quarta-feira, 6 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19556: Historiografia da presença portuguesa em África (153): Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Julho de 2018:

Queridos amigos,
Ficamos com uma grande dívida de gratidão com o Dr. Damasceno Isaac da Costa, ofereceu-nos um detalhado relato sobre a presença portuguesa, talvez tenha sido o primeiro funcionário colonial a referir com minúcia a vila de Geba, vê-se claramente que lutou junto das autoridades para que se desse uma reviravolta no deplorável estado da salubridade pública, sem titubeios, frontal, dirige-se ao Presidente da Câmara Municipal de Bissau e pede-lhe providências, não deixando de notar que quem ganhou foi a inércia, o deixa andar.

Um abraço do
Mário


Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (5)

Beja Santos

Este relatório consta dos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa e foi oferecido pelo seu filho Pedro Isaac da Costa ao antigo administrador de Bissau, António Pereira Cardoso, autor de um conjunto apreciável de documentos, muitos deles de leitura indispensável para conhecer a vida administrativa da Guiné, sobretudo entre as décadas de 1930 e 1950.

Este relatório, como se verifica pelo seu fecho, foi copiado pelo filho do autor. E diz-se que é de estranhar que tendo sido escrito em 1884 se refere a factos de 1888.

Atenda-se ao tempo: a Guiné é há pouco província autónoma, a presença portuguesa é muito mitigada, no fundamental está circunscrita a Bolama, capital da Província, Bissau, Cacheu e escassos presídios; o Dr. Damasceno produziu um documento ímpar, desvela a vida em Bissau, não esconde as condições degradantes da habitação e alojamento das tropas, dá-nos um curioso registo da vida no presídio de Geba e escalpeliza os aspetos dominantes da higiene e salubridade públicas.

Vejamos o que ele diz sobre a alimentação:
“Os habitantes da vila intramuros (está a falar de Bissau) não apresentam diferença de alimentação dos europeus; não acontece porém o mesmo com os indígenas cuja alimentação é especial. A base da alimentação dos indígenas é o arroz fervido em água e misturado com o caldo de baguiche, leite de vaca ou carne de porco corrupta, azeite de palma ou memberem (caldo de arroz) temperado com sumo de limão e malagueta. Alimentam-se também de milho, feijão, mandioca, batata, peixe seco e corrupto. O indígena conforma-se com os reveses da fortuna, mas o que se lhe torna sensível muitas vezes durante o dia é a ausência de bebidas alcoólicas. Os indígenas, pela sua natural indolência, têm pouca propensão para o trabalho; há, todavia, alguns que exercem profissões de ferreiros, sapateiros, carpinteiros, tecelões, marinheiros, oleiros e pedreiros.
As mulheres ocupam-se em pilar o arroz e em outros trabalhos e afazeres domésticos, aos quais se entregam quotidiana e incansavelmente para sustentar os vícios do homem em cuja companhia vivem. O indígena não é ambicioso, contenta-se com o que ganha e não se sujeita ao trabalho enquanto tiver com que alimentar-se”.

Mudando o rumo das suas observações, dá-nos um quadro bastante negativo da limpeza das ruas e das habitações, bem como dos cemitérios:
“Sobre o estado higiénico da povoação e cemitério, dirigi à Câmara Municipal e aos administradores do concelho o seguinte ofício:
A salubridade de uma povoação depende em grande parte das condições higiénicas em que a mesma se acha. A vila de Bissau é considerada insalubre mais que nenhum outro ponto da Guiné, o que é devido não somente às más condições climatéricas como às más condições higiénicas […] sou a indicar a V. Ex.ª. algumas medidas que convém sejam adoptadas com a máxima urgência. Existem dispersos na vila muitos pardieiros que além de imprimirem uma má aparência e ameaçarem o seu desabamento sobre os prédios vizinhos, são altamente prejudiciais à salubridade pública, pois que servindo eles de depósito de imundícies de toda a espécie aos indolentes constituem outros tantos focos de insalubridade. Além dos mencionados pardieiros, existem na vila muitos lugares públicos que, pelo mau estado em que se acham, contribuem igualmente como aqueles para a insalubridade.

O cemitério municipal acha-se num deplorável estado, aquele lugar onde repousam as venerandas cinzas dos nossos semelhantes está cheio de pedras e ervas daninhas, o seu solo em vez de plano é desigual; as sepulturas não se distinguem do resto do terreno, à excepção de oito, por se acharem cobertas irregularmente com alguma porção de terra; elas não possuem cruzes ou marcas funerárias que assinalem a época do enterramento, circunstância esta gravíssima, sobretudo quando se trata de proceder às exumações.
Atrás do cemitério, e junto à povoação dos Grumetes, existe uma pequena extensão de terreno, onde se nota um grande número de sepulturas, das quais doze são recentes, sendo naquele lugar, segundo me consta particularmente, inumados cadáveres de indivíduos falecidos extramuros. Fora deste sítio, existem dispersas várias sepulturas de indivíduos falecidos intra e extramuros, segundo me consta.
O cemitério, e a vasta campada que o circunda, representa, pois, um outro foco de insalubridade. 

