terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Guiné 61/74 - P16961: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (38): 2 - O amigo Mohammed da Mauritânia


Nómadas no deserto


1. Em mensagem do dia 9 de Janeiro de 2017, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), autor do Livro "Memórias Boas da Minha Guerra", enviou-nos a segunda história da sua mini-série O meu amigo Mohammed, este da Mauritânia.

Caros amigos
Tal como prometi, junto a segunda das quatro histórias de "O amigo Mohammed".

Grande abraço
JFSilva


Memórias boas da minha guerra

38 - O amigo Mohammed

2 - Da Mauritânia

Corria o ano de 1978 e estava eu a trabalhar na Sociedade de Fundição e Metalurgia, agora denominada de Sofume, nome mais em consonância com as leis do Marketing e com a modernização a que fora submetida. Esta empresa centenária, que fora Escola de Fundição, pertencia a Abílio Pinto de Almeida, quando foi adquirida em 1952 pelos cunhados António F. Alves (meu sogro) e Eugénio Guedes Barbosa, também sócios iguais na empresa “A Juvenil – Passamanarias”.

A Fundição fora implantada em local escavado nas rochas sobranceiras ao rio Douro, na sua margem esquerda, num local chamado de Murça. Ali, mesmo ao lado, já existia outra empresa, a Antiga Fundição de Murça (da família Paiva Freixo).


Zona do cais actual de Crestuma

Nesse tempo (até aos anos 40), Crestuma, talvez devido à sua forte irregularidade geográfica, ainda não tinha estradas, mas beneficiava de uma das melhores vias de transporte – o Rio Douro. Crestuma, apesar de, então, ser a zona mais industrializada de Gaia, tinha os escritórios centrais das suas empresas na cidade do Porto. Ainda hoje se podem ver os sinais desses proprietários nos edifícios da Rua S. João, perpendicular à zona ancoradouro da Ribeira.


Porto - Rua de S. João. Ao fundo o Cais da Ribeira do Porto


Soleira da porta de entrada dos escritórios na Rua S. João

Fascinado pela paisagem e pelo bom gosto de quem o construiu, procurei restaurar o Escritório Técnico, de onde se vislumbrava toda a beleza do rio e seu movimento fluvial. Era lá que eu passava grande parte do meu tempo, enquanto trabalhava.
- Senhor José, está ali um taxista, com um gajo meio preto, que quer falar consigo.

Dirigi-me para eles e após um breve esclarecimento da situação, mandei embora o taxista e voltei para o Escritório, levando comigo o “preto”.

Das suas primeiras palavras, entendi que se tratava de alguém ligado à Guiné e que “arranhava” o crioulo, um pouco melhor que eu. Também dizia alguma coisa em francês.
Mandei-o sentar e fiquei de boca aberta com o que vi.
- José, “a mim misste fogarêro di fero”.

Sempre de pé, desabotoou o casaco, meteu as mãos nos bolsos e começou a tirar deles maços de francos franceses.
- “A mim misste todo patacão di fogarêro”.

E empurrou-me o dinheiro todo. Eram mais de 400 contos! Tentei devolver-lho, mas ele insistia que só queria os fogareiros de ferro fundido e acrescentou:
- José, “tu bom pessoal. A mim tem confiança em bô”.

Curioso, perguntei-lhe para onde ia levar tanto fogareiro e ele respondeu:
- Um carro tem rádio e todo o camelo tem de ter fogarêro.


Fogareiro de ferro fundido

Depois de acertarmos o idioma mais indicado para nos entendermos: um português afrancesado ou um quase-crioulo afrancesado e fiquei a conhecer parte da história deste comerciante a que, na Guiné, chamavam “Jila”.

Soube que desembarcara em Lisboa há três dias, vindo da Mauritânia e que fora encaminhado, via CP, para o Porto. Depois de alguns contactos / informações, meteu-se no táxi e assim chegou à fábrica, em Crestuma. Andava com uma garrafa de água, para bebericar e para molhar as mãos e a cara antes das suas orações. Aliás, mal se apercebeu ter conseguido o seu objectivo, perguntou para que lado era o mar e inclinou-se para os lados de Lever (leste, lado de Meca) e fez as suas rezas a Alá.

Apercebi-me também de que ainda não comera durante esses três dias. Não ia a restaurantes, porque não se sentia seguro de ser servido com comida sem gordura animal (ou porco). Levei-o até Matosinhos e, na espectativa de lhe matar a fome, fomos almoçar ao Restaurante Mauritânia. Surpresa nossa: não encontrámos nada, além do nome, que identificasse ligação àquele país. Pensei que o arroz de marisco, fosse o mais indicado, mas o Mohammed só comeu o arroz.

