domingo, 7 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14710: Libertando-me (Tony Borié) (20): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (1)

Vigésimo episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.


Glória, Lola, a Ruça (1) 

Companheiros, hoje vamos iniciar a história da “Lola”, é um exemplo da emigração para os USA, terá que ser em duas ou três partes, pois é um pouco longa e não queremos abusar do espaço que o nosso blogue nos dispensa, mas vale a pena ler, pois também lhe chamavam “Ruça”, hoje vive aqui no estado da Flórida, anda por aí na praia, quase todos os dias a vemos, sempre com um sorriso. Vai-nos contando a sua história de vida de mulher emigrante, colocando para trás todas as amarguras e sacrifícios, mas também algumas coisas menos más, com que a sua já longa vida a contemplou.

Quando criança, na sua aldeia, o seu nome era Glória, mas chamavam-lhe “Lola” e, às vezes “Ruça”, porque tinha umas madeixas no cabelo, que eram um pouco louras, era a filha mais velha de um casal de agricultores que cultivavam umas terras, à renda, de uns senhores que viviam na cidade de Aveiro, que as tinham herdado, próximo da vila de Águeda, na base da montanha do Caramulo, nunca sabendo com quem faziam fronteira, sabiam, única e simplesmente que todos os anos, por altura de Novembro, princípio de Dezembro, o senhor Aniceto, pai da Glória, lá lhes ia levar um almude de azeite, meio saco de castanhas, uns tantos garrafões de vinho, que quase sempre eram entregues ao mês e, cinco contos de réis, em notas de quinhentos escudos, assim como durante o ano, lhes levava legumes e fruta da época. Por altura da Páscoa, levava a melhor galinha, um coelho ou dois, e às vezes até um galo, tudo isto já amanhado e limpo. Pelo Natal, levava alguma carne de porco, salgada e alguns rojões, numa panela cheia de unto.

O ano podia ser seco ou de chuva, não interessava, a renda e os produtos tinham que ser entregues na data combinada. Não era raro o mês que os senhores patrões pediam ao Aniceto para cortar umas árvores no pinhal, que fazia fronteira com o rio Alfusqueiro, vendê-las e levar lá o dinheiro, pois o menino Joãozinho já andava a estudar e precisava de algum dinheiro, lá por Coimbra. O senhor Aniceto, até fazia isto com gosto, bendizendo a sua sorte por o menino Joãozinho estar em Coimbra, pois nos anos anteriores passava às semanas, até meses, lá na aldeia, na sua casa, comendo e bebendo todo o seu governo, que às vezes era tirado da boca dos seus filhos, tudo isto sem contar, quando vinham trazê-lo e buscá-lo, porque nessa altura, os pais, ficavam pelo menos dois dias e, quando se iam embora, diziam:
- Oh Aniceto, vê a cor do menino Joãozinho, parece outro, o ar do campo sempre lhe fez bem. Vê se arranjas aquele quarto onde dormimos, as paredes estão um nojo e aquela janela bateu toda a noite. Olha, leva-me lá um cesto com alguns pêssegos e outra fruta, que possas apanhar. Há, já me esquecia, leva-me também uns limões e uma ceira com alfaces e cenouras. Que raio, pagas uma miséria de renda! Temos mas é de fazer um contrato, assinado.

E lá iam embora, conduzindo o seu carro a toda a força, fazendo uma poeira que ninguém se via. O senhor Aniceto cumpria rigorosamente as ordens do senhor seu patrão, dono das terras que ele e a sua família cultivavam e, quando era necessário levar todos aqueles bens alimentares para a cidade de Aveiro, fazia o trajecto para a vila de Águeda a pé, viajando depois no comboio da CP, que na altura se chamava, “Ramal de Aveiro”.

A Madalena era a dedicada esposa do senhor Aniceto, mesmo muito dedicada, pois já lhe tinha dado quatro filhos, os três últimos vieram a seguir uns aos outros, agora andavam com a impressão que a Madalena, estava outra vez grávida, mas não tinham ainda a certeza. A Glória, que também era a “Lola”, e para alguns era a “Ruça”, era a mais velha, tomava conta dos irmãos, praticamente era a mãe, só não lhes dava de mamar. Todavia, era ela que os vestia, lhes dava de comer, os lavava e os ia deitar, a Madalena, sua mãe, só os deitava ao mundo. O sistema em casa estava assim ordenado, Madalena trabalha com o Aniceto nas lides da lavoura, a Glória toma conta e zela pelos irmãos.


Os vizinhos viam a Glória descalça, com um vestido de chita, às vezes roto, com o irmão mais novo ao colo e os outros dois de mão dada, agarrados ao vestido da Glória. Se choravam, quem os atendia era a Glória, se tinham fome, quem lhes dava o comer era a Glória, se passava um cão na rua e ladrava, os irmãos iam logo meter-se debaixo do vestido da Glória.

Em casa, ninguém dava pela Glória, era como se fizesse parte da mobília, todas as suas tarefas em cuidar dos irmãos era normal. Chegados à noite, a mãe dizia:
- Oh Glória, vai mudar o farrapo ao teu irmão que está todo borrado, pois está aqui um cheiro esquisito.

O pai, dizia:
- Que raio, deixa de dar ordens à Glória, coitada da rapariga, que anda farta de trabalhar.

E continuava:
- Oh Glória, dá-me aquele avental da tua mãe para eu limpar os pés.

Entretanto, o irmão chorava com dores de barriga, pois tinha comido nêsperas, ainda verdes e sem querer saber de mais nada, ia encostar-se à Glória.

A Glória, era quase sempre a última a ir deitar-se, pois tinha que lavar a bacia de barro vermelho onde comiam à noite que era também usada para lavar os pés aos irmãos, dar uma papa de leite de cabra com farinha de milho ao mais novo que era depois  levado para a cama, porque dormia com ela, pois a mãe Madalena andava enjoada, devendo de estar grávida outra vez.

(continua)

Tony Borie, Junho de 2015
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Nota do editor

Último poste da série de 31 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14683: Libertando-me (Tony Borié) (19): ...É o destino

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