sábado, 30 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7195: Blogoterapia (165): A geração da guerra (Joaquim mexia Alves)

1. Mensagem de Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 29 de Outubro de 2010:

Meus camarigos editores
Aqui, a pensar sozinho, saiu-me este escrito que vos envio.

Como sempre fica à vossa disposição para dele fazerdes o que quiserdes.

Um abraço forte e amigo do
Joaquim



A GERAÇÃO DA GUERRA

Lentamente as feridas vão fechando, a pele vai-se unindo, vamos passando cada vez mais creme hidratante para ver se não ficam cicatrizes, e vamos olhando para as maleitas à espera que não deixem marcas.

A cauterização é lenta, nalguns mais difícil, ou porque as feridas são mais profundas, ou porque tem um feitio mais “hemofílico”.

Curiosamente o tratamento de choque, a sanação das feridas, o acalmar das dores, faz-se normalmente à volta da mesa, em encontros preparados para o efeito.

É realmente curioso percebermos a importância da “mesa” no desenvolvimento das relações humanas.

As festas de família, fazem-se à volta da mesa.
As chegadas e as partidas, fazem-se à volta da mesa.
As alegrias e as tristezas, fazem-se à volta da mesa.
Os encontros e alguns desencontros, fazem-se à volta da mesa.
Negócios, combinações e até vigarices, fazem-se à volta da mesa.
Mesmo na religião, o Mistério central do cristianismo, se fez à volta da mesa, na Última Ceia.

Também a nossa Tabanca Grande, apesar dos escritos e das leituras, sente necessidade de uma vez por ano se reunir à volta da mesa, e como aos atabancados parece pouco apenas uma vez por ano, arranjaram maneira de constituir outras tabancas para se reunirem mais vezes… à volta da mesa!

Aspecto do V Encontro da Tertúlia, em Monte Real, Junho de 2010, organizado por Joaquim Mexia Alves
Foto de Manuel Carmelita

Mas regressemos ao inicio do texto, e às feridas que vão sendo curadas e às vezes até quase esquecidas.

Não é fácil esta coisa de falarmos da guerra, sobretudo porque há muitos que não nos entendem, nem compreendem a nossa linguagem, pelo que, estes encontros à volta da escrita e sobretudo à volta da mesa, são sem dúvida o maior e mais permanente bálsamo para as nossas feridas.

E depois ficamos a pensar que realmente a nossa geração passou por muita provação, por muitas dificuldades.

A verdade é que, sem envolver a politica no assunto, esta geração foi chamada a lutar em territórios longe de suas casas e a dar o melhor de si, dos seus anos, voluntária ou forçadamente, em circunstâncias a maior parte das vezes adversas, ou para ser mais correcto, em circunstâncias abaixo de qualquer nível de humanidade.

E é também verdade que a última geração da guerra, levou ainda com uma “revolução”, (não discuto politica aqui neste nosso espaço), que veio alterar toda a sociedade em que vivia, e que assim obrigou a uma nova adaptação mesmo em cima do seu regresso da tal guerra, da qual ainda andava a curar as feridas.

Mas esta geração, ou melhor, estas gerações da guerra, eram e são tenazes, não só por tudo aquilo que passaram, mas pela necessidade que sentiram de continuar a lutar por uma vida melhor.

É ver a quantidade daqueles que vindos da guerra voltaram aos estudos e se licenciaram em cursos superiores.
E aqueles que deitaram as mãos ao trabalho e se especializaram em tantas áreas e até alguns que se tornaram empresários de sucesso merecido.

Quando hoje vemos tanta depressão já em jovens, tanta indecisão em prosseguir carreira e trabalho, tanta dificuldade em decidir e decidir bem, temos que perceber forçosamente que o cadinho das dificuldades nos revestiu de uma força e capacidade interior, que é marca indelével destas gerações.

Não tivemos a vida facilitada, nem pelo estado, nem pelos pais, (pois nesses tempos a educação era espartana), não tivemos as portas abertas a tantas oportunidades, passámos verdadeiramente as “passas do Algarve”, e no entanto, ou provavelmente por causa disso mesmo, não desistimos e continuámos a lutar.

Pois é, a realidade é que a Pátria, ou melhor o Estado, não nos deve apenas o sacrifício das nossas vidas na guerra, deve-nos também e apesar de tudo, o termos continuado a lutar e termos construído as bases, tantas vezes mantendo-as com tanto esforço, para que tudo continuasse a existir.

E somos nós ainda que nos preocupamos e tentamos ajudar aqueles que da nossa geração da guerra, por tantas e tantas razões que não lhes podem ser assacadas, se arrastam pela vida, esquecidos do Estado que os mandou para a guerra, e agora quer enjeitar as suas responsabilidades.

