quinta-feira, 14 de março de 2019

Guiné 61/74 - P19586: (D)o outro lado do combate (46): A Missão especial da ONU na Guiné - Abril 1972 (António Graça de Abreu / Luís Graça) - Parte I: capa + pp. 1-3



Capa do relatório, de 11 (onze) páginas do relatório, policopiado que é uma versão portuguesa contendo a parte principal do "Report of the Mission of the United Nations Special Committee on Decolonization after visiting the liberated Areas of Guinea-Bissau (A/AC. 109/L. 804; 3 July 1972)"... 



1. Ainda não encontramos, na Net,  o documento original, em inglês, do Comité Especial para a Descolonização, das Nações Unidas, que visitou as "áreas libertadas" da Guiné-Bissau, em plena guerra colonial, em abril de 1972, a convite de...Amílcar Cabral. Ou, melhor, temos encontrado excertos... Mas o relatório original, em inglês,  está documentado com fotos, mapas, itinerários, etc.

A cópia, em papel,  de que dispomos foi-nos fornecida há anos [, por volta de 2010, na sequência dos comentários ao poste P5680 (*), e não foram poucos: cerca de duas dezenas e meia!] pelo nosso camarada António Graça de Abreu, com vista a uma eventual publicação no blogue.

O documento é capaz de corresponder à seguinte referência bibliográfica que encontramos no portal das Memórias de África e de Oriente:

BORJA, Horácio Sevilla - A missão especial da ONU na Guiné Bissau, Abril 72 / Horácio Sevilla Borja, Folke Lofgren, Kamel Belkhiria. - [S.l.] : PAIGC, 1972. - 11 p.. - Corresponde a: Relatório [...]
Cota: BAC-135|CIDAC.

A iniciativa da sua publicação e divulgação, em Portugal, logo na época, deve ter pertencido ao CIDAC - Centro De Intervenção Para O Desenvolvimento Amílcar Cabral, com sede em Lisboa. Aliás, o o documento, de 11 páginas, consta da sua base de dados bibliográfica.

Logo na página não numerada, entre a capa e a página 1, se explica qual é  a natureza e a autoria do documento:

(i) o texto editado, em português,  é "a parte principal do relatório escrito e apresentado pela Missão Especial";

(ii) três membros do Comité Especial de Descolonização da ONU visitaram as "áreas libertadas da Guiné-Bissau" (sic), de 2 a 8 de abril de 1972, a convite do PAIGC;

(iii) nesse curto espaço de tempo (menos de um semana), terão percorrido 200 quilómetros (ida e volta), quase sempre a pé, visitando 9 localidades diferentes (o que, convenhamos, é obra para quem, como nós conheceu a Guiné, ou uma parte dela, a "penantes" ou de "viatura militar": Unimog, GMC, Berliet, Jeep...);

(iv) o objetivo da visita, que se fez à revelia do governo português de então, e sob protesto deste, era "assegurar informações em primeira mão sobre as condições nas áreas libertadas" (sic) e, simultaneamente, "averiguar as intenções e aspirações do povo no que respeita ao seu futuro";

(v) além de dois  funcionários da ONU (,1 secretário e 1 fotógrafo),  os membros da missão eram  os seguintes diplomatas: Horácio Sevilla Borja (Equador), Folke Lögfren (Suécia) e Kamel Belkhiria (Tunísia); Borja foi o relator principal. (É hoje representante permanente do seu país na ONU, tendo sido até 2016, embaixador residente no Brasil.)

A edição do documento é atribuída. pelo CIDAC, ao PAIGC. Amílcar Cabral fez o que  lhe competia e convinha: tirou o máximo proveito  propagandístico desta polémica missão a que já nos referimos em poste anterior (*).
"
O documento, policopiado,  que agora reproduzimos tem a página 2 está pouco legível, as restantes estão com qualidade aceitável. Na página 2,  reconstituímos alguns parágrafos. O relatório foi digitalizado pelo nosso editor Luís Graça. Damos hoje início à sua publicação (, nove anos depois!...), esperando entretanto os preciosos comentários dos nossos leitores, e nomeadamente os que conheceram a região de Tombali, e em particular o "corredor de Guileje" por onde andaram os visitantes...vindos de (e regressados a) Conacri-Boké-Kandiafara. 

Na capa vem um mapa da Guiné, com o território assim distribuído: (i) "áreas libertadas"; (ii) "áreas onde há luta"; (iii) "áreas controladas pelo exército colonial português"; e (iv) "aquartelamentos do exército colonial"... Presume-se que o mapa seja da autoria do PAIGC e se reporte à situação militar no 1º trimestre de 1972. 

