Queridos amigos,
O pretexto do médico Damasceno Isaac da Costa para elaborar o seu relatório era pôr por escrito o estado da higiene e saúde pública da recém criada Província Autónoma da Guiné. Mas não resistiu em deixar-nos estes apontamentos surpreendentes sobre a fortaleza e a vila de Bissau, descreveu o presídio de Geba ao pormenor, tais como os itinerários de Geba para Farim e de Farim para Bissau. Observa usos e costumes, fala de longevidade dos guineenses e da vida cultural dos Papéis.
Jamais encontrei documento tão precioso sobre a presença portuguesa neste ano de 1884.
Um abraço do
Mário
Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (3)
Beja Santos
Este relatório consta dos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa e foi oferecido pelo seu filho Pedro Isaac da Costa ao antigo administrador de Bissau, António Pereira Cardoso, autor de um conjunto apreciável de documentos, muitos deles de leitura indispensável para conhecer a vida administrativa da Guiné, sobretudo entre as décadas de 1930 e 1950.
Este relatório, como se verifica pelo seu fecho, foi copiado pelo filho do autor. E diz-se que é de estranhar que tendo sido escrito em 1884 se refere a factos de 1888.
Trata-se de um documento irrecusável, nenhum trabalho historiográfico sobre este período em que a Guiné ganhou autonomia como Província tem cronista de igual estatura. Descreveu minuciosamente a fortaleza de S. José de Bissau, a vila, e não se conhece descrição tão pormenorizada sobre o Geba como a dele. Depois, observa o seguinte:
“Acima de Geba e a 10 léguas de distância está situada uma aldeia importante, já pelo seu comércio já pela sua população, denominada Bafatá. É habitada pelos Fulas e negociantes cristãos. O comércio interno de Geba consiste em cera, couro, marfim, amêndoa de palma, borracha, ouro e outros produtos, são comprados e transportados para as praças de Bissau e Bolama.
Geba, pelas suas riquíssimas produções que lhe proporciona o seu ubérrimo solo, concorre mais que nenhum outro ponto da Guiné para levar aos grandes centros comerciais da Europa as suas produções. A prosperidade da Guiné, dependendo pois em grande parte do presídio de Geba, convém por todos os meios elevá-lo à categoria a que tem jus pela sua importância industrial e comercial”.
Finda esta tão significativa leitura do ponto mais avançado da presença portuguesa, o médico vira-se noutra direção:
“Entre Geba e Farim existe fácil comunicação. Distanciado um presídio do outro em uma extensão de 20 léguas, o trânsito de 8 é feito por terra, de Geba até ao rio Tandegú e as restantes 12 em canoas, pelo rio de Farim até o mesmo rio Tandegú. Existe igualmente entre os dois presídios fácil comunicação por terra e percorre-se este trajecto em 48 horas, atravessando os territórios ocupados por Fulas e Beafadas. Para encurtar o trajecto fluvial de 60 léguas, que intermedeia entre Geba e Bissau, transita-se 20 por terra da praça de Geba até Fá em 3 horas e as restantes 40 pelo rio, de Fá a Bissau, em 24 horas.”
Regressa a Geba com um conjunto de apontamentos etnográficos e etnológicos, vale a pena reproduzi-lo, na plena vivacidade da sua escrita:
“Em torno da povoação e numa vasta extensão habita a raça Fula que pela sua constante aplicação ao trabalho contribui muito para o engrandecimento do comércio, da indústria e agricultura de Geba. As mulheres trazem dependuradas nas orelhas argolas de latão ou cobre, em seus cabelos cuidadosamente entrançados trazem suspensas como um grande adorno moedas brasileiras ou francesas de 80, 120, 240, 480 e 900 réis.
Os gentios da Guiné, conquanto selvagens, são susceptíveis de se converterem ao cristianismo e de receberem educação, pois que possuem em subido grau o orgulho de se transformarem em brancos, isto é, de se civilizarem”.
Elenca um punhado de notas sobre a longevidade das populações, dizendo o seguinte:
“A população de Bissau divide-se em europeus, mestiços e indígenas. Os europeus que residem na ilha quer como funcionários públicos quer como comerciantes têm pouca permanência nela e por isso nada se pode dizer sobre a sua longevidade. Todavia, observa-se que eles, decorrido um ano, ou antes, apresentam profundas alterações orgânicas e funcionais, que são a fiel expressão da acção perniciosa do elemento palustre. O europeu não se aclima na Guiné.