Mas ainda fomos mais longe, pois perante a “impossibilidade” de um relacionamento sério e honesto por parte do nosso Estado com aqueles com quem lutámos, somos nós que, colocando de lado feridas e dores, vamos estabelecendo com eles bases de uma nova amizade, cimentada muito mais no que nos une do que naquilo que nos divide.

E é assim também, verdade seja dita, que vamos curando as nossas mágoas e purificando as nossas memórias.

E não, não estou a querer fazer comparações com as gerações de agora, ou com aquelas que passaram antes de nós, (os tempos eram e são diferentes), mas apenas a constatar uma realidade que a todos nós toca sem dúvida, e que nos ajuda a percebermos que mesmo que não nos reconheçam, a nossa dignidade e a nossa hombridade está muito acima da homenagem hipócrita e feita apenas para nos tentar calar.

Escrevo o que escrevo e à medida que o vou escrevendo sinto-me bem, mais em paz comigo mesmo, e chego à conclusão que não preciso dessas tais homenagens ou benesses que vêm de uma qualquer concessão para calar vozes e passados incómodos, o que eu preciso realmente é de vós meus camarigos, e de todos aqueles que querem perceber que:

Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!


Monte Real, 28 de Outubro de 2010
__________

Notas de CV:

(*) Vd. último poste de 3 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7074: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (12): Tempo presente, A honra aos que lutaram

Vd. último poste da série de 29 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7189: Blogoterapia (164): O Blogue está a sofrer uma mutação evolutiva de qualidade / Sinal de maturidade é virmos aqui contar o que nos vai na alma (Carlos Filipe / Luís Graça)

10 comentários:

Manuel Reis disse...

Grande Camarigo:

De acordo com o teu texto.

Fez-me recordar a carta que recebi este semana do Exército Português para ir prestar declarações sobre um camarada, que viveu comigo o tempo de guerra em Guileje e Gadamael, e sofre de STRESS PÓS TRAUMÁTICO DE GUERRA.

Há feridas que nunca se curam, se arrastam pelo tempo, sem que para tal as entidades responsáveis façam algo para melhorar a situação; olham para o lado e assobiam.

Este amigo desloca-se ao serviço de Psiquiatria no Centro de Saúde anexo ao Hospital Militar, desde 1986, e os serviços continuam a complicar-lhe a vida no que respeita à ajuda que precisa e merece.

Confessou-me que só a compreensão da mulher e da família mais próxima tem impedido um desenlace mais trágico. Há momentos em que a vida, para ele, deixa de fazer sentido.

Já devo ter sido solicitado para este tipo de declarações mais de 30 vezes, mas agora foi grande a surpresa. Desde 1986 não tiveram tempo nem disponibilidade para resolver um problema,de fácil visibilidade, que se apresenta com contornos de um certo dramatismo.

No dia 9 de Novembro lá me apresentarei, no Regimento de Artilharia Anti-Aérea nº1, para tentar ajudar o amigo e camarada Victor Santos. Terei de me conter, para não partir a louça, já que isso mexe com o meu estado de espírito, as minhas feridas estão controladas mas não debeladas. Como diz o Mexia Alves a cauterização por vezes é lenta e difícil.

Nestes processos é fundamental a ajuda familiar, mas os convívios e as trocas de ideias sobre experiências vividas em guerra, com os nossos amigos e camaradas, constituem um óptimo complemento no acalmar das dores.

Um abraço amigo.

Manuel Reis

antonio graça de abreu disse...

Também assino por baixo as tuas palavras, camarigo Mexia Alves.
Há feridas que nunca mais saram, mas a maioria de nós saiu mais forte da Guiné.
Temos uma dolorosa experiência de vida, também uma extraordinária e enriquecedora experiência de vida.
E não metam política nisto tudo, senão estragam tudo.
Abraço,

António Graça de Abreu

António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Caro Mexia ALVES

Como Tertuliano, gostei e sensibilizou-me a descrição que fazes da Geração da Guerra. Delineação concebida com espírito lúcido repleto de esperança, num tom de harmonia e tranquilidade, evidenciando muito saber e vivência… Também é disto que o Blogue precisa!

Um abraço

José Corceiro

Anónimo disse...

Caro Mexia Alves,

Ainda que se possa correr o risco de o teu texto se transformar em abaixo-assinado (e não sei se isto está previsto nas regras do blogue) faço como o Graça de Abreu: assino por baixo.

Um abraço,
Carlos Cordeiro

Anónimo disse...

