quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24030: (In)citações (229): A matança do porco... do nosso contentamento (Francisco Baptista / Alberto Branquinho / Joaquim Costa / José Belo / Luís Graça / Valdemar Queiroz)

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "Depois da caçada há que preparar o bicho, tal qual uma matança de porco numa das nossas aldeias".


Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "É hora de levantar cada um a sua parte e comer em família, cada um em sua tabanca [morança]".

Fotos (legendas): © José Manuel Lopes (2008). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. O texto, de cinco estrelas, que escreveu o Francisco Baptista sobre a matança do porco em Brunhoso, na terra fria transmontana, já mereceu uma boa mão cheia de comentários... Reporta-nos para as memórias, os sabores, os paladares, as brincadeiras,  a ruralidade, as festividades cíclicas, as geografias emocionais da nossa infância, enfim, para um Portugal que não existe mais e donde saiu um milhão de homens para fazer a guerra em África (1961/74), e que eram capazes de vender, não digo a G3, mas pelo menos a alma ao diabo,  por um salpicão, umas chouriças ou um naco de presunto do fumeiro da santa terrinha... (que isso, sim, é que era pecado, para os nossos amigos e leais fulas, respeitadores da lei de Maomé).

Na Guiné os animistas como os balantas criavam uns porquinhos que, com relutância, vendiam à tropa,  às vezes eram atropelados pelo "burrinho" (o Unimog 411), que entrava pela tabanca dentro sem respeitar os "sinais de trânsito" e as orientações da "psícola" do Spínola,,, Outras vezes, havia uns corajosos e sortudos caçadores que lá apanhavam, no mato,  fora do arame farpado, um porco selvagem ou javali... 

Nesses dias havia festa no quartel, como documentam as fotos que acima reproduzimos... (E a propósito, não me lembro de ter comido carne de porco, da "pocilga do vagomestre", mas tenho que admitir que havia vagomestres engenhososos, criativos e nossos amigos que criavam uns porquinhos, com as sobras do rancho...).

Vale a pena, entretanto,  selecionar alguns dos comentários ao poste P24026 (*)

(i) Valdemar Queiroz:

Que apetitoso texto. Com cheiro a porco chamuscado e às tripas que tiravam da barriga ainda a fumar. Só faltou ouvir o porco guinchar antes, durante e no fim da matança.

Em criança de 9 anos, lembro-me de ter ido a uma matança do porco na casa da tia Rosa Verde. Pelo guinchar de outras paragens, o matador devia estar a chegar.

Eram só mulheres a tratar da matança, apenas dois homens a agarrar e atar o porco em cima do carro das "piscas". A minha avó era do grupo que tratava da lavagem das tripas, e eu ia com ela à foz do rio junto ao mar lava-las com areia(?) e limões.

Depois era toda a gente a encher chouriços e os rapazes e raparigas desapareciam nas brincadeiras.

Que pena eu não saber escrever como o Francisco Baptista. (...)

31 de janeiro de 2023 às 23:14  

(ii) Francisco Baptista:

Camarada e amigo Valdemar Queiroz, tu escreves bons comentários também saberás escrever bons textos.

Os porcos grunhem, não guincham, confesso que, à distância de muitos anos, esse grunhir queixoso me incomoda mais do que no tempo real em que acontecia, talvez porque com mais idade, com outra experiência de vida e mais conhecimentos, me tenha dado  conta que há a inteligência humana dos bípedes como nós e a inteligência animal. Talvez os porcos,  ao serem puxados com uma corda e ao depararem com tantos homens,  adivinhassem que era o fim da boa vida e das comezainas. 

Lembro-me da minha mãe que durante muitos anos matou as galinhas e os perus e, com mais idade, deixou de o fazer. Enfim com a idade ficamos mais humanos e passamos a ficar mais próximos e a compreender melhor os animais.

Continuo a gostar da carne de porco, ainda ontem comi um bom cozido dessa carne.

1 de fevereiro de 2023 às 11:07

(iii)  Luís Graça;

Francisco, é um texto de valor etnográfico. É bom poder voltar a ler os teus escritos. Este Portugal, da matança do porco, do fumeiro, da salgadeira..., já não existe mais. Há anos que deixámos de matar o porco em Candoz, no Norte... Mas faz parte das minhas memórias de infância, quando eu, menino e moço, ia à aldeia da minha mãe, Nadrupe, a 3 km da vila da Lourinhã, ma Estremadura, para participar na "festa" da matança do porco... Era sempre por esta altura, no inverno. Ao pé do mar, não se fazem presuntos, mas havia também um bom fumeiro, à base de chouriços.

