segunda-feira, 1 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23480: Nota de leitura (1470): Como nasceram as fronteiras da Guiné-Bissau (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
É bem interessante o contexto histórico em que ocorreu a definição das fronteiras da Guiné. A presença portuguesa era praticamente inexpressiva, a diplomacia portuguesa queria o apoio de Paris para reconhecer a legitimidade dos nossos interesses nos territórios entre Angola e Moçambique. Foi dolorosa a perda do Casamansa, nem os comerciantes nem os autóctones desejaram o domínio francês, e ninguém na época ia supor que todo o Casamansa seria um pomo de discórdia quando se fundou o Senegal. Já aqui se divulgaram as notas de um brioso oficial da Marinha que foi até à região de Cacine e Kandiafará, nesta região havia mercado e não havia autoridades portuguesas. O artigo de Armando Tavares da Silva, que anda muito próximo do conteúdo do seu livro "A presença portuguesa na Guiné", descreve todas as peripécias que levarão à fixação das fronteiras, fazendo ver a todos esses apóstolos de hoje que batem a mão no peito sobre a nossa presença de cinco séculos a grande ilusão que se montou para se falar numa Guiné onde mal existiu o sopro de um verdadeiro colonialismo.

Um abraço do
Mário



Como nasceram as fronteiras da Guiné-Bissau

Mário Beja Santos

Armando Tavares da Silva, autor do livro "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016, assina no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa aqui referido, o artigo A fixação das fronteiras da Guiné pela Convenção Luso-Francesa, texto que acompanha com grande proximidade o que ele publica no seu livro entre as páginas 127 e 148. Tratando-se de matéria de elevado interesse histórico, intenta-se um resumo das várias questões tratadas, visto que a partir de maio de 1886 houve em definitivo a definição de um território que até então conhecera inúmeras designações e de que se desconheciam todos os contornos.

A questão ganha premência com a crescente presença francesa na região do Casamansa, a Norte, e na região de Compony, a Sul, os franceses queriam alargar os seus domínios, não estavam satisfeitos em ficar à entrada do rio Casamansa, e queriam fazer recuar a presença portuguesa para lá de Cacine. Quem representava os interesses portugueses agia lentamente, num vai-e-vem de exposições e respostas diplomáticas que só nos prejudicava. Honório Pereira Barreto assistia ao perigo crescente e informou o Governador de Cabo Verde em maio de 1837. Novo vai-e-vem diplomático, a França invocava razões históricas para ali estar. É então que o visconde da Carreira se dirige ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da França com as nossas provas históricas, dando ênfase à Crónica da Conquista da Guiné, de Zurara.

Armando Tavares da Silva repertoria um conjunto de incidentes na região do Casamansa, ora tira ora põe bandeira portuguesa ou francesa, caso dos incidentes de Adiana e Sindão. Recorde-se que a região Sul também estava sob cobiça, os franceses pretendiam comprimir a presença portuguesa para cima do rio Cacine, resta dizer que a presença de autoridades portuguesas era nula na região.

Depois de várias pressões da diplomacia francesa, e tendo já terminado a Conferência de Berlim, o governo de Paris manifesta disposição para negociar fronteiras não só na Senegâmbia como também sobre o litoral do Congo. O governo de Lisboa tenta separar a questão do Casamansa e de Cacine com a pretensão francesa da posse do território de Massabi. Certo e seguro, as negociações entre Portugal e a França irão ter lugar em 1885, a França insiste então não nos seus direitos históricos e utiliza uma expressão subtil: “em nós penetra a ideia que a solução para ser prática deve ser procurada mais nos factos do que nos arquivos”, evitando-se complicar a obtenção do acordo “por discussões onde cada um se acharia a produzir títulos históricos sem que eles possam conduzir a comissão a qualquer conclusão, uma vez que nós não teríamos qualidade para concluir, o que é desde já uma razão para os pôr de parte”.

Seguem-se propostas e contrapropostas, a diplomacia portuguesa dá sinais de transigência quanto às fronteiras da Guiné desde que se retire qualquer reivindicação francesa sobre o Massabi. E chega-se a uma sessão em 11 de janeiro de 1886 em que a questão dos rios Cacine e Compony vem à baila, a França não esconde que pretende um recuo da fronteira da possessão portuguesa para lá de Cacine, está muito interessada em conservar a posse da ilha Tristão na embocadura do Compony.

