segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20681: Notas de leitura (1267): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, por João de Melo, 9.ª edição reescrita pelo autor; Publicações Dom Quixote, 2017 (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Fevereiro de 2017:

Queridos amigos,
Em 1984, João de Melo deu à estampa, sob forma de romance, a sua experiência como furriel enfermeiro em Calambata, São Salvador, Norte de Angola. Livro duríssimo, a contingência militar entremeada com a opressão colonial explorando os paupérrimos agricultores do café, a vida martirizada nas sanzalas onde não se pode iludir que há simpatias com os movimento os de libertação.
Em 2017, temos uma versão reescrita que veio acentuar as duas narrativas paralelas entre tropa e colonos e tropa, colonos e colonizados. Esta nova versão é deliberadamente excessiva em tudo: muita gente gananciosa e torpe, muito ideal revolucionário, a tal ponto que podemos encarar esta nova versão como um manifesto anticolonial a pretexto de se situar inteiramente num palco de guerra, Calambata, onde o autor ganha contornos de um verdadeiro apóstolo amado pelo gentio.
Texto de inegável qualidade, e exigente na interpretação desses excessos que foi aquele mar de ruínas em que viveu João de Melo e que agora o reconta sob a forma de uma guerra sem sentido.

Um abraço do
Mário


Autópsia de um mar de ruínas, nova edição reescrita pelo autor (1)

Beja Santos

João de Melo
“Autópsia de um Mar de Ruínas”, por João de Melo, 9.ª edição reescrita pelo autor, Publicações Dom Quixote, 2017 tem por base uma das obras consagradas da literatura da guerra colonial, cuja 1.ª edição data de 1984. João de Melo explica o ponto de partida e a reformulação. Onde inicialmente pesava a narrativa da presença colonial em Calambata, perto de São Salvador, no Norte de Angola, um quartel erguido sobre um monte estratégico tendo duas aldeias africanas por baixo, agora as duas narrativas decorrem paralelamente: o que fazem os militares em contraponto com a vida quotidiana nas duas sanzalas, onde vivem pessoas de diferentes etnias e soldados que desertaram dos exércitos de libertação. Nesta reescrita, torna-se mais claro quais as duas razões sociais do que nas edições anteriores. Reescrever tem os seus custos, João de Melo, conscientemente ou não, alterou o cerne da obra, de um romance de guerra toda a trama ganha a dimensão de um retábulo barroco, não há roupagem que não se torne excessiva, ondulante, sujeita a leituras diferenciadas.

Logo aquele soldado no seu posto de sentinela em completa tensão e desorientação com os movimentos que pressente na mata, seguem-se fogachos, a tropa responde a um ataque fantasma:
“Dezenas de metralhadoras ligeiras, apontadas ao foco luminoso do Seixel, uniram-se às rajadas das quatro Bredas dos postos. Bocas de chamas em crepitação, das quais saíam, numa torrente, balas incendiárias que pareciam lançar para os céus de Calambata um estrondo de um vulcão em atividade”. Entra em cena um capitão medíocre e reles, de nome Marinho, oficiais e sargentos são pessoas pouco estimáveis, depois deste grotesco capitão surge o alferes Alexandrino que leva uma coça valente no escuro. Mas a figura do capitão é alvo de uma atenção implacável: “Ia na terceira comissão de serviço, depois de Moçambique e da Guiné. Envelhecera depressa de mais. Era-lhe difícil lembrar-se de quais eram, e como, as suas qualidades marginais. Deixara-se cair no cerne das maquinações de guerra”. O capitão também não aprecia o alferes Alexandrino: “Nunca gostara daquele bigodinho ralo e descaído sobre as pontas. Detestava a sua cabecinha adamada, a voz aflautada, o risinho tortuoso”.

Como se tece a narrativa em planos paralelos, estamos agora na sanzala, Romeu pontapeou o cão do senhor Valentim, autoridade colonial, vai ser sovado, brutalmente sovado. O soba Mussunda não reage, a sua autoridade é simbólica, sabe que não manda na sanzala, vive sob a ordem dos brancos. Num rasgo de dignidade pede ao polícia Valentim para parar, o agente colonial fica enraivecido, o chicote vira-se contra o soba: “Vibra o primeiro golpe no pescoço de Mussunda, que abre muitos olhos atónitos, ante a violência da agressão. Mais cego ainda, o golpe seguinte atinge-o em pleno rosto. O branco não está pelos ajustes. Assenta-lhe um punho na boca, estende-lhe uma joelhada por baixo, nos órgãos sensíveis dos machos”. Está esclarecida a correlação de forças, é a vez de a tropa transpor os velhos perigos do mato, uma coluna põe-se em movimento.

