apanhar umas résteas de sol... LG

antonio graça de abreu disse...

Muito bem. Sol triste,as nossas gentes, Guiné e Portugal, a guerra cruel, a bolanha das lágrimas.

Abraço,

António Graça de Abreu

Manuel Bernardo - Oficial reformado disse...

Este ex-combatente esqueceu-se de citar os crimes contra a humanidade praticados pelo PAIGC, quando fuzilou muitas centenas de presos, desde 1976, que eram ex-combatentes guinéus por Portugal, sem qualquer julgamento ... (vide meu livro "Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros (...)/2007).