sábado, 22 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20674: Os nossos seres, saberes e lazeres (378): A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2019:

Queridos amigos,
Tenho consciência de que a Bélgica não é muito afamada como destino turístico. Os eurocratas e as pessoas que ali vão em curta permanência referem os céus plúmbeos, as fachadas enegrecidas, muita monotonia. São clichés de quem não pôde ou não se interessou estudar previamente o que o país oferece, curiosamente a preços abordáveis, fora de Bruxelas encontram-se albergues e pensões a belos preços e quanto a comer há cardápios para tudo, e os transportes públicos, sobretudo o comboio, são inequivocamente abordáveis.
Ir a Gand, Liège, Namur ou Bruges, e daqui partir num autocarro até às aldeias, é exequível. Por exemplo, aqui fala-se em Tervuren. Pode passar-se um dia económico, vai-se de transporte público, o parque é imenso, a entrada no precioso museu não escandaliza, pode levar-se farnel, tudo somado é um dia útil a tilintar cultura e aconchego da natureza, sem atentar no orçamento.
Fala-se de experiência feita.

Um abraço do
Mário


A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (6)

Beja Santos

Este mostruário de recordações de um país que é profundamente querido ao viandante parece infindável, um dia destes fechamos o livro, até que novo regresso venha a ocorrer, com imagens tiradas nos locais, de nova visita ou em estreia, a Bélgica tem sempre revelações.
Estamos em Bruxelas, num local que se chama o Monte das Artes, de um lado, olhando para a estátua do rei Alberto I, o rei soldado, um patriota que ficou fora da Bélgica invadida, mas em torrão belga onde os alemães não chegaram, a combater ao lado dos seus fiéis compatriotas, está a escultura da rainha Elizabeth, não se percebe a insignificância, não que a senhora não fosse minorca, mas é uma imagem que parece um pão sem sal. O seu nome, pasme-se, continua a ser famoso e a correr o mundo inteiro, já que o concurso musical Rainha Elizabeth atrai regularmente grandes talentos em vários instrumentos, mas com especial incidência o piano.
Pois bem, subimos o Monte das Artes e estamos perto da Praça Real, logo atrai quem por ali passa uma construção de tipo Arte Nova, eram os Armazéns Old England, é hoje exemplar único. O viandante conheceu-o sem préstimo, décadas atrás, via-se o exterior e nada mais. Sucederam-se as petições públicas, e escolheu-se bem o novo destinatário, aqui vigora o Museu dos Instrumentos Musicais, assenta bem nesta belíssima estrutura metálica que nos remete para o que de mais prodigioso se construiu no final do século XIX.

Estátua da rainha Elizabeth, mulher de Alberto I.

Edifício Old England, hoje Museu dos Instrumentos Musicais, Bruxelas.

O viandante apanha um transporte para Tervuren, a meio caminho entre Bruxelas e Lovaina existe uma comuna cheia de história, mas o viandante vem com um fito, quer visitar, pela enésima vez, o Museu Real da África Central, não tem competidor no género em qualquer ponto do mundo. A história é bonita, conta-se em poucas palavras. Aquando da exposição universal de 1897, havia um pavilhão chamado Palácio das Colónias, destinava-se a mostrar as obras do Estado Independente do Congo gerido por Leopoldo II. O monarca socorreu-se dos mais inovadores arquitetos e artistas da Arte Nova, caso de Paul Hankar e Henri Van de Velde. Ora o rei quis juntar a esse edifício um museu de arquitetura mais clássica que ele sonhava vir a tornar-se um centro mundial de estudos e de investigações sobre África, Ásia e Extremo Oriente. E foi assim que nasceu uma arquitetura grandiosa, contrastante da Arte Nova do tal Palácio das Colónias e o seu conteúdo é interminável, vitrinas de insetos, plantas, peixes, histórias das explorações e recordações de Stanley e Livingstone, a arqueologia está sempre presente. Mas o viandante tem um fito preciso, passa como gato pelas brasas por toda esta bicharada embalsamada e detém-se junto das muitas amostras do génio escultórico dos povos congoleses. Entre as muitas sortes que a vida lhe permitiu, conseguiu comprar, no mercado do Benfica, em Luanda, em 1996, duas máscaras esplendorosas de arte Baluba e Bacongo, para não haver sarilhos alfandegários, foram apostos selos do Ministério da Cultura. E lá estão, impantes na sua beleza, numa sala doméstica.


Duas imagens do riquíssimo Museu da África Central, em Tervuren.

De um arredor de Bruxelas partimos para outro, o campo de batalha de Waterloo, aqui se realizou uma batalha sangrenta que pôs termo ao sonho napoleónico. É um imenso vale onde se destaca uma colina encimada por um leão vitorioso. Em 18 de junho de 1815 num imenso território compreendendo as comunas de Waterloo, Braine-l’Alleud e Lasne a coligação das tropas anglo-holandesas e prussianas conduzidas por Wellington e Blucher desbarataram o contingente napoleónico, ficaram 48 mil mortos neste imenso campo de batalha. Sabia-se em toda a Europa que era o momento determinante. Aqui findou a campanha dos Cem Dias, Napoleão abandonara o exílio da ilha de Elba, marchara triunfante para Paris, retomou as rédeas do poder, Luís XVIII fugiu, Napoleão partiu à procura de uma vitória decisiva, aqui perdeu tudo e foi exilado para a ilha de Santa Helena.

Monumento comemorativo à Batalha de Waterloo, 18 de junho de 1815.

Esta batalha e os seus atores ganharam dimensão mítica, foram imortalizados por pintores e escritores. O local mantém-se intacto, e ali perto há museus evocativos, veja-se este bivaque de Napoleão, que teve vida efémera.

O bivaque de Napoleão, Museu Wellington, Waterloo.

E parte-se agora para a província, procuram-se lugares de grande valor arquitetónico, um tanto fora dos grandes roteiros turísticos. O que é que esta nave, com pilares cruciformes alternando com colunas aparelhadas com capitel cúbico tem assim tão de fascinante? Trata-se de um estilo lombardo, não dispõe de abóboda, o que torna pouco explicável estes suportes tão pesados, há para aqui um mistério. O viandante não se importaria de passar aqui a noite de Natal, segundo a tradição 65 atores, todos originários da localidade fazem o presépio, consta que o evento é a mais emocionante das representações natalícias de toda a Valónia.

A nave de Saint-Symphorien em Saint-Severin-en-Condroz.

E daqui se passa para um cantão de Este, com uma história bem agitada: arbitrariamente estes cantões foram anexados à Prússia em 1815, restituídos à Bélgica em 1919, absorvidos pela Alemanha nazi em 1940, veio depois a libertação em 1944, estamos pois perto de uma fronteira que tem mudado bastante de dono, vai para dois séculos. A escassos quilómetros do grande ducado do Luxemburgo, a torre do burgo Reuland, com telhas de ardósia e campanário em forma de bolbo é a grande atração. O castelo-fortaleza foi berço de uma das mais antigas famílias feudais de Eifel. O que surpreende é uma paisagem completamente distinta do que vemos na Valónia ou na Flandres.

Reuland.

É um castelo-fortaleza, o de Bouillon, com dupla ponte-levadiça, poços profundíssimos, com casamatas, masmorras, escadas secretas… Um verdadeiro castelo medieval, uma fortaleza que remonta à segunda metade do século IX e que conheceu reformulações até ao século XVI. A parte mais antiga da fortaleza é a torre de menagem, contemporânea de Godefredo de Bouillon, duque da Baixa Lotaríngia, que participou na primeira Cruzada e que o turista que visita Bruxelas encontra, em postura gloriosa e guerreira, na Praça Real, entre museus, bem perto do Palácio Real.

Castelo de Bouillon.

Descemos agora às Ardenas, não muito longe de Condroz, estamos numa região de florestas e pastagens e aqui surge inopinadamente esta construção deslumbrante, a torre data do século XIV, parece que vai mergulhar na água de um lago, tem uma torre de menagem quadrada, vale a pena estar aqui em frente, a admirar um tão valioso património tão bem cuidado.

A quinta fortificada de Crupet.

A Bélgica guarda bons vestígios das suas beguinas, não eram propriamente lares para a 3.ª idade, acolhiam viúvas e viúvos (bem entendido, havia a exigência de vidas separadas), pagava-se o alojamento até ao fim dos seus dias, cada um com direito a um espaço próprio e outro destinado à vida comunitária, belas beguinas podem ser encontradas em vários pontos do país. A beguina de Bruges foi protegida, acarinhada de uma forma muito particular por Joana de Constantinopla, uma das duas filhas de Balduíno IX, impossível não ficar impressionado com o restauro e a bela manutenção, um encanto para os olhos e uma meditação sobre as fórmulas com que no passado remoto se praticava o acolhimento dos velhos, claro está, com algumas posses. Aqui finda o passeio por vários pontos da Bélgica, o tal país de quem soe dizer-se que é bastante monótono…

Beguinas de Bruges.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20653: Os nossos seres, saberes e lazeres (377): A Bélgica a cores que guardo no coração, e para sempre (5) (Mário Beja Santos)

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