E João de Melo mostra os beneficiários da guerra, gente do quadro permanente e colonos, em pinceladas brutais:
“Tinham vindo ali parar trazidos pela mãozinha rufiona do dever patriótico dos outros, dos outros que serviam a pátria à sombra das cidades e dos seus palmares junto ao mar; dos outros que ganhavam o dinheiro com a guerra, dormiam, tranquilos e saciados, com um braço por cima do corpo amado das mulheres; dos outros que planeavam surdamente a morte à distância e criam mais e mais e sempre mais das tropas: armas apreendidas, mortos e feridos em combate, prisioneiros de guerra para interrogar sob tortura da fome e da sede, muita pancadaria, mutilações e mortes anunciadas. Havia-os de todos os aspectos próximos e distantes, desde generais velhos, atormentados pelo reumatismo, que usavam faixas cor de quaresma sobre as fardas de gala e traziam os dedos sáurios em louvados de negro, não possuindo mais nada de seu: nem o cabelo, nem o bigode com que lambiam a hierarquia dos poderes militares, de baixo para cima. Havia sargentos excedentários nos depósitos e arrecadações de víveres, outros à sombra dos paióis e das secretarias, outros de quem se dizia serem de uma palidez assustada, de uma fealdade fria, com o mistério profissional que a toda a gente lembrava negócios secretos, expedientes turvos, favores, homossexualidades reprimidas. Havia cabos gorduchos, de fardas muito coçadas pelo uso, com uns olhos alcoólicos e muito propósito de estragar a vida dos inferiores – campónios pouco mais do que analfabetos que pela mesma via das comissões sucessivas de serviço no ultramar reclamavam a promoção a sargentos. A outra realidade da guerra começava na figura dos colonos, donos de tabernas, mercearias e lojas de roupa, alguns dos quais, ao serem desmobilizados, acabavam por ficar em África, cafrealizados em pleno mato. Outros perdiam-se por outros caminhos, no tráfico dos homens contratados para irem trabalhar como escravos nas roças e fazendas, nos negócios do café e do algodão, nos comércios e contrabandos das cidades”.

Mas João de Melo tece considerações ainda mais punitivas:  
“Colonos de ontem e de hoje. Antes, usavam caçadeira e chicotes sangrentos nas costas nuas dos negros. Agora, dão o braço aos funcionários da Administração, aos polícias à paisana, ao regedor e ao pároco”. Parte a coluna e entra em cena João de Melo com o nome de furriel Gouveia, o enfermeiro, é um apóstolo estimado por todo aquele gentio: “As 750 pessoas de Calambata, entre militares e civis, ficavam entregues ao expediente, à intuição clínica e ao honesto estudo de Gouveia, um rapaz que sofria de insónias e não dava nada por aquela guerra nem por outra qualquer. A esperança do furriel estava toda posta nas crianças desprotegidas de Calambata, nos partos improvisados, no olhar de lodo e de pura bondade das velhas senhoras, que se sentavam à porta das suas cubatas, na tensão arterial, no pulso agónico dos anciãos, nos assobios de asma que se lhes soltavam dos pulmões para os seus ouvidos. Vacinava os meninos contra a cólera, a difteria, o sarampo, a Varíola e a tuberculose”. Parece que este furriel Gouveia precisa de ser vigiado, jamais o leitor merecerá a explicação sobre o seu passado antifascista ou os seus credos anticoloniais.

E temos a apresentação das crianças que vêm até ao quartel à espera das sobras do rancho:  
“Os pobres infelizes meninos atacaram em bando os caixotes do lixo rasparam com as mãos o arroz encaroçado no fundo dos tachos e panelas, serviram-se de gravetos para remover as bolas de cimento do esparguete e as cabeças do peixe. Com as mãos a servirem de conchas, foram pondo para dentro das latas enferrujadas, com uma pressa de predadores, porções de sopa, pedaços de pão ensopado no caldo, os ossos mal raspados ou ruídos que levaram para os irmãos mais novos e mais velhos, para mamã doente, para vavó com fastio de morrer em breve”.

E a trama romanesca volta a centrar-se nas sanzalas de Calambata.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20672: Notas de leitura (1266): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (46) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

"Esta nova versão é deliberadamente excessiva em tudo".

Diz Beja Santos, e eu acredito.

E a próxima versão será ainda mais excessiva, penso eu.

É que a luta continuará!