(,,,) "Lembras-te da matança do porco, do facalhão com que matavam o porco, o alvoroço do povo, de forquilha e sachola na mão, os gritos do porco, o sangue aos borbotões, parirás com dor, os uivos do louco, e comerás o pão com o suor do teu rosto, a agonia do porco, a casa farta, o sarrabulho, o terror da morte, o cruel fatalismo dos provérbios populares, hoje com saúde, amanhã no ataúde, os corpos a sangrar de saúde, filho sem dor, mãe sem amor, a lição de anatomia, se queres conhecer o teu corpo, mata o teu porco, a lição de medicina, o que faz bem ao braço, faz mal ao baço, as partidas que os grandes pregavam à pequenada, a bexiga do porco, alegria de pequenos e graúdos, transformada em bola de futebol por menos de uma hora. Que, afinal, a vida tem uma porta só, a morte tem cem." (...)

1 de fevereiro de 2023 às 12:12

(iv) Joaquim Costa:

Em minha casa todos os anos se matava o porco. Era dia de muitas emoções para mim. O frenesim começava de manhã cedo com os preparativos e terminava ao fim da tarde com a chegada do especialista, com o seu facão para aplicar o golpe de misericórdia no sítio certo de forma a evitar o sofrimento do bicho. Este parecia que adivinhava o que vinha aí,  já que desde muito cedo mantinha um comportamento anormal. O caminho do calvário (corredor da morte) da pocilga até à rudimentar mesa onde era atado, esperneava, grunhia e gritava (...). . Era uma cena macabra. Ainda o bicho ofegava e já era chamuscado com tochas de palha a arder.

Depois era o lavar das tripas, fazer os enchidos e proceder à salga... Mas o que mais me impressionava era a matança da galinha, com a minha mãe cortando a cabeço à pobre ave (que esperneava sem cabeça) que durante meses era tratava com zelo e carinho.

Mas verdadeiramente arrepiante era a matança do coelho com as pancadas dadas no cachaço do fofinho animal. Fugia daquela cena arrepiante, razão pela qual nunca comi coelho na minha vida. 

Felizmente hoje a matança é … mais fofinha ! ?

1 de fevereiro de 2023 às 12:14



(v) Alberto Branquinho

Ó Francisco! Gostei muito do teu texto. Fez-me voltar à infância.

Na minha santa terrinha, que não é muito longe da tua (o Douro separa-nos), aos pulmões não chamam "boches", mas "bofes" e ao teu "piche" chama-se "alpechim" (origem árabe, vê tu, em terra de judeus...).

E com o auxílio de "fachas" de palha a arder não tiravam as unhas ao bicho para dar à garotada? Que as coloca no nariz e berrava: "Cheira a "carrapé"!

E não faziam cruzes no sangue com palhinhas para "coalhar" mais depressa?

O "unto", homem, o "unto"! É capaz de ser por causa disso que o pessoal não tem colesterol... Ou tem?

A matança, pois! Há uns poucos anos assisti a uma (clandestina), mas a pressa de matar (?!) era tanta, com medo de aparecer a fiscalização...

 1 de fevereiro de 2023 às 16:33

(vi) José Belo (... from Key West, Florida, USA):

Fantástico poder de observação. Minuciosos detalhes que transformam uma recordação em algo de vivo e actual.

Será…”todo um mundo que desapareceu “?

Ou antes páginas viradas de um mesmo livro?! Páginas (as viradas e as por virar) que mais não são que um “continuum” existencial?!

Encontram-se no interior do livro o passado, o presente e o futuro?! Entramos neles de acordo com a página,ou capítulo que (de momento) abrimos?!

E,mais uma vez, estou-te grato por teres folheado o teu “livro”.

7 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Por que é que não havia criação de porcos domésticos nos nossos quartéis na Guiné ? Suponho que por causa na peste suina africana (PSA), endémica na África subsariana.

