segunda-feira, 4 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19549: Estórias avulsas (93): Histórias do vovô Zé (1): As nossas andorinhas (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp)

1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem do dia 22 de Fevereiro de 2019, enviou-nos uma bonita história sobre as andorinhas. Conversa entre avô e netos que nos devia sensibilizar a todas a preservar a natureza.


Histórias do vovô Zé

As nossas andorinhas

https://youtu.be/QrrawrmJkOM

Passados mais de setenta invernos, lá vinha de novo mais uma ansiada primavera. Das coisas boas do inverno pouco havia a recordar. Não fora a quadra natalícia, por excelência a dos dias de maior aconchego e afecto familiar, e apenas recordaríamos a chuva teimosa, o frio penetrante e os dias pequeníssimos daquela estação anual.

A primavera era anunciada com a chegada das andorinhas e o friorento vôvô-Zé, sempre ansioso, passava o tempo a olhar o céu na expectativa de as ver chegar. Ele sabia que todos os anos por volta do dia 20 de Março elas se instalavam no seu espaço, para dar início a mais um admirável ciclo das suas vidas. Para ele, até parecia que, com a chegada das andorinhas, lhe estava garantido mais um ano de vida. Nos últimos anos, talvez devido ao aquecimento global da Terra elas, por vezes, têm vindo mais cedo uns dias. Foi o caso daquele ano em que coincidiu a chegada da primeira andorinha, na última semana de Fevereiro, precisamente com o dia de mais um aniversário do avô Zé.
Mal os netos chegaram para a festa do aniversário, já o avô babado lhes contava a grande novidade:
- Já chegou a primeira andorinha, a exploradora! Acordei cedo a ouvi-la chilrear poisada no fio eléctrico que passa diante da janela do meu quarto. Ela não se calou enquanto não me viu feliz a dar-lhe as boas-vindas.
- E as outras, vôvô-Zé, quando chegam? – Perguntava o pequeno Dudu (de 6 anos). Logo ele a quem o avô costumava levantar várias vezes para, pasmado de curiosidade, espreitar os ninhos.
- Esta apenas vem cá dormir mas não todas as noites. Penso que vai ver se encontra locais disponíveis para os demais familiares. Alguns deles devem ser bem longe daqui. No ano passado, tivemos aqui cinco ninhos com cinco filhotes, excepto um que teve só quatro. Fazendo as contas, vemos que a exploradora vai ter muito que fazer. O que lhe vale é que devem chegar para a ajudar mais duas ou três dentro de poucos dias.


Mais interessada em pormenores, a Kika (de 9 anos), uma excelente aluna na escola primária, parecia querer enriquecer os conhecimentos que já possuía nessa matéria. E questionava:
- Mas, ó vôvô-Zé, assim já devíamos ver mais andorinhas. Onde andam as outras?
- Olha, tenho a certeza absoluta que temos descendentes daqui da nossa Casa dos Aidos, espalhados pelo norte de Portugal. Às vezes penso até que também estão na Galiza. Há já uns anos, fiquei a dormir numa pensão em S. João da Pesqueira e, de manhã, querendo admirar melhor aquela lindíssima paisagem duriense, subi a um ponto alto da povoação, que ficava dentro de uma vinha. Fiquei tão satisfeito que não queiras saber. Um pequeno grupo de andorinhas, a chilrear, fez círculos sobre mim, tal e qual como me costumam fazer aqui no quintal, quando chegam. Fiquei convencido de que elas me conheciam.

Entusiasmados com o tema, seguiram para o alpendre para verem se a andorinha lá estava. Até as gémeas Rita e Carmo, com três anitos apenas, lá seguiam os mesmos passos curiosos.
- Aquele ninho continua destruído. Já não me lembro o que aconteceu – Observou o Dudu.
- Foi devido a um ataque do milhafre. Não foi, vôvô-Zé? Lembrou a Kika.
- Sim, foi num dia em que ouvimos as andorinhas a gritar muito. Lembro-me que o Malhadinho saltou de repente dos meus joelhos e correu para a varanda. Ao segui-lo, ainda vi o milhafre a fugir. Descemos ao alpendre e encontrámos três filhotes novinhos, ainda com as penas pequenas. Haviam caído dois, ali, dentro da gamela do moinho eléctrico e um, aqui, no chão.

