segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5194: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (2): Mofunado ou não na Guiné de 68

1. Segunda parte das Divagações de Reformado de autoria de Pacífico dos Reis, Coronel de Cavalaria Reformado que comandou a CCAÇ 5, Gatos Pretos, Unidade a que pertenceu o nosso camarada José Martins, ex-Fur Mil, que nos enviou estes textos em 23 de Outubro de 2009.


2 - DIVAGAÇÕES DE REFORMADO

Mofunado ou não na Guiné de 68
Por Pacífico dos Reis
Coronel de Cavalaria Reformado

Andando a navegar na televisão encontrei, num dos canais a que temos direito, umas entrevistas nas quais era perguntado qual o maior desejo que as pessoas tinham. No meio das respostas, apareceu um menino borbulhento que declarou, em tom enfático era que a Espanha tomasse conta de Portugal.
Nessa altura, D. Afonso Henriques ter-se-á revolvido no túmulo e os conjurados de 1640 terão tido uma apoplexia ectoplasmática. No entanto, tal desejo, terá feito a felicidade de alguns políticos que ainda se lembram da União Ibérica programática, conjuntamente com a extinção do Colégio Militar, Pupilos do Exército e Instituto de Odivelas. Vinha tudo no mesmo programa político, foi para dentro da gaveta, sempre pronto a sair e ser utilizado.

Na continuidade do divertimento de reformado, a TV brindou-nos com a actuação da equipa de todos nós. O resultado fez-me pensar na minha passagem pela Guiné em 68. Quando um Capitão chegava a uma Companhia de Naturais, como foi o meu caso, começava a ser escrutinado pelos militares. Estes desejavam saber se o capitão era mofunado (azarado) ou não. Se não fosse seguiam-no para todo o lado e tinham o dobro da vontade de vencer. Se fosse mofunado na primeira ocasião viravam-lhe as costas. Assim me parece ser o seleccionador nacional. O rapaz tem mesmo azar. Esperemos que arranjem alguém menos competente, mas com mais sorte.

Quando cheguei à minha Companhia, a CCaç 5 os “Gatos Pretos”, fui recebido por um Capitão que, posteriormente vim a saber, era considerado mofunado. Ele não tinha culpa pois tinha a Companhia toda desmembrada. Um Pelotão em Cabuca, outro no Cheche, outro em Canjadude e o Comando em Nova Lamego (Gabu). O Comandante somente geria a crise e via passar os dias. As ordens que levava era concentrar a Companhia em Canjadude. Assim se fez, tendo no início o apoio da CArt 2338, uma vez que se mantinham na mesma posição os Pelotões de Cabuca e do Cheche, até se fazer a evacuação de Madina.

As palavras e as recordações são como as cerejas. Saltam todas ligadas umas às outras.
Os dias passavam-se em Operações contínuas para preparação da Companhia para ficar a responder sozinha pela defesa do Corubal. Já se sentiam os fumos da evacuação de Madina do Boé.
Logo que tal se passasse, Canjadude ficaria na linha da frente dos ataques terroristas. Assim estavam sempre dois Pelotões fora do aquartelamento em Operações, a cobrir a área que tínhamos de controlar. No quartel fazíamos prelecções como forma de levantar o moral. No meio delas recordo-me de lhes frisar que nem G3 precisavam, “Nós agarramos os turras à mão”. Bravata pura, mas que iria resultar futuramente.

A primeira vez que recebi o rótulo de não mofunado está ligado directamente com a evacuação de Madina, que recentemente apareceu descrita na RTP. Tornava-se necessário levar para o Cheche, todos os anos, duas pirogas enormes, para fazer a cambança do Corubal e assim reabastecer Madina. Este ano, no entanto, as pirogas iriam servir para a evacuação e não para o reabastecimento. A nossa missão, da CCaç 5 com o apoio da CArt 2338, seria realizar a coluna para transportar as pirogas e reabastecimentos para o Cheche.

