quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24048: Historiografia da presença portuguesa em África (354): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Caminhamos para o fim da vida deste Conselho de Governo, que teve a faculdade de ser marcadamente consultivo mas onde houve o exercício deliberativo, os serviços do governador acabavam por ter em linha conta certas apreciações na análise da legislação, reconhecendo a pertinência das observações dos conselheiros. Enfatiza-se que faltam muitas atas, mesmo de muitos anos, fica-nos, no entanto, a sensação de que é possível ir tomando o pulso à evolução das mentalidades, estas atas são reconhecidamente úteis por muitas das observações que aqui se tecem, já chegámos ao mandato de Arnaldo Schulz, não se fala declaradamente da guerrilha, usa-se uma linguagem apaziguadora, "no quadro atual das dificuldades que a Província atravessa". Vou tentar ver se é possível encontrar toda esta documentação na Biblioteca Nacional, é um acervo auxiliar, mas inescapável, para quem pretende estudar a vida da Colónia, até à sua independência.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (8)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

Insiste-se na advertência que os dois tomos existentes na biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa têm importantes lacunas, o que naturalmente dificulta a apreciação geral do percurso da instituição, sem prejuízo das tais tomadas de posição que nos ajudam a entender as preocupações do governador ou seu representante, os diretores e chefes de serviço da Administração e o conjunto de vogais representativos de interesses. Obviamente que é indispensável compulsar o que aqui se diz e se dá por deliberado com o constante no Boletim Oficial da Guiné e na imprensa. Depois de um longo período de ausência de Diogo de Mello e Alvim, segue-se a sua exoneração e a nomeação de Álvaro da Silva Tavares, que curiosamente, noutras funções, já pertencera a este Conselho de Governo. Em 14 de fevereiro de 1957, no período antes da ordem do dia, Mário Lima Wahnon, comerciante, dirige-se ao novo governador:
“Eu li no jornal da terra que esta visita de V. Ex.ª à região dos Fulas e Mandingas foi coroada de muito êxito. Entre as grandes manifestações da população há uma que eu soube com prazer: - é que pediram a V. Ex.ª a instituição de escolas primárias naquelas localidades. Neste Conselho há já alguns anos venho defendendo este ponto. A instrução pública não corresponde às necessidades da população. De facto, a grande população islamizada da Província não tem uma escola para aprender o português. É, pois, com muito gosto que peço a V. Ex.ª que seja considerada na medida do possível a instituição de escolas naquelas regiões”.

É novamente debatida a questão dos abonos a funcionários civis e militares, o padre Cruz do Amaral, em 20 de fevereiro, põe à votação uma mensagem sobre o significado profundo da visita de Isabel II a Portugal, dizendo que a Guiné comunga no mesmo entusiasmo por uma política que tem a sua consagração na velha aliança anglo-lusa; abrem-se mais créditos, desta vez para sustentas os preços das especialidades farmacêuticas, concedem-se bolsas de estudo, subsídio à autarquia de Bissau para o asfaltamento das ruas e abastecimento de água e energia elétrica à cidade e também crédito para equipamento hospitalar. O padre Cruz do Amaral aproveita o ensejo da visita de Álvaro Tavares à Costa do Ouro, agora Estado do Gana, onde se deslocara como Embaixador de Governo às festas da independência do país, para proferir o seguinte voto:
“À natural alegria de o vermos regressado a esta Província e ao seio deste Conselho, juntamos a satisfação de o sabermos investido daquelas altas e excecionais funções com que o Governo na Metrópole quis distinguir a pessoa de V. Ex.ª. Desde o dia 6 de março corrente que um país estruturalmente africano nasceu para a independência e liberdade. À volta do berço deste nascimento se reuniu a maior parte das nações do mundo. Mas nenhuma como Portugal tinha o direito de ali estar presente, pois fomos nós, os portugueses, os primeiros a levar àquelas paragens o lume vivo da civilização e os primeiros a erguer nas trevas do continente negro um fasto luz que ainda se não apagou.”