Salta logo à vista que faltam, no que diz respeito às posições das  NT em 1972,  inúmeros aquartelamentos, destacamentos e tabancas em autodefesa, com pelotões de milícia, em todas as três grandes regiões: Norte, Leste e Sul...Logo no setor L1, que eu conheci: há só referência a Bambadinca e Saltinho, faltam 3 importantes aquartelamentos (Xime, Mansambo e Xitole), fora os destacamentos do exército e das milícias...


2. Recorde-se o que aqui, neste blogue, já foi dito em 2010, no poste P568o (*): esta missão decorreu no sul, na atual região de Tombali. Representou para Amílcar Cabarl e o seu Partido uma suas maiores vitórias diplomáticas. A Região de Tombali engloba, hoje, os sectores de Bedanda, Catió, Como, Quebo e Quitafine, tendo um total de cerca de 3700 km2 e 90 mil habitantes. Na época teria muitíssimo menos população.

A missão da ONU  restringiu-se à zonas de Bedanda,  Catió  e Quitafine. Os diplomatas  focaram a sua atenção nas estruturas militares, aldeias, escolas e armazéns, e fizeram depois apreciações, que constam no relatório, sobre "a situação no campo do ensino, da saúde, da administração da justiça, da reconstrução da economia e da formação de uma assembleia nacional".  Os membros da missão vestiam fardas militares, com insígnias das Nações Unidas, e tiveram escolta de um bigrupo reforçado do PAIGC (cerca de 60 homens armados) sob o comando do Constantino Teixeira.

O(s) autor(es) do relatório inclui(em), nesta síntese, excertos de um relatório de Amílcar Cabral sobre "a agressão [portuguesa] contra a Missão Especial da ONU" (pág. 5, vd. no próximo poste)... Os números que utiliza são fantasiosos,  e faz referência as meios, alegadamente utilizados pelas NT que já não existiam, ou não existiam de todo no CTIG: por exemplo, os aviões de combate F-86 F, a artilharia de 130 mm... (confusão com a peça 11.4 e o obus 14).

Sabe-se qual foi a musculada resposta de Spínola, alguns meses depois: a decisão de reocupar o mítico Cantanhez, que o PAIGC controlava desde 1966, em termos territoriais e populacionais... A Op Grande Empresa, conduzida pelo recém-criado COP 4, teve início em 8 de Dezembro de 1972, com desembarque de forças e a sua instalação nas tabancas de Cadique Ialala, Caboxanque e Cadique. Seria também ocupada a região de Jemberém e construída uma estrada táctica a ligar as duas margens da península do Cantanhez...

Na sua mensagem de Ano Novo 1973, Amílcar Cabral denuncia e reconhece as tentativas de reocupação do Cantanhez, aos microfones da Rádio Libertação, três semanas antes de ser assassinado (Oiça-se o registo aúdio, disponível no Dossier Amílcar Cabral, da Fundação Mário Soares).





Página não numerada, que antecede a página 1 do documento, de 11 págunas e que vem a seguir à capa.





[resta, pântanos e savana. Durate o percurso, a Missão atrvessou três ribeiros e rios e cruzou numerosos arrozais. Algumas horas antes do amanhecer de 3 de Abril, a Missão chegou ao seu primeiro destino, no coração das florestas do setor Balana, uma base do exército do PAIGC, fortemente guardada,  formada por várias tendas,  cabanas e barracas, que é o Quartel General do Comissariado Político para a Região Sul.  Aqui a Missão encontrou , entre outros, os seguintes líderes e membros do Comité Executivo:  João Bernardo Vieira (Nino), comandante do exército de libertação; Vasco Cabral, ideó.]



[feitos por atilharia pesada: as culturas tinham sido destruídas com napalm e havia muitas palhotas e celeiros destruídos. Durante o percurso a Missão visitou a aldeia de Ien-Kuntei que foi totalmente destruída no dia seguinte por bombardeamentos aéreos, e passou a 2 km do acampamento militar português de Bedanda.

