sábado, 6 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23499: Os nossos seres, saberes e lazeres (517): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (62): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 7 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Junho de 2022:

Queridos amigos,
Nisto das viagens não há chegada que não tenha partida, neste caso parte-se inconsolável, ainda por cima era a 1ª viagem depois da pandemia, houvera passamentos na ilha, gente muito estimada, caso de uma comadre, uma grande afeição, caso de um médico oftalmologista, alguém que cuidara dos meus olhos em Bissau, depois da explosão de uma mina anticarro, amizade para sempre. E logo no dia da partida, não ter conseguido despedir-me do professor António Machado Pires, meu professor de Cultura Portuguesa, que me recebia sempre com atenção e desvelo e um livro de oferta, uma grande perda, exímio mestre, a cultura seguramente que dará pela sua falta. Escusado de referir que estou pronto a regressar, haja circunstância, é tudo uma questão agora de bombear essa circunstância, dou-me bem nesta atmosfera de paz, de pontas, picos, águas em cascata, a bagacina a estalar sobre os pés. Adeus, até à próxima viagem!

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (62):
De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 7


Mário Beja Santos

É o meu último dia em São Miguel e pesa-me a consciência, nada de remorsos, viajante que se preza sabe que há limites entre o chegar e partir, mas este mais de meio século a calcorrear esta terra de feteiras, lagoas, faróis a apontar para o vasto oceano, pontas de sossego e desassossego, variações cromáticas a perder de vista, o exotismo dos parques, a constante afabilidade dos encontros, quer com amigos quer aqueles a quem se pede uma informação, toda esta escorrência de sons da água e do vento, aqui chegam comigo, e onde quer que esteja, depois de um avião aterrar em Lisboa, é a sempre e obsidiante vontade de aqui tornar, cada um de nós determina o Paraíso na terra, faz parte da sacrossanta autonomia da vontade, gostos não se discutem.
Pedira no Hotel Terra Nostra para voltar a visitar o espaço do antigo casino, dou-me bem com o regionalismo pictórico de Domingos Rebelo, não era possível, só que gente muito amável da receção cumpriu o prometido, recebi imagens que vou religiosamente guardar, de festas e panorâmicas com que o artista embelezou este belo espaço Arte Deco, tão bem conservado. Conforme as gravuras juntas.

É o último passeio pelo Parque Terra Nostra, mas é sempre o primeiro, deambulo com a saudade afogueada, imagino que já percorri todo o Nordeste, que estive sentado no jardim da Povoação, que conversei com um amigo do Faial da Terra, que aqui mesmo nas Furnas assisti a uma procissão com visita aos enfermos, posso fechar os olhos e antever o que o autocarro me irá oferecer de panorâmicas até Ponta Delgada, tenho uma visita surpresa ainda a fazer. Aqui ficam algumas imagens soltas da vegetação do parque, da casa sobranceira à piscina vigiada pelo busto de Thomas Hickling, a quem indubitavelmente devemos origem deste espaço edénico, só falta ouvir-se o murmúrio das águas, e depois o caminho da lagoa das Furnas e a vegetação que se avista do Parque José do Canto, chega de lágrima no olho, caminha-se para a paragem de autocarro, irresistível não registar a bruma que se levanta, pois adeus e até à próxima, e lembranças aos amigos que nos guardam estima e uma pequena oração para todos os que já partiram.
Não há visita a São Miguel que não inclua o bater à porta do meu querido professor de Cultura Portuguesa, António Machado Pires. Vimo-nos 1 ano antes da pandemia, era sempre uma questão de ritual, uma visita à Igreja do Colégio, uma entrada apressada na Biblioteca Municipal, por cima do Jardim Antero de Quental, para cheirar novidades editoriais, atravessado o jardim batia-lhe à porta. Tinha seguramente problemas sérios de visão, os olhos já entaipados com lentes escuras, conversámos de tudo e de nada, recebi prenda, Páginas Sobre Açorianidade, voltámos ao passado, quando me apresentei como estudante-militar para fazer a cadeira, sempre com aquele timbre de voz modulada, sem excitações, que lhe conheci ao longo destas décadas, deu-me o fardos das matérias, tudo bem organizado, foi um gosto preparar-me para tal exame, e ficou o encanto de nos revermos, sentia que gostava da minha companhia, a visita de um antigo aluno, de outras eras.
Bati à porta, com alguma insistência. Passou alguém e disse-me que o Sr. Professor já não vivia ali, na rua mais acima, e deu-me o número e a indicação de uma campainha. Ninguém atendeu, por absurdo não levava agenda. Mais tarde, o meu amigo Mário Reis disse-me que nesse preciso dia falecera a mulher, e que o professor tinha a saúde abalada, era o que sabia.
E agora, no preciso instante em que me despeço desta viagem, a sentida dor de uma perda, era um professor de comunicação rara, ouvi-lo falar sobre a cultura novecentista e ir mais atrás ao sebastianismo, era puro deleite, sempre a voz compassada, a gesticulação medida. Tudo isso perdemos, dou sempre comigo a pensar nos gigantes da cultura que aqui se ergueram, e permanecem, é uma dádiva do Espírito Santo, com certeza. E até à próxima viagem!

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Notas do editor

Poste anterior de 30 DE JULHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23473: Os nossos seres, saberes e lazeres (514): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (61): De novo em São Miguel, é infindável a romagem de saudade - 6 (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 4 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23493: Os nossos seres, saberes e lazeres (515): Visita de um grupo de sócios do Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes à exposição "O Cristo das Trincheiras", em Fátima, em Abril de 2015 (Abel Santos)

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