terça-feira, 3 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5202: História da CCAÇ 2679 (29): Um dia no calendário da Guiné (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel M. Dinis*, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 2 de Novembro de 2009, trazendo até nós mais um pouco da História da sua Unidade:

Carlos, bom amigo,
Faz o favor de publicar mais esta estórinha, só para entreter. Dela se extrai o elevado grau de camaradagem reinante no Foxtrot, e isso é que releva.
Um abraço para ti e para a Tabanca.
JD


Um dia no calendário da Guiné
Por JMMD

Acordei com a ruideira das actividades do princípio do dia. Competia-me ir a Copá, em coluna de duas viaturas, onde para além do Pelotão, também se transportavam munições, correio e uma dúzia de caixas de cervejas. Tratava-se de um pequeno reabastecimento, enquanto não se fazia uma transferência mais significativa. O Pelotão andaria por uma vintena de homens operacionais, e o trajecto não nos criava preocupações especiais. Sem irmos à vontade, cabíamos todos.

Levantei-me. Fui lavar-me antes do pequeno-almoço. Leite e pão com manteiga. Manteiga da Madeira, muito gulosa pela boa qualidade, um privilégio que o Santos me concedia, e tornava-se extensivo à furrielada. Um bocado de conversa, um bocado de reinação, e dava para constatar que a juventude apresentava-se bem disposta. Começavam a chegar os Foxtrot que me surpreenderam em chinelos e calções, de tronco nú, sentado à mesa da messe, anexa aos quartos, e atiraram-me umas graçolas, como se eu estivesse atrasado e eles à minha espera. A boa disposição era evidente, e juntava-se aos primeiros raios solares que me aqueciam.

Tinha tempo e, por essa altura, já sabia que as viaturas estavam prontas e alinhadas junto à enfermaria, na outra extremidade do edíficio. O dia claro, o céu azul e o calor crescente, dir-se-ia, convidavam à molenguisse, mais do que meter-me à picada, vestido de camuflado e de botas calçadas. Mas a tarefa não era exigente, e eu gostava de sair. Até que decidi aprontar-me. Fui ao frigorífico encher o cantil de água, que por algum bocado manter-se-ia fresca. Voltei ao quarto para me vestir mais apropriadamente. Que gaita, onde estaria o meu camuflado? Costumava deixá-lo sobre o armário, aproveitado de um caixote de bacalhau, género que fazia estilo na nossa tropa (1) , mas ali não estava. Porra! O que teria acontecido? Não me embebedara na véspera, não fizera disparates, e o camuflado, ainda que se aguentasse em pé por força da poeira cimentada pela transpiração dos últimos dias, só por si não deveria pôr-se a andar. Que merda é esta? Façam o favor de pôr aqui o camuflado, imprequei contra os presentes que me olhavam surpreendidos e recriminatoriamente. Com as minhas buscas e frustrações, gerou-se em mim a ansiedade por causa de cinco ou dez minutos entretanto perdidos. Tive sempre a preocupação com o cumprimento dos horários, no caso a hora que eu estabelecera, coisa inexplicável, pois não tenho ascendência inglesa e estarei mais próximo dos mouros madraços.

Vesti outras calças, outra camisa, material que tinha dobrado no armário, junto com livros, outras peças de vestuário, sapatos, alguma água de colónia Old Spice, material para a barba, cassetes com música gravada, pilhas para prover energia, toalhas, tudo misturado numa arrumação sem método.

Agastado com a situação descrita, peguei na arma e cartucheiras, e aproximei-me do pessoal. Estava tudo pronto para arrancar. A mercadoria carregada num unimog de taipais que, afinal, juntava-se aos outros dois de bancos corridos, onde o pessoal se dispunha para defender o coiro. Estavam todos, incluindo o Enfermeiro e o Transmissões. À pergunta se faltava alguma coisa, logo me responderam que não, podíamos sair. À falta de recado do Capitão ou da Secretaria, deduzi que não tinham mensagens para o destacamento. Subi para a primeira viatura, lancei um último olhar em redor, e iniciámos a marcha.

Atravessámos a pista na direcção da picada, para leste, que percorremos durante um bocado. Pouco depois mandei parar. Iniciámos a picagem, que deveria durar duas horas e meia, na extensão de cerca de doze ou treze quilómetros, já que o restante percurso era da responsabilidade de Copá.
Quatro picadores precediam-me. Depois as viaturas e o pessoal apeado. Na soalheira inclemente a que nos tínhamos habituado, progredíamos descontraídos, mas com as cautelas que a prudência exigia. No geral, quem iniciava a picagem, cumpria a tarefa até ao fim. O ritmo era bom, apesar do ronronar das viaturas que sugeriam um avanço preguiçoso.

Cruzámo-nos com o pessoal da picagem proveniente de Copá, que saudámos. Uma viatura, fora da picada, à sombra de uma árvore, garantia-lhes o regresso rápido à base. Entretanto eram eles que ficavam a esperar-nos no regresso, providenciando alguma segurança na picada para um resto de viagem mais acelerado.

Em Copá mantivémos uma breve confraternização com o Pelotão que guarnecia o Destacamento e regozijava com aquela carga que incluía umas cervejinhas, após o que iniciámos o regresso a Bajocunda para chegarmos a tempo do almoço.
Essa viagem decorreu sem problemas.

Durante a tarde, estava eu deitado sobre a cama, dedicando-me a congeminações de saudade da metrópole, num dolce fare nhienta, quando o Rodrigues assomou à porta, mesmo à minha frente. Trazia nas mãos alguma coisa que não identifiquei à primeira vista. Com um sorriso amistoso cumprimentou-me, e eu retribuí. Perguntei-lhe se precisava de alguma coisa. Que não, estava ali para me entregar o camuflado lavado, remendado, e com botões nos lugares onde faltavam. Foda-se, quase gritei, nunca mais faças isso, não és criado de ninguém, adverti-o.

Calmo, e mantendo o sorriso, respondeu-me que se sentia envergonhado por eu andar tão mal apresentado, e que todos me criticavam por isso, por dar mau exemplo, e todos os dias ser exigente.
A custo aceitou uma cerveja na cantina. Foi mais um gesto de um Foxtrot que me calou fundo.

(1) - Para ilustrar as palavras do camarada José Manuel, aqui está um belo exemplar de secretária e banco a condizer, estilo tábua e prego, variante da versão metálica chapa e prego, ambas muito em voga na época, nos buracos já mais evoluídos. Note-se a ausência do split do Ar Condicionado.

Foto de CV

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 19 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5133: Direito à indignação (7): Esmiuçando o Complemento Especial de Pensão e o Acréscimo Vitalício de Pensão (José Manuel M. Dinis)

Vd. último poste da série de 14 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5106: História da CCAÇ 2679 (28): Mais visões quotidianas (José Manuel M. Dinis)

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