quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7223: Notas de leitura (165): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Novembro de 2010:

Queridos amigos,

Trata-se de um livro com muita informação, é de leitura obrigatória para quem quer juntar as peças do puzzle, ter as versões das duas forças em presença.

Considero que foi uma feliz oportunidade ler primeiro o Hélio Felgas, a seguir o Luís Cabral e estar agora a acabar a história dos fuzileiros na Guiné. Há muitas peças que encaixam, outras continuam a pedir múltiplos esclarecimentos.
 
O fundamental é deixar a informação inventariada, os historiadores, de posse de muita coisa que ora não está esclarecida (são indispensáveis apanhar relatos orais de alguns dos protagonistas ainda vivos, por exemplo) poderão aperfeiçoar o quadro e interpretá-lo, em bases científicas.

Um abraço do
Mário



“Crónica da Libertação” (2), por Luís Cabral

Beja Santos

Estamos chegados a Agosto de 1959. Luís Cabral escreve:

 “A situação das equipagens das lanchas e outras embarcações das empresas coloniais era, em 1959, bastante deplorável. Os salários variavam entre 150 e 300 escudos. O capitão da embarcação ganhava ainda menos do que o motorista, pois este em geral sabia ler e gozava do estatuto de “civilizado”. Os restantes membros da tripulação, sendo considerados “indígenas”, tinham de contentar-se com um salário de miséria, sem quaisquer regalias”. 

O descontentamento organizou-se, na manhã de 3 de Agosto, centenas de homens estacionaram no cais do Pijiguiti, estavam em greve, uma greve que escapara totalmente ao controlo das autoridades. Estas lançaram o ultimato: se à tarde os trabalhadores não retomassem o trabalho haveria um correctivo exemplar. Os trabalhadores portuários não vergaram, fecharam o portão de acesso ao cais, armaram-se de paus e pedaços de ferro. A reacção da polícia e dos soldados foi brutal, abriram fogo, indiscriminadamente. 

A partir daí, escreveram-se rios de tinta acerca do número de mortos. De acordo com alguns relatos, houve cerca de 50 mortos e muitas dezenas de feridos. (Tem o maior interesse o relato então elaborado pelo Comando da Defesa Marítima , e publicado no livro sobre os fuzileiros na Guiné por Luis Sanches de Baêna, de que iremos fazer a recensão.).

Muito provavelmente, a agitação foi liderada por Rafael Barbosa. A seguir, a polícia política iniciou a caça às bruxas: era imperioso encontrar a fonte da agitação. O grupo formador do PAIGC procura reunir-se e, em concreto, puseram fora do país um dos principais suspeitos, Carlos Correia. 

Mais tarde, Amílcar Cabral veio a Bissau, encontrou-se com Rafael Barbosa e tomou-se a decisão de acelerar a selecção dos jovens mais capazes para receberem no estrangeiro preparação para a luta da libertação. Amílcar, a seguir vai a Paris encontrar-se com os dirigentes nacionalistas das outras colónias e segue para Tunes onde se iria realizar uma importante conferência pan-africana. 

É por essa época que se dissolveu o Movimento Anticolonialista e que se criou a Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas. Luís Cabral e Elysée Turpin encontraram-se meses depois com Amílcar em Dakar. Vem aqui uma observação ácida, generalista:

 “Muitos dos nossos compatriotas radicados no exterior há muitos anos, e até descendentes seus que nunca conheceram os nossos países, viam-se já como os grandes libertadores e dirigentes da Guiné e de Cabo Verde, sem sequer abandonarem a sua vida mais ou menos estável de emigrantes, em Dakar ou Conacri, ou mesmo na Europa”.

Luís Cabral decide partir para o exílio, reúne-se pela última vez em Bissau com os seus camaradas e dissimuladamente parte para o Senegal, chega a Dakar. Uma avalancha de jovens vem reunir-se, ele refere os seus nomes: Vitor Saúde Maria, Sanazinho e Dembazinho Mané, Samba Lamine Mané, Gil Fernandes, Arafan Mané e José Turé. 

Em Conacri, Amílcar começara a organizar o “Lar do Combatente”, onde eram instalados os jovens saídos do país. Carlos Correia, Luciano N’Dao, Mussa Fati e outros juntaram-se a esta iniciativa. Apareceram mais tarde Chico Mendes, Nino Vieira, Armindo Monteiro, entre muitos outros. 

Para ganhar a vida, Amílcar era conselheiro técnico no Ministério de Economia Rural, da Guiné Conacri. Segundo Luís Cabral, Amílcar procedeu a estudos muito importantes mas as autoridades não deram execução às suas propostas. Em Conacri, entretanto, começaram intrigas de outros compatriotas, o racismo veio à tona isto enquanto acreditados em Conacri concediam bolsas de estudo a esses “pseudomovimentos de libertação”.

