ACORDAR MEMÓRIAS
2 - O PRIMEIRO CONTACTO COM A BIBLIOGRAFIA DA GUERRA COLONIAL
O meu regresso às minhas memórias da Guiné, iniciou-se quando um colaborador e companheiro de trabalho (que também escreve livros e com vários prémios literários, de pseudónimo Paulo Assim) me falou que tinha lido recentemente um livro sobre a guerra na Guiné e que referia um episódio, de que eu lhe falara, de um acidente com militares, que tinha provocado vários mortos e feridos, na sequência de uma desavença ocorrida num jogo de futebol; que deveria ser o mesmo episódio e que eu deveria conhecer o seu autor. Prontificou-se a adquirir-me o livro. “Diário da Guiné – Lama, Sangue e Água Pura”, de António Graça de Abreu. Li-o de seguida e com sofreguidão. Era a primeira vez que lia algo sobre a guerra da Guiné, onde também tinha estado e logo a falar-me dos lugares e de pessoas com quem tinha convivido, despertando-me assim para outros interesses...
Também, já há alguns meses me havia sentido “estranho”, ao constatar que a série televisiva “A Guerra”, de Joaquim Furtado, tinha mexido comigo, quando os episódios se referiam à Guiné. Dei comigo a discorrer sobre a condução política e militar de Portugal e da Guiné, a esse tempo, interrogando-me: como tinha sido possível que se tivesse deixado acontecer os “infernos” de Guidage e Guileje. Não era previsível o que aconteceu? Onde estavam os serviços militares de informação e reconhecimento? O que faziam? Por que é que não se actuou preventivamente? Porquê?... Onde estava a competência dos senhores da guerra? Se não havia capacidade para controlar, prever e contrariar a actividade do IN, o que andávamos a fazer? Eu, que não era militar nem guerreiro, via os erros que tinham sido cometidos, remediando tarde e em desespero de causa, com elevados custos humanos, morais e materiais, o que deveria ter sido prevenido e evitado. Mas logo, num ato de autocensura, abafei tais sentimentos, pensamentos e considerações. O que interessava agora pensar nisso? Para que serviria? Que parvoíce!... Os responsáveis já não estarão entre os vivos e ninguém responde pelas causas da guerra e pelos seus erros e consequências!
Sede do BCaç 3863 em Teixeira Pinto. Ao centro, edifício do Comando. À esquerda o das Transmissões.
Quanto ao Alf. Mil. António Graça Abreu, decerto que nos cruzámos em Teixeira Pinto, embora por pouco tempo. Teremos partilhado o mesmo bar ou até a mesma mesa, mas a minha memória não o acusava. Ou se apagara o registo, ou estava imperceptível. Lembrava-me sim do CAOP 1, da cena do simulacro de ataque ao quartel na minha primeira noite, dos acontecimentos do dia 1 de fevereiro de 1973, em que fazia pela primeira vez de Oficial-Dia; do Cor. Pára Rafael Durão e do seu porte e conduta militar, que até respeitava, dos seus frugais pequenos-almoços na messe de oficiais, em mesa separada, à base de frutas (grandes mangos da Índia).
O seu livro recordou-me o número de Batalhão a que eu pertencera, as Companhias que o constituíam, tornando-me possível acordar outras memórias. E agora estava disposto a libertar-me dos bloqueios que tinha montado, recordar e sentir a guerra da Guiné, pensar nos bons e maus momentos, poder analisá-la, criticá-la, não por saudosismo ou masoquismo, nem para condenar os envolvidos, governantes, políticos e militares, mas para reflectir sobre o que aconteceu durante esses anos: sobre a política que Portugal trilhou e as suas consequências, identificando os seus responsáveis, chamando os "bois" pelos nomes.
Mesmo considerando que os erros do passado são irremediáveis, sempre poderemos aprender algo com eles, para o presente e para o futuro e se possível minorar os seus efeitos, pela palavra e pela acção.
Iria também permitir-me procurar e saber dos meus antigos camaradas e talvez um dia encontrar-me com eles; principalmente com os do meu Grupo, o 4.º Pelotão, “Os Americanos”. Espero que ainda estejam todos vivos e de saúde. Mas por onde andarão?