Do que fica exposto, resultam as seguintes indicações que convém que sejam adoptadas com urgência: destruir os pardieiros; destruir por meio de incineração os monturos e proceder à limpeza dos lugares públicos; expurgar o cemitério de ervas e pedras, nivelá-lo, colocar cruzes sobre as sepulturas, inscrevendo nelas a época do falecimento; proceder aos precisos arruamentos e à cultura de plantas apropriadas enquanto não esteja concluindo o regulamento que estou confeccionando para os cemitérios; proibir expressamente que os cadáveres dos cristãos falecidos nesta vila, quer intra quer extramuros, sejam enterrados fora do cemitério municipal; construir um outro cemitério ao lado do actual e onde deverão ser inumados os cadáveres dos indivíduos não-cristãos.

Convém notar-se que a Câmara Municipal para a execução das medidas higiénicas possui um orçamento e um código de posturas, aquele aprovado pelo Conselho de Província e este pelo de Cabo Verde, em 1872. No código de posturas a que me refiro deparam-se as seguintes importantes disposições: é proibido ter nas ruas couros podres ou outro qualquer objecto que exale mau cheiro; é proibido criar porcos ou leitões dentro de cada habitação, nos quintais ou pátios ou em edifícios ali existentes; é igualmente proibido ter ou conservar porcos ou leitões amarrados ou presos na rua ou à porta da casa de morada ou de qualquer estabelecimento.
Infelizmente, nenhuma providência se vê tomada pelas respectivas autoridades para dar cabal cumprimento a estas importantes mas triviais disposições da higiene.”

De seguida, centra a sua atenção na vida hospitalar, é igualmente crítico, não esconde o estado desolador das instalações:
“Existe na vila, descrito no orçamento da Província com a denominação de enfermaria e funciona numa casa particular arrendada pelo Governo. Possui duas enfermarias com nove metros de comprimento e seis de largura, um quarto para os enfermeiros, um dito para a secretaria, um dito para os doentes particulares, um dito para a farmácia, dois ditos para a arrecadação de roupas e utensílios de farmácia e um dito para a cozinha. Todo o edifício é circundado pelo lado interno por uma varanda e está limitado por um muro de dois metros. O pavimento inferior deste edifício serve para armazenar diversas mercadorias que dão entrada na Alfândega. Todos os higienistas são unanimemente concordes que sendo os hospitais estabelecimentos insalubres de primeira ordem devem ser situados pelo menos a 200 metros de distância da povoação mas o de Bissau acha-se situado no centro da povoação. A povoação fundada em terreno mais baixo, que o circunda, e estando demais o hospital, como fica dito, no centro da povoação, a ventilação é insuficiente. O facto de servir o pavimento inferior do edifício para armazenar as mercadorias dá margem a que as enfermarias não possam ser lavadas como devem. Os soldados de guarda de Alfândega apresentam-se repetidas vezes embriagados, passando toda a noite a gritar e a cantar e esta circunstância lamentável tem dado lugar a que os doentes não tenham o sossego que o seu estado de saúde reclama.
Julgo conveniente que o hospital seja removido para um local afastado da povoação e que o edifício possua todos os requisitos exigidos pela lei higiénica”.

Veremos como, no termo do seu importantíssimo documento, o Dr. Damasceno apresenta uma lista de plantas medicinais e tece considerações gerais, seguramente uma das peças mais importantes do seu relato.

(Continua)



Imagens retiradas do livro “Guiné Portuguesa”, Luís António de Carvalho Viegas, 1936.
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Nota do editor

Último poste da série de 27 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19535: Historiografia da presença portuguesa em África (151): Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (4) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

1 - Os indígenas, pela sua natural indolência, têm pouca propensão para o trabalho;

2 - As mulheres ocupam-se em pilar o arroz e em outros trabalhos e afazeres domésticos, aos quais se entregam quotidiana e incansavelmente para sustentar os vícios do homem...

3 - O indígena não é ambicioso, contenta-se com o que ganha e não se sujeita ao trabalho enquanto tiver com que alimentar-se”.

O doutor Isaac não esclarece se isto para ele eram qualidades ou defeitos.

O doutor Isaac nunca viu como era o indígena quando "pega tesso", aí mudava um pouco de opinião.

Embora não seja com muita frequência.

Valdemar Silva disse...

Proibir porcos e leitões amarrados junto das casas, por razões higiénicas?
Que ideia estranha.
Por cá, não vai ainda muitos anos, as cortes dos animais eram na parte inferior das habitações.
Faz confusão, por ser em 1888, o que se teria passado naquelas terras durante mais de três séculos.
Afinal eram terras selvagens de infiéis que só serviam para escravos e também
para presídios de condenados a degredo.
(….qual missão evangelizadora/civilizadora qual quê…..)

Valdemar Queiroz