N/M Sibajak > Navio de passageiros que fazia a carreira das Índias Orientais Holandesas (Roterdão - Batavia, hoje Jacarta). Teve uma longa vida (1928-1959) (durante a guerra foi convertido em navio de transporte de tropas). Com 154,4 metros de comprimento, o seu nº de passageiros (em 3 classes) era 527. Tripulação: 209. Fonte: Wikimedia Commons (com a devida vénia)
Capa do livro "Quando Timor foi Notícia: Memórias", de Cacilda dos Santos Liberato (Braga, Editora Pax, 1972, 208 pp.). Encontrei um exemplar na Biblioteca Municipal da Lourinhã. Já o li de um fôlego. Tem um prefácio patrioteiro, propagandístico, algo despudorado e completamente datado, do escritor António de Seves Alves Martins:
"Estar, agora, Portugal vitoriosamente em armas, como vitoriosamente esteve em paz na segunda grande guerra, dá plena atualidade a este livro bem revelador da força moral de um povo que não abdica dos seus direitos porque também não se demite dos seus deveres" (pág. 12).
Cacilda foi uma "mãe coragem: viúva de Júlio Gouveia Leite, secretário da administração de Aileu (vítima do massacre de Aileu, em 1/10/1942) (*), irá casar depois com o tenente António Oliveira Liberato, também ele viúvo, na "zona de proteção" de Liquiçá em 1943 (nome eufemístico dado pelos nipónico para o campo de concentração dos portugueses).
Com dois filhos pequenos, viu a morte à sua frente por diversas vezes. Publicou as suas memórias trinta anos depois (com alguns retoques, acrescente-se, de gente erudita do regime que se quis aproveitar do seu testemunho singelo de "mãe coragem").
Estranha-se que o livro só tenha sido publicado em 1972. O manuscrito vem datado de dezembro de 1971. A autora vivia em Portalegre.
1. O que é que os portugueses dos anos 30 do século passado pensavam do "outro" que estava lá longe, no "além-mar" das Áfricas, das Ásias, das Oceanias ? Enfim, em terras tão distantes como Timor, a 20 mil quilómetros de Lisboa, e a mais de um mês de viagem "by sea" ? E sobretudo as portuguesas, ainda poucas, que acompanhavam os maridos, funcionários civis ou militares destacados para funções nas colónias.
Cacilda está de "abalada para o Extremo-Oriente, rumo ao longínquo Timor " (p. 13). Estamos em agosto de 1936. Não sabemos exatamente o dia. Mas terá sido na primeira quinzena.
O navio era holandês, e elegante", o N/M Sibajac (p. 15). E o dia "límpido, radioso", em Lisboa (p. 14). (Portugal não tinha um navio da marinha mercante que, nessa época, fizesse ligação entre a metrópole e a sua colónia mais longínqua, nem havia movimento de carga e passageiros que o justificasse.)
Antes de entrar no Mediterrâneo, por Gibraltar, o navio faz uma primeira paragem, curta, ao largo, em Tânger, "o tempo suficente para levar o correio à cidade" (p. 14). Inevitável associar Tânger ao "drama do Infante Santo" (...) "desastre a toldar o brilho da epopeia gloriosa da nossa expansão pelas sete partidas do Mundo" (p. 15).
Mas há uma granada, disparada não se sabe donde, que vem rebentar "a reduzida distância da proa" do Sibajac. Confusão, se não mesmo pânico, a bordo. Cacilda vem lembrar, entretanto, que "estávamos em 1936" (...): "a guerra civil espanhola eclodira havia apenas um mês" (p. 16). Em boa verdade, a 17 de julho de 1936, dizem os historiadores.
A viagem até Timor vai demorar mais de um mês... Cacilda e o marido chegariam a Díli em 17 de setembro de 1936. O marido é um médio funcionário da administração colonial, Júlio Gouveia Leite, secretário de circunscrição, que irá encontrar a morte, na tragédia de Aileu, em 1 de outubro de 1942 (*). Era um homem com alguma cultura lietreária acima da média, tendo inclusive sido cofundador de um jornal de vida efémera, em 1938 (**)
O que leva esta mulher da pequena burguesia lisboeta a perseguir "o sonho que há muito tempo acalentava" (p. 13), desde as precoces leituras da sua adolescência ? Acompanhava, desta feita, o marido que, por "rotineiro despacho ministerial", ia ocupar um lugar do Quadro Administrativo da Província" (o livro é publicado em 1972, pelo que em 1936 a terminologioa era outra: Timor era uma colónia...).
