Queridos amigos,
Terá sido o acontecimento memorável daquele domingo do primeiro fim de semana passado em Bruxelas, estávamos em 1977, a Comissão Europeia convidara funcionários a conhecer os seus serviços, naquela fase em que muito simplesmente se batia à porta para um dia lá entrar, o que irá acontecer cerca de dez anos depois. Manhã cedo, mergulhei na policromia daquele bazar de velharias, a Feira da Ladra de Bruxelas, ainda não havia low cost, podia-se trazer uma mala cheia, foi um ver se te avias. E com saco às costas, depois de ter atravessado o bairro típico de Marolles, entrei na Rua da Regência para visitar a arte flamenga, e não só.
Era a primeira vez que eu dava tal mergulho. Foi inesquecível, e do muito que tive a felicidade de ver aqui vos trago esta simples lembrança.
Um abraço do
Mário
A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (7)
Beja Santos
Adverte-se desde já o leitor que estava concluída a série de recordações belgas quando o visitante deu consigo a repor na memória aquele primeiro fim de semana que passou em Bruxelas, no ano da graça de 1977. Fora com alguma antecedência ao comissariado do turismo belga, na Rua do Alecrim, quem o atendeu foi a escritora Fernanda Botelho que lhe fez recomendações para a ocupação do dito fim de semana em museus, artérias a percorrer ao fim de tarde, livrarias, a catedral, igrejas, jardins, a sorrir apercebeu-se que estava a propor uma empanzinadela de eventos, refreou-se e terá dito algo como, “olhe, se gosta de arte flamenga, vá aos Museus Reais, tem lá do bom e do melhor, passe a manhã na companhia de Rogier van der Weyden, Jerónimo Bosch, Memling, Bruegel, Rubens, Rembrandt, não se sentirá defraudado, e depois de almoçar lance-se no Museu de Arte Moderna, é contíguo, se gosta dos surrealistas, terá ali uma grande surpresa, Magritte em peso, boa viagem”.
E aconteceu o que Fernanda Botelho preconizara, o viandante saiu do albergue com os alvores da manhã, foi à Feira da Ladra, e entrou neste magnífico edifício do século XIX ajoujado de tralha avulsa, meteu num cacifo, foi ao encontro de alguns génios e contemplou obras que jamais esqueceria, não haverá exagero em dizer que vem a esta casa em peregrinação, sempre que pode.
Entrada principal dos Museus Reais da Bélgica
Este museu é dedicado principalmente à arte nacional belga. A Bélgica tem fortes razões para se queixar dos saques que sofreu. Filipe II ornamentou palácios espanhóis com tesouros artísticos belgas, e o mesmo fizeram as regentes dos Países Baixos, Margarida da Áustria e Maria da Hungria. As grandes pilhagens vieram com a dominação austríaca. E depois veio o período napoleónico, com importantes saques, muito trabalho tiveram os primeiros conservadores do museu depois da queda de Napoleão em repor a legalidade. Quando o visitante entrou aqui pela primeira vez, a visão do átrio era bem diferente, tal como a ligação entre o Museu de Arte Antiga e o Museu de Arte Moderna. A denominação precisa é a de Museus Reais de Belas-Artes da Bélgica, estão aqui coleções de pintura e escultura antiga. Como o visitante passou a maior parte da sua visita aqui e só de raspão é que se embasbacou com os contemporâneos, a homenagem foca este esplêndido museu de Arte Antiga, memória indestrutível, repete-se, convida a permanentes regressos, no texto seguinte, o último desta série, irá mostrar-se o homem da flecha de Rogier van der Weyden, tem identidade desconhecida, como traz o colar do Tosão de Ouro, há investigadores que dizem tratar-se do príncipe português D. João de Coimbra, sobrinho de Filipe, O Bom.
Museu de Arte Antiga
Em 1994, o viandante tirou um curso de duas semanas na Universidade de Lovaina a Nova, e visitou em Bruges a memorável exposição dedicada a Hans Memling, um pintor de assuntos religiosos, mas também retratista. Há qualquer coisa de onírico nesta atmosfera de O Martírio de S. Sebastião. O santo não tem qualquer traço de sofrimento, parece que o artista quis pôr o seu modelo em pose, com olhar distante enquanto os algozes são a expressão do dever, mas também não há sombra de ódio ou violência nos seus rostos. Ali se especou o viandante a ver a profundidade do quadro, com água e montanha ao fundo, uma beleza idealizada. E há o poder da cor, umas vezes intensa, outras vezes opaca.
O Martírio de S. Sebastião, Hans Memling
Nem toda a obra de Bosch remete para o delírio ou indicia que o genial artista é um surrealista antecipado alguns séculos. Mas veja-se com atenção o ambiente à volta da Cruz e do Cristo pregado ao lenho, há ali dois rostos transtornados e os caminhantes fazem relevar a solidão, viajam em sonambulismo. Bosch, nesta fase, capricha em praticar a simetria, a imobilidade, e põe no fundo uma cidade envolta pela neblina.
