sábado, 6 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7232: Notas de leitura (166): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Novembro de 2010:

Queridos amigos,
Às vezes vacilo quanto ao espaço que se deve conceder à “Crónica da Libertação”, de Luís Cabral.
Ela encerra tanta informação, remete para tantos outros relatos, confirma ou traz tanta contestação quanto a certos relatórios militares, que optei por mais alguns episódios, até ao assassinato de Cabral.

Um abraço do
Mário


“Crónica da Libertação” (3), por Luís Cabral

Beja Santos

A luta armada e a consolidação política do PAIGC, entre 1963 e 1964

As dificuldades sentidas pelo PAIGC não se confinavam à adesão das populações, o que se passou em Samba Silate era indício de que por um lado as populações mostravam reticência e por outro a improvisação estava a sair muito cara aos guerrilheiros. 

No caso do Leste, cometeram-se despautérios graves, as populações também se mostravam aterrorizadas com a onda de repressão das autoridades. Cheios de fome, os guerrilheiros comandados por Domingos Ramos e Barry tiveram que se alimentar da fruta amarga do tarrafe: 

“Com sementes de tarrafe adoçadas com cinza, e com coração de palmeiras que também crescem no mato de Fiofioli, os homens do PAIGC puderam não só aguentar-se nos seus postos como ainda conseguiram libertar a maior parte da área em que combatiam, melhorando definitivamente as suas condições de vida e luta”. 

Em jeito de comentário, poderei dizer que estes grupos se deslocaram para Baio e Burontoni, Ponta Luís Dias, daqui vigiavam a população que trabalhava nas bolanhas ricas do Poidom. Entretanto, as populações e guerrilheiros em Mina e Galo Corubal, dentro do Fiofioli, foram ganhando meios de subsistência e pescavam no Corubal. Só muito excepcionalmente é que as tropas portuguesas alcançaram estas bases e acampamentos. 

No Senegal, tudo continuava difícil, o abastecimento para as bases da região Norte tinham que partir da República da Guiné até às zonas libertadas. Os transportadores de material, esfomeados, roubavam comida nos campos senegaleses, eram problemas sem solução à vista.

No Morés, a guerrilha consolidou-se. Em finais de 1963, Luís Cabral faz a primeira visita ao Quitafine, a partir de Sangonhá, depois partiram para a base Cassacá, onde foi recebido por Manuel Saturnino. Em Cacine estava instalado o primeiro quartel das tropas portuguesas, a que se seguiu Gadamael. Segundo Luís Cabral, as tropas portuguesas estavam confinadas a Cacine. As viagens eram morosas e dolorosas, entre a estrada de Boke e a fronteira. Depois vem uma frase enigmática: 

“O Amílcar e o Aristides foram as únicas pessoas com quem falei sobre os graves problemas que existiam nalgumas zonas do Sul do país. Este facto trazia-nos dados completamente novos sobre a luta, e provou a fragilidade das imensas conquistas obtidas, postas em causa unicamente por falta de informações precisas e controladas sobre a situação real nas diferentes zonas do país. A experiência acabava de mostrar que os jovens responsáveis da guerrilha eram capazes de esconder ao Secretário-Geral informações de importância capital, quando elas pudessem pôr em causa outros responsáveis”. 

O que se estava a passar era que um conjunto de chefes de guerrilha exercia um poder despótico sobre as populações, chegando a cometer crimes inenarráveis. Independentemente de serem jovens, é incompreensível como tais crimes sistemáticos eram escondidos dos quadros políticos. Como se verá adiante, no Congresso de Cassacá, em 1964, estes criminosos (cuja relação nunca vai aparecer talhada em qualquer documento) serão sumariamente executados, no termo desta reunião.

A segunda leva de quadros formados em Pequim chegou entretanto. Cabral e a direcção do PAIGC convocam uma reunião de quadros para uma área libertada. Luís Cabral fala desta reunião e do congresso subsequente como o renascimento do PAIGC. Estavam presentes quadros políticos e guerrilheiros: Domingos Ramos, Osvaldo Vieira, Chico Mendes, Rui Djassi, Nino Vieira, Constantino Teixeira, entre outros. 

Tudo começou com a distribuição de fardas, isto enquanto, ali perto, na Ilha do Como, se travava um intenso combate. Amílcar começou por fazer uma longa exposição sobre a luta e a situação das tropas portuguesas. A seguir os principais dirigentes no terreno deram informações. Os pedidos avolumavam-se: faltava comida, roupas, munições, escolas e enfermeiros. Para Luís Cabral, a luta armada precisava de um novo impulso. Cabral respondeu que a luta teria que se intensificar e que para tal iam ser criadas as Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) constituídas por Exército Popular, Guerrilha e Milícia. 