E logo Timor!... Familiares e amigos em vão a quiseram dissuadir: Timor, "que horror!", Timor, "a lendária antecâmara do Inferno, terra de degredados e de febres, de biliosas e perniciosas" (p. 14)... Advertências de "sabor resteliano" (sic) (referência de sabor erudito ao "velho do Restelo") que provocavam também dúvidas e receios no espírito desta jovem mulher, recém-casada e com já um filho pequeno.
Nada a demoveu. E lá vai ela decidida a "conhecer as fascinantes regiões das essências e especiarias, o exotismo dos usos e costumes das suas gentes" (p. 13).
"Demandados Gilbraltar e Marselha, lobrigadas das águas do estreito as cidades de Régio e Messina, atingiu-se Port-Said " (p. 16).
É "o primeiro contacto com terras do Oriente". E as primeiras descobertas do "exotismo", tão caro ao viajante da época, vindo da Europa.... Travessia do canal do Suez em comboio (dez navios). Mar Vermelho, "atmosfera de fornalha" (p.17).
Ao fim de sete dias de viagem "sob torreira inclemente", atingem Ceilão, fundeando em Colombo, a capital da ilha (p. 18). Foi ocasião para alguns portugueses e "3 missionários holandeses" meterem-se a fazer uma curta exploraçáo da cidade, em sete "rickshaws", puxadas por "coolies", cuja reputação nem sempre era a melhor, conforme aviso feito a bordo...
Calcilda e o companheiro quase que perdem o navio, com as voltas que o seu "coolie" deu, alongando o passeio, mas afinal "bem intencionado", ao querer mostrar a zona mais "excêntrica" da cidade,... Tiveram de se meter numa "gazolina" (sic) para apanhar o navio já ao largo, a caminho de Malaca (p. 21).
A descrição pitoresca da viagem continua por mais 3 páginas: o N/M Sibajak acerca-se de Sabango, navega ao longo de ilhas e ilhotas de vegetação luxuriante, que a autora descreve como "lugar(es) paradisíaco(s)" (p. 22).
"De novo em marcha, escalámos sucessivamente, Belawan, Singapura e Batávia". Aqui terminava a viagem do navio holandês. "Três portos, três empórios, em que os navios abundavam e o tráfico era intenso" (p. 22).
Batávia era o nome então da atual Djakarta (sic), "uma cidade de marcado estilo colonial": "vasta e muito povoada, de ruas amplas e largos espaçosos" (...), "edifícios grandes e opulentos" (...), "avenidas alfaltadas" (...), "airosas moradias, cercadas de jardins tratados com esmero e bom gosto" (pp. 22/23).
O que chocou o olhar português e lisboeta da Calcilda ?... "O espetáculo vergonhoso de multidões de indígenas" (sic), que se banhavam e lavavam a roupa em cursos de água barrenta, avermelhada, correndo junto a algumas artérias da cidade...
Apanham outro barco, o Melchior Treub, seguindo viagem até Macassar, nas Celébes, para depois embarcarm no Reisgnears que os levará a Díli. Barcos mistos, de cabotagem, que "em digressão pachorrenta" os transportam por "aqueles mares coalhados de ilhas"...
"Entrei na baía de Díli. Ancorava-se ao largo. Pequena ponte de madeira servia de cais, onde os passageios eram conduzidos em botes e 'gazolinas'. Ali pisei a primeira vez terras de Timor, na manhã de 17 de setembro de 1936" (.p23).
E quais as primeiras impressões de Díli (cap. II, pp. 27-29) ?
"A Capital era, naquela época, um aglomerado sem importância" (...): "o traçado dos edifícios era simples, vulgar, a tender para a uniformidade"... Exceção para "a catedral, de construção recente", destacando-se da "trivialidade do conjunto" pelas suas "linhas modernas" e pela sua "torre, apontada ao céu" (...) e "dominando o modesto burgo" que se espreguiçava "indolente, sob a densa mata de coqueiros, palmeiras e 'gondões' (imbondeiros)"... (p. 27)
O movimento era "diminuto". O comércio local era apenas alimentado pelo "magro orçamento da Província" (sic). A "população não aborígena" (sic) (p. 27) resumia-se ao funcionalismo público, civil e militar, que comia à mesa do Estado... De fora só "meia dúzia de empregados do setor privado" e um ou outro, raro e próspero, "plantador".