(...) "A peste suína africana (PSA) é uma doença viral que afeta os suínos domésticos e javalis de qualquer idade. Tem um elevado impacto social, económico e ambiental, devido à elevada mortalidade dos suídeos e aos bloqueios no comércio. O vírus da PSA não representa qualquer perigo para a saúde humana. Também não existe vacina nem tratamento para esta doença. O último foco de Peste Suína Africana em Portugal foi a 15 de novembro de 1999." (...)

https://www.dgav.pt/animais/conteudo/animais-de-producao/suinos/saude-animal/doencas-dos-suinos/peste-suina-africana/

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A riqueza pecuária da Guiné era estimada, em 1961, em mais de 230 mil cabeças de gado bovino.

Havia umas escassas dezenas de cavalos e mais de 3800 burros. Outros animais domésticos: cabras (c. 144 mil), porcos (c. 98 mil) e ovelhas (c. 54 mil).

Fonte:Dragomir Knapic - Geografia económica de Portugal: Guiné. Lisboa: Instituto Comercial de Lisboa, 1996, 44 pp., policopiado.

Anónimo disse...


Acontecia em Brunhoso,morrerem por vezes os porcos, muitas vezes já criados e com as matanças à vista. Era mortes subita e ocasionais, nunca soube qual a causa, as pessoas diziam que era a "malina" que os matava. Um ano, já próximo das matanças morreu um dos nossos já bem cevado. Como todo o povo fazia demo-lo aos ciganos que iriam fazer uma festa prolongada por vários dias, enquanto durava a sua carne.

Valdemar Silva disse...

Não me lembro de ver ovelhas na Guiné, cabras e cabritos sim. Coitadas das ovelhas com aqueles "casacos" devem ter um calor do caraças.
Em Canquelifá houve ordem do Comando para a caça ao javali, devido à dificuldade de abastecimento por a estrada estar intransitável com as chuvadas. Caçaram uma porca javali, que deu grande luta mesmo com uma rajada de G3, e não faltou carne de porco durante vários dias.
De resto, no Leste não se viam porcos domésticos devido à religião muçulmana da população.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Pela cor e pelo tamanho o "porquinho" de Mampatá (vd. foto de cima, neste poste) deve ter sido criado na, c'a sua licença, "pocilga do vagomestre"... Vou confirmar junto do Zé Manel da Régua...

gil disse...

Francisco Batista,fizeste-me recordar a minha infância em que tudo que descreves á tal e qual o que se fazia aqui na casa. Ainda tenho a dita faca "porqueira",30 a 40 cm c/duplo gume,também um funil zincado com um entalhe no bordo para a minha mãe empurrar a carne com o polegar dentro da tripa.
Na Guiné havia fama que em Binta ou será Barro havia um local que preparava um leitão assado de truz.
Numa missão(chamada de sector) de transporte geral de DO que me calhou,de periodecidade semanal calhou ir a esse sítio e tendo encomendado o petisco,na volta perto do almoço,trouxe para a base e convidei dois outros comanditas e papamos o dito.Apanhei uma gastro enterite que me pôs off durante uma semana.Aqui só ao fim de bastantes anos recomecei a comer esse petisco.
Também quando queríamos fazer alguma tainada,íamos á caça com um heli canhão e alvejamos com muito cuidado para só estragar meia carcaça.o atirador tinha que tentar acertar a cerca de 2 mts de distância,pois eram balas explosivas e daquele lado era para deitar fora cheio de estilhaços.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Gil Moutinho: vocês, pilotos, ainda têm que abrir mais o livro e partilharem connosco, infantes, artilheiros, cavaleiros, marinheiros e outros combatentes que andavam cá por baixo, como eram essas caçadas "by air", com o "Lobo Mau"... Já não é a primeira vez que se se fala do assunto (inocente), não é segredo de Estado... mesmo que o heli custasse 15 contos à hora... Os infantes também caçavam, de preferência à noite, com o auxílio dos faróis dos jipes e unimogues, galinhas do mato, lebres, javalis, gazelas...Muitas vezes ao fim da pista de aviação, nas imediações dos quartéis... Enfim, infringindo todas as regras de segurança...mas isso é outra história. Quem não arrisca, não petisca...O petisco ajudava-nos a sobreviver à aquela estúpida guerra... Um alfabravo, Luis