1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Setembro de 2013:
Queridos amigos,
Para quem gosta de procurar as ligações entre o meio, o urbanismo e a arquitetura, esta viagem pelas antigas colónias portuguesas abre surpreendentes perspetivas.
Temos aqui a teoria geral de como a arquitetura e o urbanismo funcionaram como entidades catalisadoras em África, e a Guiné como colónia modelo foi exemplar. É uma boa oportunidade para acompanhar os grandes empreendimentos a partir do governador Sarmento Rodrigues e perceber como em tão curto lapso de tempo se moldou um espelho onde se podia mirar uma civilização aglutinadora entre o luso e o trópico, goste-se ou não era essa a profunda convicção de Sarmento Rodrigues e dos seus extraordinários colaboradores.
Um abraço do
Mário
Nos Trópicos sem Le Corbusier:
Arquitetura Luso-Africana no Estado Novo
Beja Santos
O livro “Nos Trópicos sem Le Corbusier, Arquitetura Luso-Africana no Estado Novo”, por Ana Vaz Milheiro, Relógio d’Água, 2012, reúne estudos de indiscutível importância sobre projetos da arquitetura concebida no Gabinete de Urbanização Colonial (posteriormente Gabinete de Urbanização do Ultramar) e que em muitos casos se concretizou nas diferentes colónias africanas. A Guiné é um caso paradigmático do trabalho desenvolvido sob a égide deste Gabinete.
O Gabinete de Urbanização Colonial (GUC) foi um organismo dependente do Ministério das Colónias, criado em 1944 pelo ministro Marcello Caetano, e com o objetivo de realizar projetos de arquitetura e urbanismo para as antigas colónias portuguesas. Ana Milheiro estudou estes projetos em diferentes arquivos e viajou até às realizações. O mínimo que se pode dizer, a despeito do património se encontrar degradado, é que ele constitui uma marca de identidade cultural única face aos países vizinhos. Bastava este facto histórico para dirigirmos a nossa atenção para tais expoentes arquitetónicos.
Antes de mais, um pouco de história. O GUC foi inicialmente chefiado pelo Eng.º Rogério Cavaca. Os projetos eram solicitados pelos governadores dos territórios coloniais ou diretamente pela tutela. Verifica-se que a sua produção acompanhou os ciclos impostos pelos quatro Planos Fomento que arrancaram a partir de 1953, simultaneamente na metrópole e nas regiões ultramarinas. Qual a ideologia subjacente? Procurava-se aperfeiçoar uma imagem arquitetónica inspirada nos estereótipos das construções tradicionais portuguesas, de modo a garantir uma ligação afetiva à metrópole.
Como constatou a autora em Bissau, o trabalho maior do GUC consistiu em reforçar o papel monumental do principal eixo viário – a Avenida da República (hoje Avenida Amílcar Cabral) e o caráter de zonamento que delimita as áreas específicas da cidade: as funções tanto de residência, como hospitalar, desportiva, escolar e militar. Não foram consentidas construções em altura, razão pela qual o centro histórico de Bissau passou a ter uma escala muito harmónica, convidativa e humana. Tudo começou com o mandato de Sarmento Rodrigues, o GUC durante um longo período esteve a trabalhar quase exclusivamente para as reformas propostas por este governador, e não foi só no porto de Bissau, no restauro da fortaleza da Amura, nos bairros sociais, na conceção do aeroporto de Bissalanca. O GUC saiu de Bissau, teve intervenções em Varela, Cacheu, Teixeira Pinto, Mansoa, Farim, Bafatá e Nova Lamego. Mas há que reconhecer que Sarmento Rodrigues privilegiou as grandes infraestruturas: ponte de Ensalmá, porto de Bissau, o arranque do aeroporto, o estádio de Bissau. Ir-se-á por sucessivas etapas, depois o liceu, a associação comercial e industrial, os bairros populares, o hospital, entre outros.
Durante cerca de 30 anos, o trabalho do GUC reflete as diferentes estratégias do Estado Novo. Seja como for, o clima tropical da Guiné exigia um investimento primordial nos aspetos técnicos relegando para segundo plano os aspetos artísticos. Como escreve a autora, a Guiné tornar-se-á um caso exemplar, em parte pelo modo como as tradições simbolizadas com a casa popular vão estabelecer um padrão residencial inventariado pelos arquitetos portugueses. Depois veio a guerra de guerrilhas, a partir daí, o pragmatismo associado à atuação militar acaba por definir o caráter de algumas povoações do interior que foram reordenadas durante os anos de 1970 e cujos vestígios ainda subsistem.
Entrevistada pelo jornal Público quanto ao interesse pela arquitetura colonial, Ana Milheiro não esconde a admiração pelas realizações: “Como é que um país pobre, atrasado, desenvolve um esforço de instalação num território fora do seu perímetro, dentro de um quadro político internacional que lhe é hostil? O Portugal rural de Salazar é um Portugal que nas colónias se transforma num Portugal urbano. Os planos, as avenidas, os equipamentos: há uma espécie de projeto megalómano de que a arquitetura e o urbanismo são entidades catalisadoras. Isto é também uma experiência única, porque na década de 1950 começam os processos de independência dos outros países e nós mantemos o nosso império colonial até 1974. Nós temos uma experiência que não há nos outros países e nas outras potências colonizadoras”. E havia também um móbil primordial que o arquiteto não podia descurar, como a autora também observa: “O mais importante era respeitar a organização social e familiar do habitante africano – melhorar a casa tradicional através de alterações funcionais da planta. As técnicas e materiais construtivos deveriam ser os conhecidos pelos povos africanos de modo a que estes pudessem construir – em sistema de autoconstrução – as suas habitações. Respeitavam-se ainda os lugares dos assentamentos populares por serem considerados os melhores face ao clima, ventos, etc.”.
É uma leitura aliciante, encontrar as respostas de como construir nos trópicos, esta arquitetura de representação nacional, aquela que está nos equipamentos públicos, nos hospitais, nos liceus, nos palácios do Governo, estava esquecida. Agora o leitor interessado tem à sua disposição um livro sobre o discurso ideológico na arquitetura, é uma leitura apaixonante sobre a casa como elemento civilizador, olhar as soluções que muitas vezes vinham da arquitetura popular portuguesa adaptada aos trópicos. O livro permite compreender melhor o que o Estado Novo entendia que devia ser o urbanismo e a habitação dos civilizados naquele território que dava pelo nome de Guiné portuguesa.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 7 de Março de 2014 > Guiné 63/74 - P12805: Notas de leitura (570): "A Guiné... dos mil trabalhos", em "O Mundo Português", por António Florindo de Oliveira (2) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário