Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 2 de março de 2020
Guiné 61/74 - P20700: Notas de leitura (1269): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, por João de Melo, 9.ª edição reescrita pelo autor; Publicações Dom Quixote, 2017 (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Fevereiro de 2017:
Queridos amigos,
São notórias as mudanças que João de Melo introduziu no seu romance dado à estampa em 1984. Onde, na primeira versão, dominavam as sequências da guerra à volta da qual se movia a exploração colonial numa atmosfera caótica de vida de sanzalas, agora há um confronto permanente entre o que se passa na guerra em geral no Norte e as suas incidências em Calambata, quartel e duas sanzalas. Nesta nova versão é o libelo anticolonial que triunfa, o destino da guerra tornara-se cada vez mais turvo.
É um livro duríssimo, a dimensão ideológica é muito mais saliente, por vontade do autor é um livro para ser amado ou detestado, a despeito dos inegáveis primores literários.
Um abraço do
Mário
Autópsia de um mar de ruínas, nova edição reescrita pelo autor (2)
Beja Santos
Importa recordar que este romance “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo, Publicações Dom Quixote, 2017, é uma versão reescrita daquele que foi dado à estampa em 1984. É mais encorpado e, como o autor justifica, potencia duas narrativas paralelas: “Uma centrada na ação dos militares portugueses no Norte de Angola, outra no quotidiano de medo e de miséria, na revolta silenciosa e fria, na vitimização de duas sanzalas. Numa delas vivem pessoas de distintas etnias que para ali foram desterradas sob suspeita de relação familiar ou cumplicidade com os guerrilheiros. A outra aldeia fundaram-na soldados que desertaram dos exércitos de libertação e se renderam à tropa, para com ela combater a guerrilha que se infiltrava em território angolano a partir da fronteira”.
Há que reconhecer que o texto que João de Melo reserva à atmosfera das sanzalas é muitíssimo bem elaborado, implica o leitor em ambiente africano que o autor estudou com apurado rigor: “Mamã Josefa zanga de repente. Berra para os miúdos que nada disso interessa nas pessoas que não podem ir na escola aprender as coisas que estão falar para aí. Calem-se a boca, já! Tou doente em minha cabeça. Tomara haja sempre comida para se comer e não venha a guerra na Calambata matar nas pessoas. Logo vem vavó Katuela se manifestar, com sua voz envinagrada: menino pequeno tem mesmo é de falar da boca para fora as coisas que vai aprendendo e que precisa nunca esquecer, pró bem da nossa terra e do nosso povo, ‘tá ouvir, Josefa? E fala sua infância distante, sempre na escuridão da ignorância, que nem mesmo pôde aprender nas letras do português dos brancos”.
Os meninos da sanzala vão até ao quartel na mira de arrecadar os restos do rancho, por vezes havia respostas cruéis, como a do primeiro-sargento que assolava os cães nas pernas dos cambutas, mas os meninos não desistiram: “Os miúdos iam saltar os muros baixos do refeitório, à espera dos restos da comida dos soldados. A fome que eles tinham, esses meninos! Xi, mesmo magoa o coração da gente. Barriga parecia que falava no lugar da boca, as tripas enroladas como jiboias enfurecidas. Se sobrava comida, cozinheiro Augusto, um bailundo, sipaio da tropa, procedia à distribuição: concha de sopa em cada um, uma batata, bocado de pão misturado nas latas velhas – onde que as mãos desses fulaninhos mergulhavam à pressa, pois a fome estava lhe esperar havia muitas horas”.
O furriel Gouveia percorre a cidade de São Salvador, encontrou alguém que lhe traz notícias da família, por ali deambula, e tem aqui lugar um episódio tocante:
“Sentiu à sua beira a presença de um menino perdido que o seguia e o fixava pelas costas. Devia querer pedir-lhe uma moeda. Procurou nos bolsos do dólman, e nada: não tinha trocos. Quando atentou melhor na criança, viu um rosto largo, salpicado de lama, com muito ranho no nariz. Enojado, pensou em enxotá-lo, mas suspendeu o gesto e disse-lhe:
- Tem dinheiro não, minino preto; paciência então, minino preto.
- Furrié, nosso furrié…
- Estou-te a ouvir ainda, minino preto. Diz logo.
- Não queres ir foder na minha mãe?
- Se você queres ir fodes na minha mãe, nosso furrié, vem então, que está te esperar ainda. Cinquenta escudos, é só.
- Nosso furrié, ouve ainda: se não queres mesmo ir na minha mãe, eu vou então te fazer punheta, vinte e cinco tostões o meu preço”.
É um romance em que não se dá tréguas à brutalidade: emboscadas com muitos mortos e feridos, agonizantes, muito trabalho forçado, a exploração dos preços do café, um alferes a passear-se em Luanda com um colar de orelhas ao pescoço, a destruição de sanzalas, medida punitiva, um exemplo para que os guerrilheiros não se esqueçam de que morrem homens, mulheres e crianças nos locais que os acolhem. Os guerrilheiros aparecem sobredimensionados, agressivos, fulminantes:
“A nova ofensiva chegou na manhã do dia seguinte, à entrada para a ponte do rio Luvo. Um sopro de aço explodiu e ergueu no ar a pesadíssima ferragem da Berliet, obrigando-a a sair da picada para a orla do capim, com a dianteira destruída. Aconteceu algo de idêntico a uma coluna da Luvaca, dias depois: viajam ao encontro de um fim de semana na cidade de São Salvador, quando de novo uma mina de alta potência explodiu, destroçando uma segunda Berliet. Seguiram-se os ataques, numa só noite, aos quartéis do Luvo, do M’Pozo e da Mama Rosa. Todo o Norte se encheu de sons, estouros e desvarios. Voaram casernas desfeitas pelas balas de canhão, telhados, placas de zinco, trens de cozinha, bidões crivados pelo tiro a tiro das espingardas e de outras armas ligeiras. Os cães do quartel a uivar à morte”.
Calambata irá sofrer as consequências, mais patrulhamentos e interrogatórios nas sanzalas. Iremos assistir a nova onda de violência, os guerrilheiros estão manifestamente próximos, a polícia política entra em campo. João de Melo encaminha o desfecho final para um martírio que deixa uma mensagem de esperança. O herói chama-se Romeu, andava desaparecido, o alferes Alexandrino ameaça com uma terrível repressão, Romeu aparece, sabe que vai ser executado para não haver mais imolações. O alferes Alexandrino parece o demónio à solta:
“Morde os lábios, puxa o bigode. Terá de enfurecer-se. É o que esperam dele: uma fúria a fim de repor a normalidade. Fecha os punhos, dá alguns passos em frente, sopra a sua ira na cara do outro. E larga-lhe um pontapé que lhe acerta em cheio no baixo-ventre. Romeu enrolha sobre a barriga, fica de joelhos. Alexandrino, que ainda não cumpriu o seu papel, despede-lhe um murro na nuca, o qual soa na noite como uma marretada. Ainda assim, Romeu não se defende, não grita nem geme. A sua dor é também a dos outros”.
Está sentenciado o martírio, falta a execução:
“Dois soldados erguem-no pelas axilas e levam-no de rastos, semiconsciente. Ajudam-no a subir para o carro. O povo assiste ao endireitar do busto e à altivez da cabeça levantada, a escorrer sangue como um Cristo coroado de espinhos. Os carros afastam-se, ganham a subida da rampa até à porta do quartel e à pista dos helicópteros. Só então o silêncio do povo se rasga de alto a baixo. Ficam para trás os gritos, os prantos, as raivas loucas que as pessoas guardam dentro de si, no sítio que os missionários estrangeiros do Sul falavam outrora se chama alma, mas não é nada. A alma é o coração em sangue. O que nos dá e o que nos tira a vida, mais a razão e a luz perpétua da nossa única estrela”.
O romance reescrito de João de Melo toma novos revérberos, assume novo peso literário nesta mudança, é mais um retrato de uma tropa exangue e um libelo anticolonial onde no passado sobressaía um indiscutível romance da literatura de guerra, a sua primeiríssima narrativa, que agora fica sujeita à esperança o dia da independência de Angola.
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Notas do editor
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Último poste da série de 28 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20691: Notas de leitura (1268): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (47) (Mário Beja Santos)
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3 comentários:
Este livro de João de Melo é um dos mais chocantes livros que me foram dados ler sobre a guerra em Angola, mas não me surpreende. João de Melo carregou nas tintas neste romance, mas muito do que nele deixou escrito corresponde à realidade que foi por ele mesmo vivida. Ora vamos lá a ver.
Em Angola não existiu nenhum "general Spínola" que tivesse impulsionado uma campanha de aproximação e promoção económica e social da população local, à semelhança do que o verdadeiro general António de Spínola fez na Guiné, com a sua campanha «Por Uma Guiné Melhor». Não houve nunca um comandante-chefe das Forças Armadas em Angola ou um governador-geral de Angola que tivesse proposto uma «Angola Melhor». Nem o general Venâncio Deslandes o fez, nem o general Costa Gomes, nem o general Luz Cunha, nem ninguém. Para a propaganda do regime, Angola já era um paraíso de harmonia racial, onde brancos, mestiços e negros conviviam pacificamente à sombra da bandeira de Portugal, e onde todos se sentiam orgulhosamente portugueses. Guerra? Havia, mas era-nos «imposta do exterior». Assim proclamava o regime, para o qual Angola era Portugal. Para quê uma Angola melhor, se Angola já era perfeita?
Resultou daqui que em Angola (sobretudo nas zonas rurais e de guerra) houve atitudes e comportamentos condenáveis, tanto por parte de civis brancos como por parte de militares metropolitanos. Mesmo nas cidades angolanas, onde as formas mais brutais de colonização estavam total e completamente ausentes, havia uma clara separação entre brancos (que viviam no centro) e negros (que viviam na periferia), só interagindo entre si no que era estritamente necessário. De resto, os brancos conviviam com brancos e os negros conviviam com negros, salvo na cidade de Benguela que, aliás, sempre foi do "reviralho". Poucos brancos tinham amigos negros. Em Luanda, nomeadamente, os intelectuais brancos "de esquerda" só conviviam com um negro, que era o dramaturgo Domingos Van Dunem. Os que não eram "de esquerda", nem com ele.
Quero dizer com tudo isto que, se o livro "Autópsia de um Mar de Ruínas" pode parecer excessivo, exagerado e até ofensivo a quem fez comissão militar na Guiné, ele não o é tanto como pode parecer. Em Angola, fora das cidades, muitas tropas metropolitanas comportaram-se como tropas de ocupação e muitos civis brancos comportaram-se como tiranetes sem escrúpulos. Ninguém lhes exigia «uma Angola melhor».
(continua)
(continuação)
Os casos narrados por João de Melo em "Autópsia de Um Mar de Ruínas" podem ser confirmados ou infirmados por quem deles teve conhecimento. É, precisamente, o meu caso. O Mário Beja Santos acha que «[o]s guerrilheiros aparecem sobredimensionados, agressivos, fulminantes». Achas mesmo, Beja Santos? Pois logo a seguir fazes a seguinte transcrição:
Aconteceu algo de idêntico a uma coluna da Luvaca, dias depois: viajam ao encontro de um fim de semana na cidade de São Salvador, quando de novo uma mina de alta potência explodiu, destroçando uma segunda Berliet.
