sábado, 13 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14740: O cruzeiro das nossas vidas (22): A viagem no Alenquer, a chegada, o desembarque e o rumo ao destino (José Martins)

1. Mensagem do nosso camarada José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 3 de Junho de 2015, falando-nos desta vez da chegada a Bissau.

Meus amigos
Depois da Partida, eis que chega a Chegada (passe o pleonasmo).
Faz 47 anos que pisei aquela que é, para nós, a segunda pátria.
No próximo dia 10, fará 45 anos do regresso definitivo.

Abraço
Zé Martins


A CHEGADA

Dos doze passageiros que embarcaram no Alenquer, apenas três eram milicianos. Os restantes, os marinheiros e um furriel enfermeiro, eram do quadro permanente.

A viagem foi tranquila, pois despojados das fardas, que foram encerradas nos armários até ao dia do desembarque, todos vestíamos roupas civis. O próprio fardamento da tripulação, nada tinha a ver com o rigor militar.

Dado o reduzido número de passageiros, até o aviso de que as refeições iam ser servidas, era transmitido pessoalmente no convés, ou, quando caso disso, com pancadas leves na porta dos alojamentos.

Calmamente, com a calma que o mar transmite, fomos passando os dias em que foram sendo percorridas as milhas náuticas que nos separavam de África, até que, na manhã de 3 de Junho [ano de 1968], as máquinas reduziram a pressão e o barco ancorou ao largo de Bissau. Era uma Segunda-feira.


Ponte-cais, Bissau. Em primeiro, vê-se o monumento a Diogo Cão. 
Bilhete-postal, colecção "Guiné Portuguesa, 110". © Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal, Imprimarte - Publicações e Artes Gráficas, SARL. Colecção: Agostinho Gaspar / Digitalizações: Luís Graça & Camaradas da Guiné 2010.

Lá longe, no cais, havia um grande vaivém de pessoas e barcos. Já não era o dia de “São Vapor” de que nos fala Amândio César no seu livro Guiné 1965 – Contra Ataque, assim era chamado o dia em que atracava um barco ao porto, fazendo com que a população se deslocasse até lá.

Ao largo, assim que começaram a descer as LDM – Lanchas de Desembarque Médio – houve um autêntico enxame de pequenas embarcações, movidas a motor ou a remos, em torno das mesmas a oferecer a venda de serviços ou comida tradicional. A tripulação que descera já dentro das lanchas, ia assumir de imediato a sua missão deslocando-se para o cais militar. Abandonaram aquela zona entre acenos despedidas e votos de boa sorte.
 
Mesmo nas vindas a Bissau, de férias ou em serviço, nunca mais voltei a encontrar estes companheiros de viagem. A Guiné é pequena, mas as coisas nunca estão ali à mão.

No porto do rio Geba, em Bissau, a chegada e a partida de embarcações era banal que o Alenquer teve de aguardar, ao largo, autorização e espaço no cais para poder atracar.

A acostagem só se efectuou perto da hora de jantar.
O Imediato veio informar-nos que, a partir daquele momento, a viagem tinha terminado. No entanto, como já era tarde, aconselhava-nos a pernoitar no barco, porque sendo já tarde, era muito difícil arranjar acomodações militares ou mesmo civis. Mais! Como iam demorar cerca de dois dias com as operações de descarga do navio, podíamos continuar alojados no mesmo, como convidados, devendo, no entanto, providenciar a nossa instalação futura.

Antes de jantar fomos a terra. Queríamos começar a conhecer a terra, mas também, tomar algo de fresco, porque o calor, mesmo para os que já lá estavam há algum tempo, era, digamos, insuportável. Andando e observando a cidade fomos dar ao Café Bento, conhecido pela “5.ª Repartição do QG”, uma vez que se encontrava sempre, a qualquer hora, repleto de militares em passagem por Bissau, quer na ida ou regresso de férias, quer por se encontrarem em consulta externa no Hospital Militar ou ainda a aguardar colocação.