Guião do BCaç 3863. Constituiu-se no RI 1 – Amadora. Esteve na Guiné de 22 Set.1971 a 16 Dez. 1973. Dados que obtive nas minhas pesquisas no Blogue.
Aqui chegado, o passo seguinte foi ir ao encontro do desconhecido e a via seguida foi ir à internet ver o que conseguiria, eu, que até então, pouco ou nada tinha navegado. (Já me bastavam as longas horas que passava agarrado ao computador por razões profissionais, quanto mais desperdiçar o meu tempo livre nesses luxos).
Eis-me agora nisto: Google > Bat. Caç. 3863 e entretanto estava a entrar no Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné. Desde então tem sido quase um vício. Pena é a falta de tempo, pois é um mundo que nunca mais acaba. A corroborar a máxima: “O Mundo é Pequeno e a Nossa Tabanca é Grande”.
(Continua)
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Nota do editor
Primeiro poste da série de 6 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12802: Acordar memórias (Joaquim Luís Fernandes) (1): Monte Real, 8 de Junho de 2013, o primeiro contacto com a Tertúlia
3 comentários:
Meu caro JLFernandes
Este é o 'apontamento 2" do conjunto de textos a que foi dado o título "Acordar memórias".
Gosto do título e tenho gostado do que já li, fiando atento ao que espero mais venha aí.
Deixa-me que diga que estou muito de acordo com o que dizes, com a forma como abordas este teu 'despertar de memórias', com grande parte das considerações que vais tecendo.
E, até, curiosamente, há uma coincidência com o que te fez dar o 'clic' para te interessares (aqui para nós, que ninguém nos ouve, o 'bichinho' estava lá dentro, na tua mente, tu é que ainda 'não sabias'...) por estas coisas que viveste. Trata-se do livro do António Graça de Abreu. Também foi por ele que me decidi a rebuscar as memórias, foi através dele que cheguei ao Blogue, que estive aí uns três meses a ler o que lá estava, que fui comparando com outras coisas públicas e concluir da sua maior e melhor 'substância'.
Do que li do texto anterior considero que o que descreves como sendo a tua 'aproximação emocional' é, talvez, um dos melhores relatos do que será um percurso 'interior' nesta caminhada da construção do 'puzzle' colectivo da memória.
E neste texto segues na mesma senda. A revelação da tua 'incomodidade' com o que 'mexeu' contigo nos programas da série "A Guerra" revelam não só a tua estatura moral e emocional como também a capacidade para manteres o descernimento em relação aos factos.
Continua, que estou a gostar.
Abraço
Hélder S.
Muito obrigado, meu caro Fernandes pela referência ao meu Diário da Guiné, aos nossos tempos comuns em Teixeira Pinto, 1973.
Tenho muito orgulho nos textos que escrevi na época, sempre em cima do dia a dia,vividos, sofridos entre contentamentos e lágrimas. Estamos lá todos, 1972/74, Durões, CAOP 1, 35ª e 38ª de Comandos, Páras 121, 122, 123, B. Caç 3863, mais gente flácida e acagaçada, mais meninos puros e honestos lançados numa guerra suja e injusta, como todas.
Tenho muita pena de o meu Diário da Guiné nunca ter tido neste blogue um comentário,um texto crítico, uma recensão por parte do Mário Beja Santos, sumidade em tudo o que à Guiné diz respeito, infatigável recensor.
Mas não quero ofender o Mário, que até é pessoa com imensas qualidades.
Só que a seguir ao meu Diário da Guiné,o Mário Beja Santos escreveu dois livros de memórias com mesmo título, Diário da Guiné, congeminados, compaginados cá, quase quarenta anos depois,como se o Mário ainda estivesse lá, na nossa Guiné.
Para quando, neste blogue, uma recensão do Mário Beja Santos ao meu Diário da Guiné? Diga bem, diga mal, não importa, é meu camarada da
Guiné, dar-lhe-ei um abraço.
Abração amigo,
António Graça de Abreu
Caro JLFernandas,
Já aqui trocámos comentários reveladores do teu interesse pelos caminhos da Pátria, e que tanto condicionaram as nossas vidas.
O teu texto contém um período com pertinentes títulos para reflexão, e alguma coisa já foi aflorada no blogue.
Fico curioso em relação aos teus próximos contributos pois, além do mais, escreves com boa qualidade.
Um abraço
JD
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