Este incidente aconteceu na realidade e dela resultou um número de mortos que não sei precisar, mas foi seguramente superior a seis. Também não me lembro do número de feridos. João de Melo só se enganou numa coisa: escreveu que eles viajavam «ao encontro de um fim de semana na cidade de São Salvador», mas na verdade eles iam a caminho de Maquela do Zombo, para passarem uma noite de sábado nos copos, no cinema, nas "meninas", etc. Iam alegres e descontraídos, pois há dois anos que para os lados de Luvaca não tinha havido qualquer confronto. Eles mesmos já tinham mais de metade da comissão militar feita e nunca tinham ouvido um único tiro. E de repente... Um grupo móvel da FNLA entrou em Angola vindo do Zaire (a fronteira ficava a meia dúzia de quilómetros de Luvaca), minou a estrada e emboscou-os. Foi uma tragédia semelhante a outra, terrível, sofrida pela companhia de Calambata, a que o próprio João de Melo pertencia e que ele descreve em páginas de extremo dramatismo noutro capítulo do livro. Como sei eu isto?, perguntarão. Eu mesmo encontrei-me uma vez em Maquela do Zombo com militares de Luvaca, os quais me contaram pessoalmente o que tinha acontecido com os seus infelizes camaradas.
Mudando de assunto, há uma palavra no romance que está errada. Não é que seja importante, de maneira nenhuma, mas já que estou com a mão na massa... A palavra em questão é cambutas, que é usada com o significado de miúdos, garotos, cachopos, etc. Em Angola, a palavra cambuta existe, é até muito comum, mas só é aplicada a pessoas de pequena estatura e só se aplica a adultos. Em vez de serem chamados baixinhos, em Angola são chamados cambutas. A palavra que João de Melo devia ter utilizado deveria ser candengues, ou então monandengues, que significa o mesmo.
Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano, C.Caç. 3535, B.Caç. 3880, Angola 1972-74
Fernando Ribeiro, concordo que Spínola não foi imitado pelos governadores gerais de Angola,embora em Moçambique constava que o governador Rebelo de Sousa teria tido grande sucesso quer internamente quer com os governantes vizinhos, mas aí sei pelas noticias daquele tempo, que como "colonialista", acompanhavamos todos os passos que se davam.
No entanto noto que não chegaste a aperceber-te do trabalho dos governadores de distrito que a partir de certa altura, 62/63 passaram a ser militares.
Falo apenas de tres distritos onde trabalhei, caso de Uige, onde o major Rebocho vaz, antecipou-se ao Spínola e com resultados reconhecidissimos, outro caso testemunhado por mim e colegas, em 1970, com o major Soares Carneiro, na Lunda, ele percorria todas as sanzalas, e já andava por ali a pegar fogo o Chipenda, mas o povo não aderia aos turras, e por fim até ao 25 de Abril, o major Branco Ló, no Cuando Cubango onde queria entrar o MPLA e já andava por lá a UNITA, mas ali era o povo que tinha uma atitude "contra estranhos" e os denunciava.
Nesses três distritos eu e colegas trabalhei sem protecção militar, inclusive soube do 25 de Abril três dias após, porque estava sem pilhas no transitor, num lugar bem isolado.
Esses governadores e outros, sem alaridos conseguiram resultados lindíssimos, e o resultado estava à vista no dia 24 de Abril de 1974, só que a guerra tinha passado procuração à Guiné.
O único lugar onde trabalhei com e para a própria tropa, foi exactamente em São Salvador e fui a todos os destacamentos de São Salvador onde João de Melo foi enfermeiro.
Foi no mês de Junho de 1966, aí quase não havia gente, nem actividades agrícolas, nem sei se em 74 aquilo continuaria na mesma.
Aí como vivia e trabalhava junto de dois oficiais e o alojamento era na messe dos oficiais junto do comando do batalhão, nunca vi tanto poker nem tanto wiskie, eu que anos antes como furriel não passei da lerpa e da cuca, fiquei um tanto surpreendido.
Mas o efeito do arame farpado e o marasmo dos quarteis era horrivel (em Angola).
Cumprimentos
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