E quem era esse funcionalismo ? De origens diversas: europeus, indianos. macaístas bem como um "elevado número de nativos"... (p.28).
"A colónia chinesa detinha o monopólio do comércio" (p. 28). Fora a firma portuguesa "Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho" e o "indiano Wadoomahl", "as lojas e quitandas" de Díli e do resto da ilha "pertenciam aos sorridenets filhos do Celeste Império" (p. 28).
Era no bazar do Wadoomahl que o "elemento feminino" da colónia gastava as economias com artigos importados de Macau e Índia... "Coisas de sonho" (p. 28): "tecidos, louças, objetos de laca e obras de cânfora e de sândalo, 'bijouteries' e outros artefactos de aparato e valor"
De 3 em 3 semanas, com a chegada do "vapor holandês da carreira", a loja do indiano tornava-se local de visita e encontro obrigatório das "senhoras da sociedade de Díli" (p. 28).
Pontos de reunião e de festas, de receçóes e bailes, eram os clubes Benfica e Sporting, tão rivais entre si localmente como em Lisboa.
Em Díli, Cacilda, o marido e um filho pequeno icaram numa moradia à beira-mar (p. 29). Mudaram-se pouco depois para Lahane, onde existia o bairro do funcionalismo, a 3 km da capital, com clima mais salubre.
Ao fim de 3 anos, com o filho Henrique de sete anos, foram para Bobonaro, sede da circunscrição de fronteira, que confinava com o Timor holandès. Voltam para Díli em abril de 1941, quando nasce o segundo filho, Rui Nuno.
Em agosto vão para Aileu, "uma pequena vila habitada por meia dúzia de europeus, outros tantos comerciamtes chineses, alguns mestiços, e nativos evoluídos " (sic) (p. 29). Um pequeno grupo de sipaios "assegurava a guarda à tranqueira, fornecia as ordenanças,as estafetas e outro pessoal paar serviço da Administração" (p. 29).
Dispersos pelas redondezas, alcandoradas no "cume das montanhas" (p. 30), em pequenos aglomerados viviam os "indígenas"... A "civilização" em Aileu resumia-se âs instalaçóes da secretaria da Administração, Central telefónica, moradia do secretário, e â saída, já na estrada para Maubisse, os edifícios do Presídio e da casa chamada dos Passageiros (p. 30)... Enfermaria, armazéns, capela, e algunas vivendas isoladas completavam o quadro de Aileu.
E foi justamente em Aileu que a Cacilda ouviu a notícia do início da II Guerra Mundial (1 de setembro de 1939) na Europa (p. 33) e depois no Pacífico, com a entrada de novos beligerantes, o Japão e os EUA, em 7 e 8 de dezembro de 1941, respetivamente (p. 35).
E seria em Aileu que a Cacilda e a família apanharam as duas invasões estrangeiras do territória, a dos Aliados e depois dos "matan-bubu" (olhos inchados, a alcunha dada aos japoneses pelos timorenses) (p. 48). As suas memórias mais dolorosas são justamente da ocupação japonesa (20 de fevereiro de 1942 a 5 de setembro de 1945). (***)
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 5 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25809: Timor: passado e presente (16): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte VII: As chacina de Aileu e Ainaro, em outubro de 1942... E a coragem da jovem Julieta Lopes, de 17 anos, que gritou aos assassinos, em tétum: Quétac óhò feto ò labáric! (Na guerra não se matam mulheres e crianças!).(**) Timor - Publicação eventual de carácter literário e científico. Díli, 1938-1939. Impresso na Imprensa Nacional de Timor. Publicação fundada por Júlio Gouveia Leite e João da Costa Freitas, e como editor João da Costa Freitas. Os colaboradores são Virgilio Castilho Duarte, Lorenço de O. Aguiar e Alberto Rodrigues Paizana. Registaram-se três exemplares. Fonte: Biblioteca Nacional de Lisboa.
In: Vicente Paulino e Lúcio Sousa - Contribuição para um roteiro da imprensa periódica de Timor-Leste (1900-2002). Veredas: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, nº 40, p. 166-183, jul./dez. 2023.
(***) Vd. poste de 5 de dezembro de 2024 > Guiné 61/74 - P26234: Timor Leste: passado e presente (28): O concelho de Sardoal homenageou, em 15/9/1946, um dos seus filhos, Augusto Leal de Matos e Silva (1905-1944), chefe de posto administrativo de Laga, um dos heróis da resistència aos japoneses, morto da prisão de Díli
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