Os mestiços possuem temperamento misto e constituição regular, notando-se alguns com 20 e 30 anos de residência na ilha com barbas encanecidas, com 60 a 70 anos de idade e gozando de perfeita saúde. Os indígenas, incluindo os Grumetes, pertencem à raça Papel que habita a ilha. Possuem em geral um temperamento linfático e uma constituição fraca. Vivem pouco tempo.
As crianças até à idade de 2 anos morrem mais de metade e as que saíram incólumes da mortífera luta que travam com os elementos que as cercam contraem lesões viscerais importantes”.
E de seguida dá-nos um quadro de usos e costumes, com espantosas minudências:
“Os Papéis homens vestem uma pele de cabra que lhes cobre imperfeitamente as partes genitais; rapam a cabeça e untam-se com azeite de palma, como os Bijagós; picam o peito com uma faca ou cauterizam a pele com ácidos, para simular diferentes paisagens e figuras como efeitos de luxo; com o mesmo fim, limam os dentes, tornando-os pontiagudos.
Os guerreiros, como distintivo, trazem na cabeça chapéus enfeitados com pontas de porco-espinho cujo número é tanto maior quantos forem os animais desta espécie que tiverem morto.
Os Papéis usam a tiracolo um saco de couro de cabra ou de macaco destinado a trazer tabaco, aguardente ou dinheiro. Os Papéis amam em extremo a música e a dança e em todas as suas festividades usam três instrumentos da sua predileção: o bombolom, o tambor e o balafon. O bombolom, constituído de um tronco de madeira consistente, é oco e toma a forma de um cone truncado e aberturas estreitas, longitudinais e paralelas. É sobre os bordos destas aberturas que por meio de dois paus se fazem repercutir diferentes sons. Este instrumento serve como corneta para anunciar ou transmitir ordens à força no campo de guerra. Entre os Balantas é mais frequente o uso deste instrumento para anunciar a morte, para convidar os parceiros ao roubo.
O tambor é construído de madeira consistente e tem a forma de um cone truncado, mas muito mais estreito que o bombolom, é forrado de um lado com couro de boi ou de cabra, que é besuntado com azeite de palma.
Alguns paus colocados em diferentes posições constituem a estrutura do balafon. Na parte inferior do balafon pendem muitas cabaças, tendo cada uma destas uma pequena abertura virada para cima e uma outra lateral, forrada com teias de aranha. Na parte superior do instrumento existe um teclado que consiste em paus com um metro de comprimento, dois centímetros de espessura e cinco ditos de largura, o qual repousa sobre a abertura das cabaças. E há dois paus arredondados, tendo três decímetros de comprimento, terminados num dos extremos por bolas de borracha destinados para fazer tocar o instrumento.”
E finalmente o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa lança-se pormenorizadamente a falar de higiene e saúde pública, é surpreendente tudo o que nos vai contar.
(Continua)
Bombolom, imagem retirada de flickr, rede social, com a devida vénia. Traz a seguinte informação: Tambor tradicional guineense utilizado para anúncios importantes à comunidade, em dias de festa e cerimónias fúnebres. Tabanca de Bolol, Cacheu, Guiné-Bissau.
Tambor guineense, imagem retirada de https://demonstre.com/lenda-dos-tambores-africanos/, com a devida vénia.
Imagem de um balafon, retirada do site http://eportuguese.blogspot.com/2011/05/fale-com-o-balafon.html, com a devida vénia.
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Nota do editor
Último poste da série de 13 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19494: Historiografia da presença portuguesa em África (149): Relatório do Delegado de Saúde da vila de Bissau, o médico de 2.ª classe Damasceno Isaac da Costa, referente a 1884 (2) (Mário Beja Santos)
1 comentário:
No tempo deste médico, 1884, em muitas regiões africanas, angola por exemplo, as pessoas deslocavam-se em distâncias maiores num transporte chamado tipoia, mas pelos vistos, na Guiné não existia esse meio de transporte.
As pessoas deslocavam-se apenas a pé ou de canoa.
A sorte é que não havia pressa!
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