Todo o novo contexto de independências começa a ser objeto de ponderações e avisos, e no Conselho há sempre uma voz que empresta convicção ideológica ou tece advertências, oiça-se um comentário no momento exato em que a Guiné Conacri passou a ser um Estado independente, quem assim fala diz-se representante dos interesses da população indígena da Guiné:
“Felizmente para nós, portugueses, não temos problemas políticos a resolver nas nossas províncias ultramarinas, ao passo que os povos oriundos de grande parte dos territórios estrangeiros deste continente se encontram hoje sublevados contra os respetivos países dominadores, as populações do nosso Ultramar continuam vivendo em paz e sossego, com absoluta calma e na melhor harmonia. Isto só demonstra a justeza dos elevados princípios de ordem política, económica e social, que informam a nossa administração ultramarina e o caráter fundamentalmente humano e cristão da nossa ação civilizadora em África.
O atual clima político no continente africano impõe-nos o dever de estarmos atentos e enfrentar os acontecimentos sem hesitações e com a maior objetividade. Qualquer afrouxamento no ritmo da nossa ação administrativa no Ultramar poderia ser interpretado como um recuo. Nós não queremos que os demais povos africanos, sobretudo os dos territórios estrangeiros vizinhos dos nossos, que hoje são independentes ou gozam de plena autonomia administrativa, procurem diminuir-nos ou amesquinhar-nos com a acusação de sermos os próprios responsáveis pelo estado de atraso em que durante longo tempo vivemos em relação aos demais países africanos mais adiantados, e por isso mesmo devemos intensificar a nossa ação administrativa ultramarina promovendo medidas tendentes ao desenvolvimento económico e social dos nossos territórios africanos, assegurando aos indígenas um nível de vida mais elevado e criando-lhes um ambiente suscetível de concorrer para a satisfação das suas mais prementes necessidades morais e materiais.”


É pouquíssima a documentação existente referente ao mandato do Capitão-Tenente Peixoto Correia como Governador. Em 18 de junho de 1964, o Brigadeiro Arnaldo Schulz preside pela primeira vez ao Conselho, Mário Lima Wahnon é eleito vice-presidente, Teixeira da Mota torna-se o representante da Guiné no Conselho ultramarino. Prossegue naturalmente a rotina, caso do Regulamento da Assistência Médica e Medicamentosa do Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e da Indústria da Província da Guiné, abole-se a designação de Sindicato Nacional que passa para Caixa Sindical. O novo governador anuncia o início dos trabalhos na nova estrada asfaltada Mansoa-Mansabá, prevendo-se o seu prolongamento até o Gabu. O vogal Artur Augusto Silva tece considerações sobre o papel das Missões que tinham passado pela Guiné e destaca duas como bastante relevantes: a Missão de estudo e combate às tripanossomíases e a Missão geoidrográfica da Guiné.

Quando se trata de analisar o Orçamento para 1965, Schulz usa da maior prudência falando das verbas do Plano Intercalar de Fomento:
“Não podemos esquecer que as verbas do Plano de Fomento são obtidas através de empréstimos que é necessário pagar, bem como os respetivos juros, daí a necessidade de que o dinheiro empregue no fomento produza, pelo menos, o capital e os juros indispensáveis ao pagamento das prestações que nos são impostas. E como o desenvolvimento dos sucessivos planos de fomento implica novos empréstimos, aumenta progressivamente a nossa dívida e consequentemente o aumento do quantitativo das prestações a pagar; ou os investimentos dão o rendimento necessário à satisfação de tais encargos ou são as escassas receitas da Província a fazer-lhes face e caminharemos para uma asfixia financeira que não nos irá permitir fazer nada mais durante muitos anos”. E adverte mesmo que não se pode consentir que as verbas do Plano de Fomento tapem as lacunas existentes no Orçamento da Província, e deixa a recomendação que todos os serviços se devem esforçar por cobrar receitas por forma a dispor-se de maior verba. Ponto curioso é que esta apreciação virá a conhecer uma inversão radical com o seu sucessor, a quem aliás o Governo Central irá conceder meios que Arnaldo Schulz jamais obteve.

(continua)

Álvaro da Silva Tavares, Governador da Guiné (1956-1958)
António Augusto Peixoto Correia, Governador da Guiné (1959-1962)
Arnaldo Schulz, Governador da Guiné (1964-1968)
Bissau, Avenida Marginal
Balantas em festa, imagem da atualidade
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Nota do editor

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5 comentários:

Antº Rosinha disse...