Na noite anterior informei o meu pessoal daquilo que se pretendia executar e qual o desenrolar da acção. Era minha intenção montar emboscadas, durante o deslocamento, na zona chamada de Minas Gerais onde geralmente os turras montavam minas e emboscadas para, no regresso do Cheche, flagelarem a coluna. Em boa hora se fez a tal acção, pois um bigrupo inimigo começou a plantar minas mesmo em frente de um dos nossos Pelotões emboscados e foi completamente varrido pelo fogo.

No regresso, mais descansados, ainda tivemos tempo de, utilizando os meios ao nosso alcance, salvar uma auto-metralhadora Fox do Esquadrão de Bafatá que estava abandonada inoperacional devido a rebentamento de uma mina. Foi muito gratificante para os “Gatos Pretos” saberem que, dois meses depois, a montada estava de novo a circular nas estradas da Guiné.
Claro que este ronco fez-me entrar no estatuto de não mafunado e a partir daí foi ouro sobre azul.

Já muito depois da evacuação da Madina, na qual os “Gatos Pretos” também foram parte integrante, recebemos a missão de patrulhar a margem direita do rio Corubal, pois havia uma noticia, pseudamente A-1 que referia a existência de grutas onde se escondiam os turras. Comecei a indagar, cautelosamente, junto da milícia e população onde estariam essas grutas tendo sempre como resposta que não havia grutas na nossa zona de acção. Bem, assim seria, mas noblesse oblige e lá fomos patrulhar a zona. Estávamos nós quase a chegar ao local onde supostamente estavam referenciadas as grutas. Quando se ouviu o barulho inconfundível dum heli.

Rapidamente montamos segurança e segundos depois aterrou o aparelho. Dele saíram o Comandante-chefe General Spínola e o seu Ajudante de Campo Capitão Bruno. Claro que, para o pessoal da Companhia, foi um revigorar anímico receber o Homem Grande no meio do mato. O pior veio a seguir quando o heli regressou a Bissau. Continuamos a Operação e, cerca de meia hora depois, demos de caras com uma força inimiga que, julgámos nós, vinha ver o que se passava alertada pelo barulho do helicóptero. Não sei como foi, mas subitamente só se ouviu um berro uníssono “Gato Preto agarra à mão!” e toda a Companhia galopou em direcção ao turras. Claro que estes só pararam quando se sentiram em segurança, tendo até largado armas e material na fuga talvez para irem mais leves. Foi neste momento que interiorizei que as palestras e instrução ministradas tinham resultado, como também era a afirmação definitiva que o comandante não era mofunado.

Para finalizar, e para apoiar o que antes está referido, não resisto a contar que num patrulhamento, ao deslocarmo-nos num trilho impossível de rodear, indo logo a seguir ao homem da frente, reparei que no chão estavam umas caixas de madeira abertas. Concentrando melhor a vista reparei que eram minas anti pessoal russas. Tinham sido retiradas do terreno por um bando de macacos cão. Ainda hoje agradeço aos benditos macacos o serviço de desminagem.
Nós, os Africanos, parafraseando um dito em voga em alguns painéis propagandísticos actuais, sofremos bastante, mas deixamos o coração e todos os nossos sentidos inseridos nas extensas plagas da Mãe Africa, naquelas terras imensas que nos dão tanta saudade e relembramos com amor.

(O texto também foi publicado na revista ASMIR de Mai/Jun 09)

Algures na Zona do Burmeleu (Sul de Canjadude)
General Spínola ser cumprimentado pelo Capitão Pacífico dos Reis
Foto José Martins


Cap Pacífico dos Reis, Fur Mil José Martins e Fur Mil Martins (CART 2338)

Canjadude – Material capturado ao IN
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Nota de CV:

Vd. o primeiro poste da série de 1 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5189: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis)(1): Ida para a Guiné (José Martins)

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