quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24028: Historiografia da presença portuguesa em África (353): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
As atas do Conselho prosseguem dominadas pelas discussão de regulamentos, normas, concessão de créditos, a Província vai se dotando de legislação, bem interessante para quem investiga cotejar estas atas com o Boletim Oficial da Guiné e as leituras possíveis que passavam, por exemplo, pelos jornais e pelo Boletim Cultural da Guiné Portuguesa. Aqui e ali ouve-se a voz do povo, é o caso do padre missionário que vem acusar a autarquia de Bissau de crueza os indígenas que não pagam a tempo e horas, protestando que há dois pesos e duas medidas; ouve-se a queixa de um conceituado comerciante, Mário Lima Wahnon, que manifesta indignação com a concorrência desenfreada no mercado de amendoim, o que leva outro conselheiro a dizer que não há alfaiate ou sapateiro que não cheguem à Guiné e prontamente queiram enriquecer, sabe Deus como. A descolonização já bate à porta, chegámos a 1957 e as perturbações com a União Indiana movimentam manifestações e vozes calorosas a exaltarem o Portugal uno e indivisível.

Um abraço do
Mário



Atas de Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné:
Uma fonte documental que não se deve ignorar (7)


Mário Beja Santos

Pode julgar-se à partida que estas reuniões em que se discutiam requerimentos, taxas e emolumentos, em que funcionários da administração se pronunciavam sobre salários e infraestruturas, num órgão consultivo em que compareciam chefes de serviços, comerciantes, profissionais liberais, em reuniões presididas pelo Governador, ou pelo Governador Interino, ou pelo Encarregado do Governo, eram suficientemente enfadonhas para não acicatar quem anda à procura de outros ângulos do prisma que nos ajudam a formar uma visão mais abrangente da História da Guiné. Muitas vezes sem interesse para o historiador/investigador, atrevo-me a dizer, mas há ali casos de tomadas de posição ou declarações que nos ajudam a melhor entender a mentalidade, as iniciativas seguramente generosas que ali se formularam e que não tiveram seguimento, ou mesmo o aproveitamento daquele palco para que um Governador tecesse, em forma de sumário, o que se procurava fazer durante o seu mandato.

Nunca esquecendo que estes volumes depositados na biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa têm lacunas, há saltos da cronologia, por exemplo passou-se de 1951 para 1955, dá para ponderar o que distingue uma governação como a de Sarmento Rodrigues e como as dos seus sucessores acabaram por legitimar o espírito de modernização das instituições, consolidando infraestruturas, abrindo estradas, inaugurando pontes e fontanários, cuidando dos equipamentos de saúde, criando o liceu de Bissau, por exemplo. Referimos no último texto que já estamos no mandato de Diogo de Mello e Alvim, iremos verificar grandes ausências do governador por motivos de saúde. Participa no Conselho de Governo um elemento missionário, adiante será mencionado pela importância da sua intervenção. A partir de outubro de 1955 encontramos as atas com bastante regularidade, vejamos sumariamente os assuntos tratados: plano quadrienal de trabalho; crítica por não se incluir no mesmo a construção de silos para a mancarra; há largas referências à necessidade de um grandioso plano de estradas; discute-se a reforma dos serviços de assistência pública, bem como o orçamento geral da província para o ano económico de 1956; concedem-se bolsas de estudos e autorizam-se créditos; é posto à discussão o horário de trabalho dos estabelecimentos comerciais; referencia-se a tuberculose pulmonar como um importante desafio e há consenso para a transformação da missão do sono em missão de combate às endemias; é aprovado uma sobretaxa sobre o preço da gasolina e aprovado o abono sobre as ajudas de custo. Deteta-se que a partir de novembro é contínua a ausência do governador, quem preside ao Conselho é o vice-presidente, o Diretor da Fazenda. É na sessão de 29 de novembro que intervém o padre Cruz Amaral, tinha a ver com uma comunicação que este fizera ao governador, então doente na residência, manifestara discordância de opinião quanto às observações do padre missionário. E abordava publicamente a questão por que se via forçado um esclarecimento.

Assim:
“Há tempos fora abordado por alguns indígenas que lhe disseram ser obrigados pela Câmara Municipal a pagar o chão que ocupam com as suas moradias, vulgarmente de adobes cobertas a colmo. Que o mínimo que lhe cobravam era 200 escudos mensais, afora outros encargos. Fiquei impressionado, solicitei a pessoa da minha confiança para que me obtivesse elementos mais concretos e precisos, pois o assunto interessava sobre maneira ao representante dos interesses dos indígenas no Conselho de Governo. Essa pessoa trouxe-me a mesma notícia devidamente retificada. Os indígenas de Bissau, qualquer que seja o seu grau de assimilação, além de todos os impostos, pagam à Câmara Municipal 100 escudos por cada moradia e se a moradia for alugada passa a pagar 200 escudos; e quando destinada a estabelecimento comercial o imposto camarário pelo terreno que ocupa vai de 400 a 500 escudos.”