Ao ver a muita atenção dos quatro irmãos, filhos da Ana e do Abel, o avô continuou:
- Quando peguei nesses filhotes, os pais choravam e pediam muito para que eu tivesse muito cuidado com eles. Vi que um dos ninhos estava vazio, arranjei-o com as palhas mais finas e mais fofinhas, caídas do seu e coloquei-os lá dentro. E eles, caladitos, lá ficaram muito quietinhos. No ano seguinte, quando as andorinhas haviam chegado, fui vê-las pousadas sobre os arames, antes de decidirem começar a trabalhar. Algumas aproveitaram para me olharem atentamente, talvez para saberem se estava a ficar muito velho ou verem se estava doente. Porém, duas delas fugiram cheios de medo, a gritar devido à minha aproximação e eu afastei-me para não as incomodar. Já no jardim, vejo-me sobrevoado pelas quatro andorinhas que quase me tocaram. Para mim, fiquei com a certeza de que os pais já tinham explicado aos filhos que fora este velhote quem os salvara no ano anterior. Acenei-lhes com um gesto de simpatia e elas lá foram subindo aos esses e a chilrear de satisfação.
- Mas, ó vôvô-Zé, não foram três as que salvaste? – Observou a Kika.
- Sim. É natural que uma tenha morrido. Talvez, aquela que caiu ao chão. Também te digo que muitas não aguentam as grandes viagens que fazem até África. Por outro lado, são muitas as que morrem por comerem mosquitos envenenados por alguns produtos químicos que são espalhados para desinfecção dos campos e para limpeza das ruas. Antigamente só se usavam adubos caseiros e produtos orgânicos, biodegradáveis e bastante seguros.

Entretanto, chegaram as duas netas de Vila do Conde, filhas da Beatriz e do Zé-Tó. Após algum entusiasmo neste reencontro, já se ouve a Inês de 12 anos (uma intelectual em potência), a neta mais velha, a explicar:
- É verdade. Há dias a minha professora esteve a explicar várias coisas sobre esse assunto. Agora, procura-se gananciosamente a reprodução intensiva através de produtos sintéticos que até são nocivos para a saúde e para a natureza. Por sua vez, os nossos governantes, na ânsia de mostrar as ruas e caminhos limpos, também aplicam pesticidas desmesuradamente. Com as chuvas, dá-se o arrastamento desses produtos para os rios e fontes, provocando o seu envenenamento e, também, o desaparecimento dos peixes e de outros seres vivos úteis à natureza.

A irmã Francisca de 10 anos (a super- activa), sempre agarrada à Kika, também ajudou no tema e lembrou que na Casa do Couto, do avô David e da avó Maria José, de Barcelos, também existem ninhos de andorinhas.


Nesta Casa dos Aidos, onde nasceu a avó Gilda, ela lembra-se bem do alpendre com mato para fazer estrume e dos aidos do gado à volta, no rés-do-chão da casa. Talvez devido às moscas ali produzidas, esse tipo de casas de lavoura, sempre tinham ninhos por perto, debaixo das varandas. Agora, que o gado já não existe, nem os matos no alpendre (cimentado), as andorinhas continuam a vir fazer os seus ninhos. Pensamos que isso se deve ao seu sentido de posse, de defesa das suas tradições e da sua afectividade à casa dos seus antepassados. Normalmente, elas são merecedoras da nossa grande admiração e de toda a simpatia. Diz-se, até, que as casas com andorinhas são abençoadas. Muitas dessas casas já não as têm, porque alguém as perseguiu ou mal tratou. Pois, aqui, elas mandam. Sim, elas é que são donas desta casa. Se esta casa tem mais de duzentos anos, imagine-se quantas gerações delas, já cá passaram. E se elas vivem em média cerca de 7 anos, teremos mais de 30 gerações em equiparação, o que, transferido para a nossa média de vida de 70 anos, daria qualquer coisa como 2.100 anos!