O Mohammed tinha as suas origens ligadas aos mandingas do Mali e do grupo etno-linguístico Mandê. Como nómadas e de religião animista, foram vencidos pelos berberes que lhes incutiram a religião muçulmana.

Trabalhou regularmente como “Jila”, entre Bissau e Nouakchott. Mostrou conhecer Bambadinca, Fá Mandinga, Bafatá, Gabu e Canquelifá. Também conhecia bem as casas comerciais Gouveia, a Ultramarina, a Correia, Taufik-Saad, etc. Casou com uma jovem de uma tribo de nómadas, onde, actualmente, já deve ocupar lugar de responsabilidade.

O Mohammed confessou os dois principais objectivos imediatos: comprar outra mulher e ter outro filho. Talvez por isso, ele olhava tanto para as mulheres. Porém, ele considerava que as portuguesas eram quase todas doentes. Para ele, uma mulher magra não era conveniente para a reprodução. Pelo contrário, quando via uma mulher “tipo baleia”, ele arregalava os olhos a brilhar e exclamava:
 - “Muié bonita”!

Para ele, que era um “fivelinhas” de menos de 40 Kgs, uma mulher “bonita” teria que pesar mais de 100 Kg.

O Mohammed não parava de dizer “Portugal manga di verde, bonito”. Resolvi ir dar uma volta com ele pelo Minho.

Depois de visitarmos o monte da catedral de Santa Luzia, em Viana do Castelo, parámos num bar uns 200 metros mais abaixo. Fomos beber qualquer coisa, enquanto saboreávamos aquela paisagem deslumbrante. Uns minutos depois, ele saiu e pôs-se a rezar, de costas para Viana do Castelo e virado para o Monte de Santa Luzia. Por coincidência, estava curvado, quando, um homem que passava, lhe estendia uma esmola. O Mohammed, alheio ao gesto, curvara-se de novo. Ao aproximar-me, ouvi o homem, ainda de mão estendida, a dizer-lhe:
- Tome lá. Levante-se e deixe-se disso.

Quando lhe propus comermos um arroz de frango “à maneira”, ele não se pôs de fora, mas confessou que não podia aceitar, uma vez que o animal teria que ser morto por ele ou pelo seu superior religioso. Pedi então à minha sogra que cedesse uma galinha para o sacrifício. E foi sob a sua orientação que lhe proporcionámos as condições “logísticas” e religiosamente exigíveis para a “execução”.

Ainda o estou a ver na eira, de cócoras, com as mangas do casaco arregaçadas, os cotovelos pousados nos joelhos e com os braços e mãos a moverem-se tipo guindaste na doca, deslocando-se, manuseando a faca e “executando devidamente” a galinha. Tudo isto diante de duas bacias de água, uma quente e outra fria, as quais utilizava, com intervalos de rezas para Alá, cuspindo, de vez em quando, para o lado.

A minha santa sogra, pensando tratar-se de alguma bruxaria, benzia-se repetidamente e ia rezando/murmurando/contestando em voz baixa. O homem consolou-se com o frango cozido. Nem parecia o mesmo.

No dia seguinte, só falava no desejo de uma sopa de legumes. Como teria que ser sem gordura animal, procurei um “Caldo Verde”. Só o encontrei no terceiro Restaurante em que procurei. Mandei retirar a “tora” (rodela de chouriço) da malga dele. Porém, o Mohammed receou tanta pureza e recusou a sopa. O empregado, parecendo compreender a situação, ofereceu-se logo para trazer outra sopa, garantidamente sem chouriço ou outras carnes. O Mohammed olhou-me para eu lhe dar a confiança de que necessitava. E tudo correu bem.
- “Muito bom sopa! Pode cumê más”?

No final, depois do café, ainda sugeri um licor. Sem álcool, claro.
O mesmo empregado trouxe dois pequenos copos com um licor cor-de-rosa.
- “Muito bom bebida”! – gabava o Mohammed.

Na despedida, o empregado dizia-me:
- Não se preocupe com este tipo de pecados. O que interessa é que o homem fique com a consciência tranquila e o corpo satisfeito. E se o Alá me quiser foder a mim, que o fiz pecar, tem que vir aqui, a Matosinhos.

Pensando ter cumprido a sua missão, o Mohammed pediu-me se o levava a Aveiro, onde queria ficar. Ele insistia no “Stella Maris”. Fiquei a saber que se tratava de um Clube da Gafanha da Nazaré, em Ílhavo, muito frequentado pelos tripulantes de empresas que pescavam na costa da Mauritânia.
Quando lá chegámos fiquei surpreendido com o ambiente amistoso que me dispensaram. Apercebi-me de que o Mohammed já havia falado bem de mim. Comeu-se bom peixe e bebeu-se bom chá. Se o chá embebedasse, eu não teria conseguido sair dali.

Silva da Cart 1689
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Nota do editor

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