Em Conacri estava igualmente instalada a base do MPLA, tendo à frente o seu presidente de então, Mário de Andrade. Amílcar Cabral faz a sua primeira viagem à China que, para o irmão, marcou uma nova etapa da vida do partido: a seguir a esta visita, seguiram para a China vários jovens para receberem preparação militar. Por essa época também a sigla PAI mudou para PAIGC (o PAI era um partido senegalês que se opunha a Senghor). Após o trabalho de agitação, começou a luta armada. Os dados revelados têm incontestavelmente uma grande importância histórica.

Após o encontro de Dakar com o grupo de Rafael Barbosa, consagrara-se a existência de uma só organização de luta. Em Bissau, continuava o recrutamento de jovens que iriam receber formação na Academia Militar de Pequim. 

Em de Dezembro de 1960 era publicado o primeiro número do jornal “Libertação” órgão de libertação do PAIGC. Em 4 de Fevereiro de 1961 eclode a guerra em Angola. A primeira fornada de quadros já está na China, alguns deles virão a ser comandantes de guerrilha e até dirigente eminentes: Domingos Ramos, Osvaldo Vieira, Constantino Vieira, Manuel Saturnino Costa, Chico Mendes, Nino Vieira entre outros. 

O trabalho acumula-se na vida de Luís Cabral, é decidido que ele deve deixar Dakar e ir para Conacri, junta-se a Amílcar e Aristides Pereira. Em Abril de 1961, em Casablanca, é criada a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas (CONCP). Continuam a chegar jovens, novos quadros do PAIGC. Luís Cabral fala em Corca Só, que chegará a comandante da região de Madina-Belel, quando cheguei a Missirá ouvi falar no seu nome, mais tarde veio a notícia de que teria sido morto num bombardeamento aéreo. Uma nova fornada de quadros parte para a Checoslováquia.

No final de 1961, um conjunto de quadros preparados para a guerrilha e com noções teóricas ministradas na China avançam para a luta, partem para a mobilização das populações. Luís Cabral escreve:

 “Nino Vieira dirigiu o grupo do Sul, com os sectores de Quitafine, Cubucara, Unal, Como; Rui Djassi, o do Centro-Sul que incluía Tite, Cubiseco, Buba e N’Djassani; Osvaldo Vieira, Chico Mendes, Loló e Saturnino partiram para o Norte, devendo instalar-se em Morés. A área de Xitoli, Bafatá, foi confiada à responsabilidade de Domingos Ramos; Vitorino Costa, tendo Pascoal como adjunto, seguiu para o Gabu. Luciano N’Dao, Constantino Teixeira e Pedro Ramos ficaram ligados a Bissau a Zona Zero”. 

É o trabalho principiante, vão armados de pistolas, levam na bagagem uma fotografia de Amílcar, uma pequena bandeira, o emblema do partido. Começam os insucessos e os sucessos. Vitorino Costa é obrigado a retirar apressadamente. Nino encontrou no Sul uma população bastante receptiva. A população balanta ou nalu adere com facilidade. Em finais de 60, o grupo agitador da região de Bissorã é capturado. Amílcar Cabral tenta negociar com os manjacos liderados por François Mendy, que actuavam na região senegalesa. 

Em Outubro de 1961, Amílcar assinou uma carta aberta ao Governo português. No início de 1962, a PIDE desmantelou a organização do partido em Bissau. No Morés, Chico Mendes e os seus companheiros começam por ter uma vida difícil, depois chegam as adesões da população. Na região de Quínara, a situação também se tornou difícil, Vitorino Costa foi capturado e morto. Em agosto de 1962, a FRELIMO começou uma nova etapa da luta de libertação em Moçambique. 

E muito material de guerra concedido pelo Governo marroquino começa a chegar a Conacri.  Inicia-se um período de grandes tensões, as autoridades guineenses começam por desconfiar se aquele material não irá servir para um golpe de Estado no país. Alguns dirigentes do PAIGC são presos. Amílcar Cabral esclarece às autoridades, o armamento passa a entrar pela fronteira Sul, sem dificuldades. Pistolas-metralhadoras, muitas munições são descarregadas na região Sul. 

Na região do Xime, a base principal da guerrilha é o Fiofioli, junto do Corubal. Domingos Ramos e Abdulai Barry começam a ter sucesso na mobilização. Luís Cabral escreve:

"Samba Silate é uma pequena aldeia da área de Bambadinca, perto da estrada do Xime. A diferença entre esta tabanca e as outras vizinhas vem do facto de ter sido ali instalada uma representação da missão católica, com todas as vantagens sociais que ela trouxe à população local. Os jovens de Samba Silate manifestaram um grande interesse pela luta, acabando por se juntar na sua grande maioria, aos guerrilheiros do mato”. 

Mas mesmo aqui as dificuldades subsistiram, os guerrilheiros foram obrigados a retirar para mais longe, junto do Corubal, aguardando armas. Os jovens rebeldes de Samba Silate voltaram à sua tabanca, foram denunciados, conseguiram escapar por terem sido avisados pelo padre António Grillo que denunciou a violência cometida pelos agentes enviados à tabanca. Segundo Cabral, muitos desses jovens acabaram por sucumbir, vítimas de torturas, em Bambadinca e Bafatá.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 3 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7216: Notas de leitura (164): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (1) (Mário Beja Santos)

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