O governo de Lisboa, e continuamos em janeiro de 1886, declara abertamente que não pode aceitar o abandono dos territórios na margem esquerda do Massabi (ou Loema). No mês seguinte, a França insiste na posse da margem esquerda do Loema. Depois de algumas vicissitudes, entre elas a queda do governo de Lisboa, Portugal sacrifica o seu direito histórico no Casamansa e no rio Nuno. O político Barros Gomes escreve: “Para nenhuma das regiões além-mar poderia Portugal ostentar melhores títulos de posse do que para as regiões banhadas pelo Casamansa. Descoberta, conquista, ocupação efetiva, tratados celebrados com os potentados indígenas, convénios diplomáticos com as nações da Europa, remontando alguns ao século XV, tudo quanto pode constituir um direito e justificar a soberania, tudo pode ser alegado em favor do domínio de Portugal naqueles territórios, tudo tende a acentuar o sacrifício consumado com o seu abandono".

Perdia-se o Casamansa, lutava-se por uma fronteira mais folgada no Sul. A França deixa de insistir na sua presença no Massabi. E assim se chega ao projeto de convenção apresentado pela França, onde esta faz o reconhecimento do direito de Portugal exercer a sua influência nos territórios que separavam as possessões portuguesas de Angola e Moçambique, era uma vaga e inconsequente declaração formal, não terá qualquer peso face ao Ultimato. Durante as negociações, Portugal pretendeu que se mencionassem os limites dos territórios entre Angola e Moçambique, a França opôs-se liminarmente, fez reconhecimento “sob reserva dos direitos anteriormente adquiridos por outras potências”. A Convenção Luso-Francesa foi aprovada na Câmara dos Deputados a 2 de julho de 1887 e aprovada na Câmara dos Pares a 18 seguinte.

Em 25 de agosto de 1887 a Convenção foi assinada pelo rei D. Luís. Armando Tavares da Silva regista a extensa apreciação que a comissão de negócios externos da Câmara fez do projeto de lei, dava-se como as cedências no Casamansa compensadas tanto pelo rio Cacine como pelo reconhecimento que a França fazia de quase todo o território do Massabi e o da zona de exploração entre a província de Angola e Moçambique: “O rio Cacine e os territórios de uma e outra margem foram com efeito uma cessão a troca de outra, porque, embora as nossas descobertas e as nossas pretensões a domínio se estendessem ainda mais para o Sul, é certo que a posse efetiva pertencia à França”.

Estavam consumadas as fronteiras. Segue-se um período de tentativas de ocupação que só serão coroadas de êxito com as campanhas de Teixeira Pinto, é a partir daí que a administração portuguesa, de forma mínima, se irá internando até ao Gabú, descendo à península de Cacine e ao arquipélago dos Bijagós, finalmente submetido em 1936, com a capitulação do régulo de Canhambaque.

Monumento alusivo às campanhas do Canhambaque, imagem de Francisco Nogueira, publicada na obra "Bijagós, Património Arquitetónico", Edições Tinta da China, 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Julho de 2022 > Guiné 61/74 - P23470: Nota de leitura (1469): Sobre Graça Falcão, a melhor fonte será porventura "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", de Armando Tavares da Silva; Caminhos Romanos, 2016 (Mário Beja Santos)

7 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Se calhar era boa ideia dar fotocópia deste texto ao governo da Guiné...
Seria uma base par a construção da respectiva história, se quiser que ela se faça.

Um Ab.
António J. P. Costa

Antº Rosinha disse...

Quer dizer que praticamente onde a pouca presença portuguesa sempre existiu, e em que as populações já há muito tempo se entendiam com os portugueses, Casamance, essa região é que foi trocada por regiões onde os portugueses nunca estiveram.

Daí haver trabalho a duplicar para o senhor capitão João Teixeira Pinto ter que andar à porrada em lugares em que na realidade nem conhecia.

Casamance está descontente em pertencer a Dakar, daí querer até hoje desligar-se.

Os genuinos e independentistas casamancinos falam o crioulo de Bissau e identificam-se com Bissau.

Pessoalmente constatei essa identificação na cidade de Kolda onde tive que me deslocar para me abastecer de gasolina.

Um grupo de revoltosos, rodeou-nos a mim e ao meu motorista guineense, furtivamente em crioulo aportuguesado, estavam a cumprimentar-nos com afectividade por sermos da Guiné Bissau, ermons portanto.

Isto em 1987, nessa noite houve guerra feia naquela região.

Com a conferência de Berlim, ficou para Portugal umas pontas a que Alemães, Belgas, Franceses e ingleses negligenciavam.

Poque é que os Franceses queriam naquele deserto que é o Senegal deixar ligado o Rio Casamance, e não quiseram o Rio Gâmbia? esse sim um rio dentro do Senegal, mas claro com os ingleses a conversa era outra.