Nos cafés a lista dos serviços que ofereciam, das bebidas aos tabacos, eram quase iguais às que oferecia qualquer café da metrópole. A diferença era no preço: a moeda local, o Peso, não tinha centavos ou pelo menos não circulavam, sendo o arredondamento efectuado, quase sempre, para a unidade inferior, o que naquela altura representava algum benefício.
As notas emitidas na metrópole eram sempre muito bem recebidas, já que tinham um valor acrescido de dez por cento. Às moedas já não lhes atribuíam qualquer mais valia.

No dia seguinte, segunda-feira, apresentamo-nos no Quartel-General do CTIG, em Santa Luzia, ficando a aguardar transporte para as respectivas unidades. Tínhamos o tempo todo livre, mas teríamos de nos apresentar, todos os dias, no Serviço de Pessoal do QG, a fim de sabermos quando e de que forma seria efectuado esse transporte para as nossa unidades.

Nesse mesmo dia, Terça-Feira dia 4 de Junho, durante o almoço a bordo do Alenquer, o imediato veio falar connosco, informando-nos que a descarga do navio estava a ser mais rápida do que o previsto. Seria aconselhável, para nós que, o jantar e a pernoita, fossem efectuadas já em terra, uma vez que tudo indicava que largassem ainda durante a madrugada do dia seguinte.

Terminada a refeição fomos apresentar, ao comandante e tripulação do navio, as nossas despedidas e sobretudo, agradecer a forma amável e distinta com que nos tinham tratado desde que a saída de Lisboa. Depois lá rumámos em direcção aos alojamentos destinados aos sargentos no Quartel-General em Santa Luzia, a escassos quilómetros da cidade.

Como era de prever, e isso mesmo já tínhamos constatado, o local, apesar de limpo e arejado, era o protótipo de local de passagem. As camas não dispunham de roupa nem havia qualquer local onde se pudesse requisitar material de aquartelamento.
Acomodamo-nos o melhor possível para passar a noite, não sem antes termos visitado o bar de sargentos, para o que já começava a ser habitual: tomar uma qualquer bebida fresca.

No dia seguinte, após passagem pelo Serviço de Pessoal para cumprimento das instruções recebidas, e não havendo qualquer previsão de transporte para os nossos destinos, como que impulsionados por uma mola dirigimo-nos ao cais.

Navio de carga "Alenquer" - Armador: Sociedade Geral do Comércio, Indústria e Transportes - Lisboa
Com a devida vénia a Navios Mercantes Portugueses

Surpresa... tristeza... desilusão... O Alenquer já não estava nem no porto nem se avistava no estuário. Já tinha partido.

O desalento foi total. Foi como se nos tivessem cortado o cordão umbilical, que nos ligava à metrópole. Dias depois cada um seguiu o seu rumo, que, acaso do destino, ficava quase nos vértices do triângulo que a província formava: Nova Lamego, Bedanda e Farim.

José Martins
14/JULHO/2000
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14672: O cruzeiro das nossas vidas (21): Os últimos dias, a família, os amigos e finalmente o embarque, em 28/5/1968 (José Martins)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro amigo Zé Martins

Já nos tinhas contado a "partida" e agora relata-nos a "chegada".
Pelo meio, a viagem.
De certo modo também já fiz uma espécie de relato desses, só que, como foi no início da colaboração deste repositório de memórias, fiz tudo ao mesmo tempo.
Há na tua narrativa muita semelhança com a minha viagem.
Também fui num cargueiro, não o "Alenquer" mas sim o "Ambrizete".
Também haviam 6 cabinas duplas para passageiros, num total de 12.
Seis militares, todos Furriéis, todos de Transmissões, 3 TSF e 3 TPF e seis civis, uma mãe caboverdeana e 3 filhos e dois outros civis que ocuparam a outra cabina, sendo um já 'maduro' de idade, que ia trabalhar para a Tecnil, vindo de França, e o outro, um proprietário de uma oficina automóvel da zona saloia, que ia à aventura, só com a roupa do corpo, pois tinha tido "urgência" em sair da circulação....
Também ancorámos, manhã cedo, ao largo do cais, que ficou reservado para o "Carvalho Araújo" que vinha navegando com dificuldades (salvo erro tinha tido fogo a bordo) e que nessa madrugada ultrapassámos ao largo.
Muitos pontos comuns, portanto.

Obrigado pelas recordações.

Hélder S.