Na manhã de  4 de Abril, a Missão chegou à escola  Areolino Lopes Cruz, no sector Cubucaré (região Catió), onde ficou duas noites. Esta escola, que tem o nome de um dos primeiros professores mortos durante um ataque dos portugueses, ministra o ensino primário a 65 alunos, entre os 10 e os 15 anos. A maioria dos alunos são órfãos ou filhos dos soldados do PAIGC. Por]




(Continua)

____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 20 de janeiro de  2010 > Guiné 63/74 - P5680: Efemérides (41): No 37º aniversário da morte de Amílcar Cabral, recordando o sucesso diplomático que foi a visita da missão da ONU às regiões libertadas, no sul, 2-8 de Abril de 1972


Na altura, em 22/1/2010, o António Graça de Abreu escreveu o seguinte, em comentário:

(...) Já havia esquecido, mas ontem fui aos meus papéis velhos sobre a Guiné e lá encontrei o relatório da "Missão especial da ONU na Guiné, Abril de 1972."

Está aqui comigo e recomendo a leitura e entendimentos a todos os que passámos pela Guiné na fase final do conflito. Esclarecedor, brilhante, também angustiante.As verdades dos factos. Talvez a publicar no blogue mas são dez páginas em A 4.

Em anexo ao texto dos homens da ONU, são publicados excertos do relatório então escrito por Amílcar Cabral sobre a visita dos homens da ONU.  No nosso blogue temos tido o gosto (eu não) de denegrir a capacidade militar das NT (Guileje, a guerra militarmente perdida, perdida em termos militares, etc.). Pois Amílcar Cabral faz exactamente o contrário, exalta e exagera a capacidade militar das tropas portuguesas em Abril de 1972.

Leiam as palavras de Amilcar Cabral no seu relatório sobre Missão da ONU:  "No dia seguinta da partida da missão (da ONU), o estado Maior Português, declarou o estado de prevenção para os 45.000 militares das tropas coloniais existentes no nosso país, dos quais 15.000 se encontram acampados no Sul (...) 10.000 homens das tropas especiais foram transportados durante alguns dias de Bissau para o Sul. Se juntarmos as forças da aviação e da marinha que operaram no decurso da agressão, o número total de homens mobilizados foi da ordem de 30.000."

Isto num pequeno país onde, segundo a missão da ONU,  3/4 do território eram "zonas libertadas pelo PAIGC" que dispunha de 5 a 6 mil combatentes, e onde (agora em Janeiro de 2010) segundo a opinião do diplomata equatoriano da ONU que fez parte da missão, os portugueses, "entrincheirados nos  seus quartéis" apenas "se deslocavam por via aérea."
Tanto dado falsificado! Difícil fazer a nossa História e a dos povos da nossa Guiné!" (...)


(**) Último poste da série > 27 de fevereiro de 2019 > Guiné 61/74 - P19536: (D)o outro lado do combate (45): A morte de Rui Djassi - II (e última) Parte - A Op Alvor, península de Gampará, de 22 a 26 de abril de 1964 (Jorge Araújo)

8 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

O PAIGC fazia o seu jogo, junto das instâncias internacionais.
Estas, não percebendo nada do assunto, aceitavam a argumentação e fechavam os olhos, como lhes convinha. Pelas nacionalidades dos membros da equipa vemos que eram gente esclarecida e que conhecia bem África. Claro que as contradições são mais que muitas, mas isso também não interessava. De qualquer modo, a verdade havia de andar algures...
Onde? Ali não estava, de certeza.

Um Ab.
António J. P. Costa

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tó Zé: já encontrei cópia do original em inglês, em outros documentos da ONU... Mas com erros e falhas...

Vejo que a relatório é mais extenso do que as 11 páginas que estamos a reproduzir, tem diversos anexos, incluindo fotos, mapas, itinerários, datas, horas e locais das visitas e entrevistas, etc. Enfim, é um trabalho "profissional", que não pode ser desvalorizado... do ponto de vista técnico. O impato político e diplomático foi grande, não podemos ignorar ou escamotear...

Também houve uma Missão Especial para Angola e para Moçambique...

Vou fazer esforços por localizar o documento original, completo, em inglês...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A situação, na Guiné, em finais de 1972 pdoe ser resumida da seguinte maneira: Amílcar Cabral reforça o seu prestígio político, diplomático, moral e intelectual a nível internacional, mas mas não está em condições de ganhar militarmente a guerra a Spínola. Os seus homens estão esgotados, e a estratégia spinolista da "Guiné Melhor" coneça a surtir efeitos e causar brechas no moral dos combatentes e da população sobre o controlo do PAIGC...

Surge uma janela de oportunidade histórica, por iniciativa de Amílcar Cabral, com o convite para se sentarem, os dois líderes, à mesa, para conversarem e eventualmente negociarem uma solução política para um conflito que está num beco sem saída... Marcelo Caetano recusa terminantemente: prefere a derrota militar com honra na Guiné a negociar com "terroristas"... E, claro, a continuação do isolamento interncioonal de Portugal... É um líder suicidário, em pânico, acorrentado pela extrema-direita do regime...