A ajuda militar iria aumentar, em breve os guerrilheiros veriam chegar novas armas, algumas delas muito superiores às usadas pelos portugueses. Rafael Barbosa foi eleito para as funções de Presidente do Comité Central do PAIGC e Amílcar Cabral reconduzido como Secretário-Geral. Nesta fase dos trabalhos a conferência de dirigentes e quadros tinha-se transformado no I Congresso do PAIGC. Habilidosamente, numa altura em que tudo parecia encaminhar-se para o termo dos trabalhos, Amílcar propôs uma retrospectiva para analisar o comportamento de responsáveis e dirigentes. Tinha chegado o momento culminante das acusações: dirigentes bêbedos e que praticavam os castigos arbitrários, as acusações seguiam-se umas às outras, gente seviciada, aterrorizada, inocentes assassinados, até os feiticeiros não escaparam. Luís Cabral observa: 

“Todos esses crimes foram cometidos impunemente durante meses, com o conhecimento de dirigentes e responsáveis do partido que nem ao menos foram capazes de comunicar esses factos ao Secretário-Geral. Os criminosos eram chefes das bases de guerrilha”. 

De acordo com as descrições de Luís Cabral, Watna, chefe da base de Nhai, em Cubisseco, deve ter sido o mais terrível criminoso entre todos. Cabral ia procedendo a interrogatórios, a reunião durava há trinta horas, sem pausa. No final de todos estes interrogatórios, Amílcar denunciou os acusados e pediu a sua prisão. Sabe-se que houve execuções sumárias, Luís Cabral é parcimonioso na descrição destes factos.

Amílcar Cabral de imediato dedicou-se à formação das primeiras unidades do Exército Popular. Nino Vieira comunicara que as tropas portuguesas tinham abandonado a ilha do Como. A descrição de Cabral aparece com transes de glória e bastante falsificada, hoje há inúmera documentação sobre tudo o que ali se passou. Cabral apresenta o Como como uma luta entre David e Golias, guerrilheiros indómitos a travar tropas altamente preparadas, numa atmosfera apocalíptica. Escrever um relato destes em 1982, sabendo que há o contraditório, é uma quase aberração. Paciência, está escrito.

As FARP começam a ser enquadradas, chegaram novos equipamentos, surge o hino do PAIGC, com música de um compositor chinês. Ficamos depois a saber que o casamento de Cabral com Maria Helena chegara ao fim, Maria Helena vivia em Rabat e aderiu à Frente Portuguesa de Libertação Nacional, com Humberto Delgado à frente. 

Na região do Boé ia intensificar-se a luta armada. Na fronteira Norte, em Sambuiá, o PAIGC implantou um santuário. No Senegal as hostilidades do Movimento de Libertação da Guiné ainda eram notórias. No relato de Cabral, o encontro de Amílcar com Senghor abriu as portas do Senegal. A guerra alastrou: em Quínara, no Corubal, em Porto Gole. Foram criados os armazéns do povo. As escolas no mato tornaram-se numa realidade.

(Continua)
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7228: Operação Saudade 2010 (Mário Beja Santos) (3): Páginas de um diário quase improvável, antes de viajar para a Guiné (1)

Vd. último poste da série de 4 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7223: Notas de leitura (165): Crónica da Libertação, de Luís Cabral (2) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Unknown disse...

Amigo Beja Santos.
Permita-me um interrogação.
Será uma questão de critério quanto ao 'espaço' a conceder, ou a necessidade que sentimos de dar a conhecêr as outras facetas, caminhos, protagonismos, sistemáticamente ocultados ou sub-avaliados, pelos escrevinhadores (alguns) da história, sabendo-se que contudo esta nunca é perfeitamente exacta?.
Eu pessoalmente, procuro fugir um pouco do primeiro aspecto, procurando contribuir para que outros construam a sua própria visão da história.

Nao podemos comprender factos, sem documentarmo-nos sobre o que rodearam os mesmos. Não sera assim?

Não deixe essa vontade de encontrar informação de e sobre a Guiné Bissau. É útil a muitos.

O problema está na caristia da vida e na raridade das obras. Uma forma cientifica de obstar o conhecimento e a cultura ao comum dos homens.

Com um abraço
Carlos Filipe
ex CCS BCAÇ3872 Galomaro