A conferência de Berlim foi um golpe para Portugal, Portugal nem queria fronteiras, queria um país do tamanho de África como foi com o Brasil.

Ou tudo ou nada, ficou quase nada.


António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

O comportamento das potências colonizadoras regia-se por regras que só "elas" sabiam e negociavam entre si. Os povos africanos não tinham voz activa no processo. Isto terá sido início da queda dos impérios... Cem anos depois foi o que sabemos.
Mas enquanto durou, durou...

Um Ab.
António J. P. Costa

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Quando se fala de Casamansa é preciso esclarecer que a Casamansa portuguesa (até a Convençao Luso-francesa de 1886) era a feitoria de Ziguinchor e pouco mais, o que é diferente de falar da Casamança actual (com um territorio e populaçao quase igual ao da Guiné-Bissau) que inclui as regioes de Ziguinchor e Kolda no alto Casamansa.

E por demais evidente que, tendo sido beneficiado com todo o espaço a Leste (actuais regioes de Bafata e Gabu) com o beneplacito dos regulos locais que queriam fugir do dominio de Alfa Molo e do seu filho Mussa Molo, amigos dos franceses, e a Sul nas duas margens do rio Cacine que nao conhecia e com os olhos e sentidos postos no famoso mapa-cor-rosa, Portugal estava nas nuvens e estava certo de ter obtido grandes vantagens que depois se desvaneceram com a posiçao do ultimato ingles.

Hoje, muitos falam do caso "Casamansa portuguesa" como se tratasse, de facto, de todo o territorio actual destas duas regioes ao sul do Senegal, o que nao corresponde a realidade dos factos historicos, pois a Casamansa de cima (haute Casamance) fazia parte do reino de Fuladu que de seguida sera incorporado no territorio do Senegal independente, o que faz confusao a muita gente e que questiona como Portugal deixou perder um territorio tao grande a troco de quase nada.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Anónimo disse...

PS:

Mas isto ainda nao tinha sido o mais grave, o pior é que ainda em 1960 (Abril) e o territorio do Senegal, na altura, ja era independente, a França consegue (re)convencer Portugal a assinar uma adenda onde reconhecia uma linha de fronteira maritima, inventada pela França, que retirava metade da zona maritima guineense a favor do Senegal e, com isso dariam inicio ao conflito fronteiriço que opoe até hoje os nossos dois paises (GBissau e Senegal), com a Casamansa ao meio. Assim, nao é dificil compreender que o conflito existente em Casamansa tem origens nos acordos mal concebidos da época colonial.

Cherno Baldé

Antº Rosinha disse...

O pormenor a que Cherno se refere e que Portugal cedeu em 1960 nas limitações com a França, julgo que é uma pequena linha reta antes da orla marítima de perto de 4 quilómetros que oblicua pelo mar adentro e que segundo as leis internacionais é essa linha que determina os limites marítimos.

Se não houvesse petróleo tudo bem mas como consta que há...temos guerra.

Em 1960 muitas fronteiras ainda não estavam completamente materializadas em África foi o caso e havia as independências, também em Cabinda nessa altura, isso soube eu na altura, foi preciso acertar as agulhas com a França com o Congo Francês.

Cherno, como dizem angolanos, brasileiros e também guineenses, calhou-nos este colonizador.

Desde 1880, Portugal deixou de riscar no mapa, e jamais alguém respeitou Portugal, e tem mais, se não fossem os treze anos de luta, não era Amílcar, nem Neto nem Samora que definiam as fronteiras que ficaram, grande parte dos rios de Angola e Porto da Beira em Moçambique

Ninguém conhecia aquelas figuras, nem ninguém lhe dava qualquer crédito, e no caso da Guiné, nem dentro da Guiné muito menos em Conacry ou Dakar, tal a "porosidade" daquelas fronteiras e tão recentes.

Ninguém dava importância ao que era português.

Esse pormenor de Cap Skiring foi uma imposição muito semelhante ao histórico mapa cor de rosa, só que pareceria em ponto pequeno, mas não é tão pequeno assim.

Outro rabo de palha que Portugal deixou em África por falta de força internacional, foi o berbicacho de Cabinda em Angola.

Sobrou o que sobrou Cherno.





Cherno Baldé disse...

Muito obrigado ao nosso mais velho Rosinha, pois é "uma pequena linha para Portugal, mas uma grande linha para a França, a velha raposa gaulesa" e assim "...sobrou o que sobrou" pois que ainda podia ser diferente, mas "foi o colonizador que nos calhou" e encalhou tudo.

Um grande abraço,

Cherno Baldé