A ruptura de Spínola com Marcelo Caetano vai consumar-se rapidamente... Spínola nunca perdoará, em vida, a Marcelo Caetano o seu medo, a sua tibieza, a sua falta de visão histórica, a sua fraqueza cono líder... Marcelo Caetano foi outro erro de "casting" na História de Portugal...

Antº Rosinha disse...

Os «portugueses» ultramarinos, que formaram o PAIGC, o MPLA e a FRELIMO, sempre estiveram mais preparados para compreender África e os ineteresses mundiais à volta da mesma, do que os portugueses e mesmo do que os russos e americanos e do que a louquinha da suécia ou da igreja ou da ONU e afins.

Eles souberam e ainda sabem como enrolar meio mundo.

No caso de Angola e Caboverde, continuam a enrolar desde os bancos e banqueiros, industriais e empreiteiros e diplomatas que estes 40 anos saem de Lisboa com as «melhores intenções», e regressam de lá completamente «desenganados».

Tabanca Grande Luís Graça disse...

... A reocupação do Cantanhez, cujos custos não sei quantificar, teve sobretudo uma função simbólica e moral: acabar com o mito, reforçado com o relatório da Missão Especial, de abril de 1972, de que o PAIGC controlava dois terços do território!...

A haver negociação com o "moderado" e "inteligente" Amílcar Cabral, os "termos de troca", à mesa das negociações, não lhe eram assim tão favoráveis... Spínola e Cabral não precisavam de fazer o xeque-mate, um ao outro... Poderiam ter encontrado uma "solução" vantajosa para ambas as partes... Mas aqui também havia falcões de um lado e do outro... Do lado do PAIGC, vão ser aqueles que, com a morte de Cabral, apostam na escalada da guerra... Daí perceber-se a alegada reação de Spínola quando em 20 de janeiro de 1973 lhe dão a trágica notíca do assassinato de Cabral: "Mataram-me o homem!", o mesmo é dizer, deixei de ter o único interlocutor para uma solução político-militar honrosa para ambas as partes...

Marcelo, obsessivo, manietado, não consegue dissociar o caso da Guiné do resto do Império... o mesmo é dizer, de Cabo Verde, de Angola e de Moçambique... onde, em todo o caso, se poderia ter ensaiado formas de transição política que evitasse a desastrada e trágica descolonização onde todos perdemos... Pena que Nelson Mandela ainda estivesse na prisão...

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

Visto com olhos de hoje, a verdade e toda a verdade estava la, naquela missao de observadores da ONU que confirmava a tese de Cabral de que Portugal ja nao passava de uma potencia estrangeira e agressora num pais africano livre e, caso fosse necessario, confirmava, também, o facto de que A. Cabral privilegiava a acçao diplomatica em detrimento da acçao violenta das armas, como diz e bem o Luis Graça.


Ha um pequeno pormenor que salta a vista no inicio do relatorio, é o facto de ver, pela primeira vez em textos do PAIGC a designaçao de patentes iguais aos do exercito portugues quando em vez do habitual comandante, chamam o Pedro Pires de Major. Mais a frente, voltam ao rotulo de comandante quando falam do Nino e, no fundo, fica dificil perceber quem é que era chefe de quem na zona sul. Parece haver aqui um jogo duplo e ambiguo de personalidades muito complexo e delicado a volta de Guineenses e Caboverdianos que o Amilcar tentava gerir e onde nem sempre foi bem sucedido.

Com um abraço amigo,

Cherno Baldé

Antº Rosinha disse...

Pois é Cherno, é difícil saber quem era(m) o(s) chefe(s).

Claro que no campo diplomático internacional só mandavam caboverdeanos, mas lá dentro da Guiné acabaram por mandar apenas os Guineenses.

Tanto caboverdeanos como portugueses «arredaram os queixos» no fim da contenda (14 de novembro) quando acabou o «jogo duplo e ambíguo», como tu te expressas, Cherno Baldé.





Anónimo disse...

Fora da análise intelectual deste relatório e não tendo pertencido a infantaria, ocorre-me o seguite: seriam os três membros da ONU especialistas em infantaria ou tropas especiais? É que fazer 2OO KMS em tão curto espaço de tempo na Guiné e naquele terreno é obra!Que o diga quem palmilhou as matas da Guiné e já para não falar no clima.
Um Abraço
Carlos Gaspar