E o sacerdote observava a escassez de proventos dos indígenas e a crueza das execuções fiscais, quem não pagava a Câmara arrancava-lhe as portas e delas fazia coleção em monte no recinto do município. E assim verberou:
“Devo dizer a Vossas Excelências tais notícias que me deixaram verdadeiramente atordoado, não se pode ficar impassível perante tal violência. Numa terra como esta em que os CTT não cortam o telefone aos assinantes que estão 2 anos e mais sem pagar; onde a Emissora local sente repugnância em enviar para as execuções fiscais as taxas de recetores atrasadas, nesta terra, vamos descaridosamente arrancar as portas de domicílios que ocupam um chão que antes de ser do município já era dos indígenas. Isto vai contra o que há entre nós de tradicionalmente bom e cristão e compromete bastante os altos princípios de assimilação, de civilização humana que apregoamos”.

As discussões de caráter económico começam a vir à tona, veja-se o exemplo do período antes da ordem do dia aparecer o seguinte alerta vindo de um comerciante, Mário Lima Wahnon: “Avizinha-se o comércio da mancarra. Encerrou-se o comércio nalgumas localidades devido às taxas muito elevadas das licenças de comércio. Mas sei que apesar disso alguns comerciantes servem-se de camiões para comprarem mancarra nas povoações indígenas, com manifesto prejuízo daquelas que se sujeitam a pagar as taxas progressivas e despesas com a manutenção do estabelecimento todo o ano. Esta situação não deve continuar devendo o Governo exercer rigorosa fiscalização sobre este comércio ambulante e clandestino. Também se aproxima a campanha de arroz. Na área de Fulacunda é costume aparecer uma legião de homens e mulheres (chamados cristãos) que conduzem garrafões de água-ardente e tabaco para comprarem arroz de casca e de pilão nas diversas populações indígenas, também com manifesto prejuízo dos comerciantes legalmente estabelecidos. O governo proibiu a comercialização de arroz de pilão, mas a verdade é que o comércio de arroz de pilão continua todo o ano. Começou estes dias a venda de arroz de pilão no porto de Bissau e no mercado”.

Deu-lhe réplica o chefe dos Serviços de Administração Civil, alegando que o problema das limpezas dos produtos é um problema cíclico, observando que o mal tem outra origem, e não se coíbe de dizer qual: “Estamos habituados a ver chegar à província pedreiros, sapateiros, alfaiates, mulheres humildes e homens humildes que nunca tiveram outra profissão se não as que ficam apontadas; no entanto, ou porque o profissão lhes parece deprimente ou porque a sua ânsia é apenas a de enriquecer, 3 dias depois já aparecem licença para estabelecimentos de uma taberna ou de qualquer ramo comercial, intitulando-se comerciante”. Queixa-se que deveria haver regulamentação para instituir a carteira profissional, esta não existe e lembra que se dão fianças aqueles que adquirem camiões que permitem ir às tabancas utilizando meios ilegais e fraudes.

O Conselho continua a ser presidido pelo Diretor da Fazenda, o esforço legislativo prossegue: normas sobre os serviços de administração e funcionamento dos armazéns ou depósitos fiscalizados de regime aduaneiro, revisão do Regulamento dos Serviços das Alfândegas da província da Guiné; normas sobre a entrada, trânsito e saída de peles; regulamento de transportes em automóveis; tabelas de emolumentos a cobrar nos serviços públicos da Guiné. A 25 de abril de 1956 comunica-se a exoneração de Diogo de Mello e Alvim e a nomeação de Álvaro Silva Tavares, este presidirá à 1ª sessão do Conselho em 1 de outubro.

Paira já no ar a chamada questão da Índia e o chefe dos Serviços de Administração Civil apresenta uma moção a propósito de uma manifestação da população de Bissau de solidariedade com o governo central, no sentido de que a nação portuguesa é una, indivisível, e que a província toda está em íntima comunhão com estes princípios. “O Conselho de Governo não pode ficar indiferentes às interpretações que têm havido na ONU, em que o nosso delegado tem procurado mais uma vez demonstrar a inanidade dos conceitos de outros que, evidentemente, ainda não terão a capacidade suficiente para compreender o que seja uma unidade na diversidade”, moção que foi aclamada pelo Conselho com vozes de muito bem e apoiado.

(continua)

Avenida da República, Bissau
Pormenor da Catedral de Bissau
Estatueta Bijagó
____________

Nota do editor

Último poste da série de 25 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24010: Historiografia da presença portuguesa em África (352): Actas do Conselho do Governo da Colónia/Província da Guiné: Uma fonte documental que não se deve ignorar (6) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: