segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20660: Notas de leitura (1265): Dicionário de Paixões, por João de Melo; Dom Quixote, 1994 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2017:

Queridos amigos,
João de Melo não precisa de apresentações, basta pensar nesse livro memorável que é "Autópsia de um Mar de Ruínas", em Fevereiro de 2017 apareceu a 9.ª edição reescrita pelo autor, é romance marcadamente autobiográfico da sua experiência como furriel enfermeiro algures no Norte de Angola.
Peguei neste "Dicionário de Paixões" à procura da alma açoriana, que ele tão bem exprime e dei com estas páginas a que nenhum velho combatente pode voltar a cara. Alguém que sabe confessar-se assim: "Trata-se de uma paixão inquieta, povoada, um pouco depressiva talvez. Mas trago-a desde a minha infância numa ilha dos Açores - desde o tempo em que me era preciso ser amado por todos; justamente porque tinha já uma imensa e universal paixão por toda a gente".

Um abraço do
Mário


A guerra de África em páginas soltas de João de Melo

Beja Santos

O escritor João de Melo é a figura cimeira tanto no estudo da literatura da guerra colonial como operário dessa escrita. Devemos-lhe “Os Anos da Guerra”, organizou em 1988 uma antologia de escrito representativos das três frentes da guerra e que ainda hoje é de consulta obrigatória. Em 1984, publicou “Autópsia de um Mar de Ruínas”, em 9.ª edição, reescrita em 2017, está na lista das obras-primas da literatura de guerra. Em “Dicionário de Paixões”, que apareceu em 1994 nas Publicações Dom Quixote, João de Melo deu à estampa crónicas que são textos que falam de sentimentos, visões, desejos, estranhezas, aproximações, experiências dos sentidos. Chamou-lhes crónicas sentimentais e ensaios de sonhos, fragmentos de uma autobiografia apócrifa.

Respigo das suas lembranças de África, combateu na região de S. Salvador, no Norte de Angola:  
“Continuo a vê-las, as crianças de África, chegaram à porta de armas, obedecerem à ordem do soldado louro que está de plantão e as manda pôr em formatura. Trazem velhas latas cheias de ferrugem, os rostos sujos, os pés descalços, as roupas inacreditavelmente rotas: ainda assim, há nelas uma muito extraordinária dignidade, uma alegria que só é possível no rosto e na inocência das crianças. Vêm pelos restos e comida, pelo rancho que sobra sempre do fastio da tropa. Entram em fila, quartel dentro, marchando ao som dos dedos que tamborilam o fundo das latas. Vejo-as e oiço-as. São as crianças de África, e vão-se lentamente acercando do refeitório da tropa. Param alguns metros, suspendem o clamor do batuque. Faz-se um silêncio trágico, feito de uma paciência triste, árida, longamente vexada. Penso: não é o justo o mundo tão grande e a grandeza humana tão pequena (…) Vejo-as, ontem e hoje, com os olhos da memória, nos livros que li e na prosa que em mim regressa. Continuam as sôfregas mãos, trémulas de febre, a mergulhar no lixo, no riso e nas vozes trocistas da tropa. Com os dedos em concha, pescam escamas, espinhas trucidadas de peixe, bagos encaroçados de arroz, ossos esburgados, batatas por descascar. Comem clandestinamente, devorando, rilhando o dente, ardendo em febre fria, escondendo-se do soldado que varre agora do lado de lá do refeitório. Disputam aos cães os restos de comida, com a avidez canina e a maldade de se empurrarem umas às outras, numa rixa surda. Enchem as latas com lixo e comida, deitam a correr parada fora, papá, mamã e os cambutas vão ter enfim o jantar assegurado”.

Estamos agora em plena guerra colonial, chegou uma mensagem ao aquartelamento, o operador de transmissões, qual alquimista, decifra códigos ultrassecretos, e a mensagem decifrada é entregue ao superior. “Lendo-a, o capitão estremeceu, pálido, quase estarrecido, como se nele viesse a notícia do seu próprio funeral. Ao entrar no gabinete, vinha aéreo, poroso, levitante. Chamando os alferes à sua presença, trancou a porta por dentro, abriu perante eles grandes gestos nervosos, antes de partilhar o insuportável conteúdo daquele segredo. Nela se garantia (e a PIDE nesse tempo, tal como Deus, nunca se enganava, que cerca de 300 elementos inimigos e respetivas famílias haviam atravessado a fronteira, a fim de se entregarem às tropas portuguesas. Impunha-se, por isso, que os quartéis do Norte ficassem em estado de máxima prevenção”. Começava assim a operação para intercetar e recolher os tais desertores. Marcara-se um lugar previsto e saíram pelotões a cumprir a sua missão.
E temos o desfecho:
“Um quarto para a meia-noite, e nós no mato, abrindo trilhos no capim, em progressão para o objetivo. 200 metros à frente, desarmados e em pânico, o alferes e os furriéis repetiam o santo e a senha. De duas uma: ou o guia dos desertores inimigos já lá estava à espera, de braços erguidos e pronto a entregar-se, ou então seriam eles a cair, abatidos como tordos, trespassados por uma rajada de metralhadora (…) Longas horas à espera desses corvos noturnos – espiando o capim, ouvindo a ilusão dos pequenos ruídos da noite, vendo o que por força sempre fora invisível. Até que o dia clareou e pelo rádio veio a ordem de suspender a operação. No regresso, com alma embrulhada nos logros frios do desencanto e da derrota, vivêramos não um pesadelo, mas a crueldade de mais uma mentira de guerra… Ao fim desse mesmo dia, uma segunda mensagem veio repor a outra, a segunda verdade da nossa tragédia: afinal, tratara-se de um simples exercício militar; nunca estivera prevista a entrega voluntária de quaisquer desertores. Mas, em contrapartida, os sublimes comandos portugueses mandavam dizer que as nossas tropas tinha estado perfeitamente à altura das circunstâncias”.

E fala também dos heróis da guerra, operacionais que nunca se separavam da sua faca de mato, nem das granadas presas ao cinturão. “Muitas virtudes assistiam aos heróis da minha guerra. Era o caso de dormirem apenas o essencial. Sem sono nem fadiga, passavam as noites à bebida, temperando-as com latinhas de anchovas, atum, sardinha de conserva, pasta de fígado. Ao terceiro dia de permanência no quartel, entre uma operação e a seguinte, urravam como bois pela parada, clamando contra o tédio, desesperados com os formigueiros do cio, fartos de tudo, implorando que os deixassem voltar depressa para a mata (leia-se guerra) e lhes dessem turra a matar (…) Os heróis da minha guerra espumavam de raiva contra as ideias dos traidores de Portugal, e largavam bojardas, partiam garrafas de cerveja contra o pavimento da messe dos sargentos. Mas eu sabia que eles, todos eles, absolutamente todos, um dia, quando as coisas mudassem e outra fosse a linguagem (e outros os donos e servos dela), seriam impolutos, sérios, democratas. E havia de ouvi-los garantir que nunca tinham dado um tiro ou maltratado um prisioneiro de guerra, que também eles eram vítimas do fascismo, que em Angola, em Moçambique e na Guiné se tinham empenhado não em fazer a guerra, mas em sabotar as operações, numa espécie possível de desobediência ao regime colonialista de então”.

Falando do seu autorretrato, volta a falar da guerra:
“Dizem que por ter feito a guerra colonial em Angola (1971-1974), perfilhou dela uma visão sensível, determinante, porventura radical, nos romances, novelas, contos e antologias que sobre ela publicou. Nada disso é certo nem falso”.

Não esqueçamos que o título da obra é Dicionário de Paixões, onde o autor explicita:
“A paixão existe. Não é um sentimento perdido. Ela tem a idade, a sombra, a explicação e o destino da literatura. A sua honra, também. Nunca o esquecimento foi necessário à literatura. O prazer e o sofrimento sim. Os seus excessos, também. E as suas perdições”.
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Nota do editor

Último poste da série de 14 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20649: Notas de leitura (1264): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (45) (Mário Beja Santos)

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