Em Julho e Agosto, as andorinhas novas sobem para apanhar os ventos marítimos. É o período de preparação/musculação para poderem seguir a grande viagem continental. E à medida que a data de partida se aproxima, elas reúnem, para organizar essa grande viagem colectiva. Primeiramente reúnem aqui a sua família mais chegada, umas 25 ou mais e, depois, umas 80 a 100. Talvez, já com os familiares mais afastados, que vêm descendo do norte. Depois, juntam-se muitas centenas junto da igreja matriz, ocupando extensões enormes de fios eléctricos, durante cerca de dois dias.


O vôvô-Zé ainda acrescentou:
- Já me tenho levantado da cama para vê-las em reunião madrugadora, a planearem a sua longa viagem. É impressionante a sua educação e a disciplina democrática que elas nos mostram. Estão todas sobre os arames da antiga ramada e voltadas para o centro do alpendre. Só se ouve uma a “falar” que, por sua vez, “dá a palavra” a outra e… a outra. Um dia ouço algumas a “avisar” de que está alguém a espreitar. Mas, a chefe deve tê-las acalmado, informando-as de que eu não lhes faria mal algum. Fui buscar a máquina e quando procurava uma boa posição para as fotografar, elas partiram e devem ter suspendido ou terminada a assembleia.
- Mas, ó vôvô-Zé, por que é que elas vão embora, se nós não lhes fazemos nenhum mal?- Lamentava-se o Dudu.
- Porque com o frio do inverno não existem moscas e mosquitos e elas precisam de comer muitos. Por isso, vão para a África passar o nosso inverno e que lá faz muito calor.



Já voltado para os filhos, nora e genros que se juntaram, o vôvô-Zé comentava:
- Em Setembro, podemos continuar a sentir o clima agradável e a ouvir os vários pássaros teimando no prolongamento dos dias felizes do Verão. Porém, quando as andorinhas partem, parece que tudo muda e que já nada é como dantes. Sinto um ligeiro calafrio que se irá acentuar nos meses de inverno e que só me “ressuscitará” a partir de finais de Fevereiro, não por celebrar mais um aniversário mas, isso sim, por ver chegar de novo as nossas andorinhas.
____________

Nota do editor

Último poste da série de16 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19105: Estórias avulsas (92): Triste memória de guerra (Abel Santos, ex-Soldado At Art da CART 1742)

5 comentários:

José Nascimento disse...

Gostei. Este ano também já chegaram "as minhas andorinhas" à minha rua. Pena é que cada vez sejam menos.

Anónimo disse...

Gostei também.Belas fotografias.
Tenho um ninho de andorinha, na varanda do meu apartamento, no canto de cima. mas este ano ainda não está ocupado, e ainda não vi nenhuma por estes lados.

De Vila do Conde,

Aos 2019-03-04

Virgilio Teixeira



Valdemar Silva disse...

Belas fotos, com a particularidade das muitas andorinhas estarem quietas.
Até parece que poisaram para a fotografia.
Também tive um ninho de andorinhas no teto da minha varanda, mas antes que houvesse criação tive que o desfazer tal era o chiqueiro no chão da varanda, e nunca mais por lá apareceram.
Uma vez na Guiné assisti a um ataque de andorinhas à saída de formigas d'asa do chão. Não escapava nenhuma formiga, tal era a velocidade das andorinhas, que nem 'Stukas' nazis a atacarem uma coluna de tropa aliada.
Também gostei das 'Histórias do vôvô-Zé'.

Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Caro “vôvô-Zé”.
Desculpa este tratamento mais intimo, mas o mundo é pequeno, e como se diz no nosso blogue, 'A nossa Tabanca é Grande'.
Li ontem por alto esta belíssima história das ‘nossas andorinhos’, e parto do principio que estamos a falar de uma verdadeira história, e não me poupo a comentários sobre esta bela peça, que desde já dou os meus sinceros parabéns.
Ontem não pude debruçar-me sobre este assunto, foi o dia do 48º aniversário da minha filha mais velha, e quando nos preparavamos para combinar os festejos, chega de um momento para o outro a noticia de que o seu sogro acabava de morrer. Em vez de festa de anos, foi um fim de tarde de ‘velório’ igual ou parecido a outros a que tive de assistir e presidir em Nova Lamego.
Vamos ver as afinidades. Somos ambos de 67-69 na Guiné, passamos pelo sector L3 - Set/67 a Fev/68. Pertences ao BART1913. Tive relações e contactos com o BCAV1915, que fomos render em Nova Lamego, e também tive de fazer contas com o BART1911, no 600 em Bissau. Depois de vocês sairem da Guiné, passou o meu BCAÇ1933 a ser o mais antigo, a par do BCAÇ1932, que viajaram juntos para o CTIG. Sou do 1º turno de Mafra de Janeiro de 67, mas como atrasei 3 anos a incorporação, devo ser talvez mais velho, sou da colheita de 43.
Não tenho infelizmente esses dotes de escrita, uma das minhas grandes frustrações.
Conhecemo-nos pessoalmente no almoço da Tabanca de Matosinhos.
Posto isto,
Vamos ao que interessa, essas relações com Vila do Conde.
Eu tive de ir viver para Vila do Conde, definitivamente em Março de 1973, está a fazer agora 46 anos, por isso tenho mais tempo aqui, do que na minha terra natal - O Porto, com a qual mantenho relações intimas e chegadas.
Aqui conheci, passados uns tempos o José Maria de Almeida, nosso ex-camarada na Guiné, dos Ranger, trabalhou sempre no Tribunal, oficial de Justiça, morreu há duas semanas atrás. Ainda convivemos juntos, e ainda frequentei a casa dele – que nessa altura vivia com a mâe - atrás do Ramon, e assim conheci de vista a irmã dele, acho que nunca falamos mas cruzamos por aí imensas vezes, ainda ontem passei por ela.
O Zé Maria, depois da morte da mãe, viveu sempre sozinho, num apartamento que teria comprado com a ‘taluda’ de Espanha. Não lhe conheço mulher, nunca falamos disso.
A irmã do Zé Maria, que não conhecia o nome – julgo que é a Maria José? - era casada com o professor David, uma sumidade na musica de piano, pessoa conhecida e respeitada. Nunca falei com ele, nunca me foi apresentado, mas chegou a dar aulas aos meus filhos na escola cá da terra, há muitas luas.
Pelo que percebo este casal, será pai da Beatriz que casou com o já referido ‘Zé-Tó’, filho de ‘vovo-Zé’, certo!
Cujo casal, tem duas filhas, a Inês e a Francisca, com idades quase iguais aos meus 4 netos. Como não conseguia deslindar isto, recorri à minha nora, uma mulher da terra, que conhece tudo e todos, é Chefe de Serviços na Câmara, ligada a tudo que é museus e pessoas que aqui viveram em séculos passados. É directora do Centro de Memória.
Ela confirma que conhece a Beatriz e o marido, bem como os filhos, com idades iguais ou parecidas aos filhos dela, meus netos, de 13 e 9 anos, filhos também do meu filho Bruno. E mais confirma que estão todos ligados a altas tecnologias que ela própria não conseguiu explicar.
Um dia destes vou tentar conhecer o teu filho, a tua nora e as tuas 2 netas.
Pelo que entendo, os avós David e Maria José também têm quinta em Barcelos, aqui bem ao lado?
E assim de uma história de andorinhas acabamos de descobrir coisas que não sabiamos.

Desculpa a extensão do meu comentário, mas foi o que saiu.

Um Abraço José Ferreira,
Virgilio Teixeira

Anónimo disse...



É uma história suave para contar aos nossos netos, com lindas imagens e com muitos conhecimentos dos hábitos e migrações dessas aves que sempre gostaram da companhia dos homens à procura de algum apoio e conforto que retribuem com a graça dos seus chilreios, a beleza dos filhotes e as formações disciplinadas, quase militares, à despedida para outro continente.
No texto vejo também o amor e carinho, que sempre notei, na tua relação com as tuas netas e netos. Parabéns José, os teus netos irão ter de ti, para sempre gratas recordações.
Um abraço.

Francisco Baptista