Crucificação, Jerónimo Bosch
Duas obras de Bruegel, O Velho, foram marcantes nesta visita: o Recenseamento em Belém e A Queda dos Anjos Rebeldes, optou-se por falar da primeira. É um tema do Evangelho, o recenseamento decretado pelo Imperador Augusto, não estamos na Judeia mas numa típica aldeia flamenga, há para ali um ar invernal e a brancura da neve. Como, em visitas posteriores, me irá impressionar um outro quadro, A Queda de Ícaro, em que o tema principal assume proporções insignificantes, vemos aqui uma multidão de gente que veio a Belém recensear-se e com discrição reconhecemos José e Maria, ela montada no burro, mas também vemos a cabeça da vaca, figura obrigatória do presépio. A técnica é maneirista: é a paisagem que invade o olho do espetador, que andará de um lado para o outro até reconhecer Maria e José, igualmente impressiona que o caráter religioso não é o tema dominante, é a aldeia cheia de vida, com gente a folgar e os miúdos brincam.
Recenseamento em Belém, Pieter Bruegel, O Velho
Este museu de Bruxelas tem algumas telas de Rubens que qualquer um dos maiores museus do mundo daria tudo para possuir. Rubens tratou em grande formato e repetidamente o tema da adoração dos magos. O viandante confessa que aqui se deteve fascinado pelos pormenores: ao alto, os mirones, uns bem nítidos, outros esfumados, em amena conversa; a cena maior, obviamente, é a contemplação dos magos, os grandes do mundo curvam-se diante do Filho de Deus, mas é enternecedor o rosto e a postura de Baltasar, olhar mais carinhoso não há e as mãos recurvadas em oração traduzem todo o simbolismo que Rubens pretende imprimir aos três reis que seguiram a estrela para se curvar diante do rei dos reis.
Adoração dos Magos, Rubens
Estas Cabeças de Negros têm suscitado dúvidas quanto à sua autoria, apesar das dúvidas o viandante pressentiu nelas a dedada genial do grande artista. São esboços do mesmo indivíduo, com diferentes perfis, admite-se que este negro tenha sido um modelo apreciado em Antuérpia, pois pousou não só para Rubens como para Van Dyck e Jordaens. Prende a atenção a interioridade das feições, a reflexão, a bonomia, a contemplação absorvida, a expressão distante, Rubens não desenhou exatamente o mesmo rosto, faz experiências, mexe no nariz, o tamanho dos lábios, nas orelhas. O conjunto pode ser acidental, não passar de um exercício, mas é um momento gigante da pintura, o viandante não teve dúvidas, continua a não ter dúvidas.
Cabeças de Negros, Rubens
Tal como Rubens e Van Dyck, Jordaens está entre os maiores mestres da escola de Antuérpia do século XVII, está altamente representado no Museu de Bruxelas, atrai pela sua monumentalidade, pelo belo tratamento estilístico tanto ao profano como ao religioso, é um verdadeiro perito a mexer nas cores. O viandante rendeu-se a este quadro de grande alegria, o tema é retirado do folclore flamengo, o festejo da noite da véspera da Epifania, toda a família e a criadagem reunia-se à volta da mesa, havia um bolo com fava, a quem saísse a fava era eleito o rei da noite. Há aqui algo de desbunda completa, até uma mãe limpa o rabito do filho, a boa-disposição é contagiante.
O Rei Bebe, por Jabob Jordaens
Em dado passo, o viandante contempla retratos em série, só há um Rembrandt nos Museus Reais, este Retrato de Nicolaas van Bambeek, um rico comerciante de Amesterdão. Não se trata de ficar embasbacado com o único Rembrandt, ele é mesmo muitíssimo bom, veja-se a gola do comerciante, a iluminação que vem por detrás e do lado, e que permite o contraste entre o escuro da indumentária, o assombro das mãos, a barba rala, o nariz adunco, o olhar voltado para o retratista, tudo aparentemente tão simples, e sente-se que seria possível sair-se daquela imobilidade, atravessar a tela, e pôr-se a conversar com quem a contempla.
Retrato de Nicolaas van Bambeek, Rembrandt
A coleção de mestres estrangeiros no museu de Bruxelas é de uma infinita riqueza. O viandante bate à porta com regularidade da Coleção Gulbenkian, e não é a primeira vez que ali entra só para conversar com Francesco Guardi, o multimilionário arménio comprou por atacado uma série de telas que são indispensáveis em qualquer retrospetiva de Guardi. Estamos no século XVIII, Veneza vive um novo renascimento, Guardi dedica-se exclusivamente a pintar vistas, curiosidades, praças cheias de gente, os canais, as gôndolas. Este quadro do Doge Mocenigo pertence a uma série chamada de Festas Venezianas. Temos aqui o interior da Basílica de S. Marcos, não nos pode deixar indiferentes esta arquitetura grandiosa e o jogo da luz do sol com os mármores, o ouro, a cor dos mosaicos, a suprema mestria na gradação das cores.
O que aqui se recolheu tem a ver com as reminiscências de um domingo inesquecível, depois de ver esta esplendorosa arte flamenga e estrangeira, ainda houve energia para dar umas passadas pela Arte Moderna. Mas no essencial, foram estas as imagens que ficaram, na sua modéstia de recursos o viandante conhecera nos livros algumas destas obras-primas, daí a inefável alegria de as olhar no local a que pertencem.
O Doge Mocenigo aparece à multidão em S. Marcos, Francesco Guardi
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 22 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20674: Os nossos seres, saberes e lazeres (378): A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (6) (Mário Beja Santos)
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