Alvaro Silva Tavares, Caboverdeano, também foi Governador de Angola de pois de 1961, evidentemente estudante do Império como todos os outros.

Provavelmente com bolsa de estudos como a maioria de muitos estudantes caboverdeanos que foram para Lisboa.

Em Angola ainda governou posteriormente outro ultramarino, mas de Goa.

Eram, sempre foram os ultramarinos, (não os indígenas)que ensinavam a viver em África a quem ia daqui, das "berças", da "terrinha", da "miséria" como os auto-intitulados "portugueses de segunda" simpaticamente chamavam ao nosso "puto".

Eles sim, sabiam como viver em África, e que ajudaram Portugal durante 500 anos, até que um dia, uns tantos engajados no PAIGC, no MPLA, na FRELIMO, resolveram tomar conta daquilo, e lá se entenderam, mal ou bem.

Valdemar Silva disse...

Antº. Rosinha
Este Álvaro Silva Tavares, que morreu com mais de 100 anos, era o que chamamos 'estudante do império' ou era filho de algum colono/funcionário do estado em Cabo Verde?
Não há biografia que nos diga a sua origem, apenas sabemos que nasceu em Cabo Verde, em 1915, veio estudar para Universidade de Coimbra, licenciou-se em direito e foi sempre um conhecido funcionário ultramarino, com colocações como Governador de Angola, da Guiné e de Goa.
Tem uma grande bibliografia sobre as colónias, inclusive depois e sobre da descolonização.

Abraço
Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

José Macedo, muito obrigado, devias intervir mais quando se trate de Cabo Verde e caboverdeanos, nem que seja para me desmentir naquilo que for.

Quando vires que sou exagerado podes dizer à vontade.

Mas eu tenho que falar de coisas que vi, mas claro que posso interpretar mal.

Eu quero chamar estudantes do império, a todos e qualquer um que tenha a simples velha quarta classe tirada por ultramarinos, todos foram estudantes.

Uma coisa são os "Estudantes da Casa do Império", chamemos assim, que está a ficar aqui no blog, quase uma ideia como que tenham sido todos revolucionários os que passaram por lá.

Uma coisa eu sei, os estudantes africanos daqueles tempos eram poucos, mas os poucos que tinham oportunidade de estudar tinham um sucesso escolar muito especial, ao ponto de se considerarem mais competentes para tomar conta da governança, do que quem ia da Metrópole.

Valdemar Silva disse...

A minha informação sobre Álvaro Silva Tavares ter estudado na Universidade de Coimbra não está correcta, foi na Universidade de Lisboa.
Mas a questão que me interessa é ele não ser descendente de caboverdianos, mas filho de um colono e que sendo assim, julgo não poder ser considerado ao que chamamos "Estudante do Império".
Quantos filhos de pais transmontanos, minhotos ou beirões já radicados no séc. XIX em Angola, Moçambique ou outras colónias vieram estudar para a metrópole nos anos de 1930, 1940 ou 1950?
Eu julgo que esses estudantes não seriam tratados como o que se chamou "Estudantes do Império", mas sim os descendentes de naturais, ou mestiços, desses territórios ultramarinos.

Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Valdemar, como foi parar a outro post posterior a minha meia resposta às tuas dúvidas sobre quem seria quem, que já viste com certeza, vou trazer para aqui esse comentário, para completar:

Valdemar, nascido ou criado de pequeno, em África, nas colónias, branco ou mestiço, mesmo que tenha vindo para o Retângulo como eles (e outros) chamavam ao retângulo, eram, e faziam por isso, para se considerarem muito diferentes de nós, (brancos e portugueses de 1ª), mesmo que o pai ou avô fosse minhoto beirão ou transmontano.

Diferentes para melhor.

Não te sei explicar porquê, por falta de erudição da minha parte, mas era uma realidade.

Vou dar-te 4, 5 ou 6 exemplos muitíssimo públicos e históricos desse tipo de gente que "deram baile", no seu tempo: Almada Negreiros de São Tomé, Fernando pessoa de Africa do Sul, Luandino Vieira de Angola, Otelo Saraiva de Carvalho de Moçambique, Raul Indipo e Bonga de Angola, paro por aqui.

Paro por aqui para não escandalizar, porque são todos irmãos dos revolucionários do PAIGC, MPLA e FRELIMO.