Caro Jaquim,

Fizeste-me saltar do amorfismo, em que os problemas da família, me tem envolvido.

Mas este saltar é apenas para te pedir que subscreva as tuas palavras.

A situação obriga-me a hibernar mais alguns tempos.

Tenho matéria, mas não dá.

Gostei imenso do teu texto porque o senti e o vivi.

Tenho acompanhado todos os problemas, dos que agora estão cá fora do seu "chão". É difícil, não dá para todos, mas vamos fazendo os impossíveis.

Um abraço! É verdade, do tamanho do esquecido Cumbijã.

Mário Fitas

Anónimo disse...

Grande Joaquim
Grande no tamanho, na alma, na verdade, na generosidade.
E com a idade cada vez estás mais refinado. É um privilégio ter-te por vizinho e amigo.Que belo texto e que bom é ter-te por perto na maneira de ser e viver a vida de ex-combatente.Já era tempo de ganhar ao Tempo a paz que merecemos.
Um grande abraço de Alcobaça,
JERO

Hélder Valério disse...

Caro 'camarigo' Mexia

Tens escrito muita coisa.
Com grande sentimento, com grande entrega, com grande 'verdade', em prosa, em verso, com ironia, com amor, com raiva, às vezes impulsivamente.
Este texto porém parece ter saído de uma profunda reflexão, que te deu paz interior e que fazes reflectir nas considerações, nas observações, nas afirmações que fazes.
E fica muito bem complementado com o comentário/testemunho do Manuel Reis.

Um abraço
Hélder S.

António Matos disse...

Ainda que reconheça a acção terapeutica que a mesa desenvolve ao nível quer físico quer psicológico de quem à volta dela tente resolver problemas, não lhe atribuo qualidades curativas ou mesmo paliativas nas feridas adquiridas numa guerra, sejam elas das que sangraram o vermelho típico da vida, sejam das que, sem hemorragia alguma, provocaram distúrbios irreversíveis nos que se tornaram muitas vezes inimputáveis.
Creio sinceramente que estas vítimas jamais amolecerão a sua dôr e tudo farão para que os seus sucessores sejam transmissores fidedignos dum sofrimento que lhes foi infligido no sentido de um dia não virem a ser injuriados pelo desplante ignóbil dum mísero ignorante que, à semelhança de alguns, negam a pés juntos a existência do holocausto !
Perdoar ou tentar perceber as consequências funestas e recíprocas dum conflito armado nos respectivos beligerantes, é uma coisa.
Esquecer, por anestesia, jamais !
Percebendo o que poderá estar implícito no pensamento do Mexia Alves, discordo do que transmitiu por escrito uma vez que não é possível não fazer política nas nossas mais comezinhas atitudes do dia-a-dia, quando não num tema desta envergadura.
Não chamarei à colação um qualquer partido político, obviamente, mas desafiarei o estado a assumir as suas obrigações sociais, hoje que a tanto apela !
Não estou a falar do político "A" ou do político "B" ! Estou a falar da intervenção que todos temos que assumir na defesa da nossa integridade moral ( já que a material, sendo tão justa e merecida como a outra, não faz parte desta minha intervenção )!
É sabido o altruísmo que os ex-combatentes dinamizaram relacionamentos com a Guiné como o estado jamais conseguiu, quiçá tentou !
Este próprio blog permitiu que fizéssemos frente a monstros sagrados que habitavam as nossas consciências e com isso exorcisámos fantasmas e percebemos melhor algumas coisas.
Alguns até passaram a dormir melhor ...
Éramos como crianças com medo do escuro ....
Mas as feridas estão cá ainda que muitas vezes tenham físicamente cicatrizado !
As minhas são tão presentes como quando mas fizeram !
Não as enjeito; fazem parte domeu espólio vivencial !
Não as quero largar nem amenizar pois com elas entenderei melhor a minha passagem por África sem que, contudo, me atormentem a solidez intelectual que foi formada na imberbe formação de teenager na altura.
Ao estado exijo respeito !
Não quero pachos de água quente para aguentar melhor o queme fez !
Quero todas as forças bem vivas para o massacrar nas suas obrigações !
Um abraço, Mexia Alves e obrigado por me teres permitido este desabafo.

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Aproveito esta boleia para saudar o reaparecimento 'em boa forma' do António Matos.

Ei-lo que regressa, no seu melhor, como este comentário comprova, na linha do que lhe tenho apreciado nos seus escritos no "Facebook".

Boa continuação...

Um abraço
Hélder S.

António Matos disse...

Helder Valério, obrigado pelas palavras e vamo-nos "ouvendo" aí pela blogosfera ...
Um abraço,
António