sábado, 7 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5230: Guidaje, Maio de 1973 (2): O fim do pesadelo (Manuel Marinho)

1. Mensagem de Manuel Marinho*, ex-1.º Cabo da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Nema/Farim e Binta, 1972/74, com data de 19 de Outubro de 2009:

Caro camarada Carlos Vinhal:
Envio-te mais este texto sobre Guidaje.


O FIM DO PESADELO

No dia 29 de Maio chegámos a Guidaje ao anoitecer. Fomos de imediato para as valas, arranjando-nos o melhor possível para passarmos a noite, porque a aglomeração de tropa era muita, pois a juntar às unidades que esperavam o regresso, chegou a nossa coluna. Pouco tempo depois fomos brindados com umas morteiradas.

Dia 30 ao amanhecer, Páras e Fuzos enquadram as unidades da coluna do dia 15, retida ainda em Guidaje e juntos fazem o regresso a Binta, utilizando a picada aberta.

Depois com alguns camaradas procurei acomodar-me melhor, fomos parar a um pequeno edifício, com poucas camas, com colchões com grandes manchas de sangue, já muito seco e cheiro nauseabundo, (seria a enfermaria?), mas foi aí que fiquei no chão, porque me parecia que estava mais resguardado.
Depois voltei para as valas, porque noutro ataque caíram morteiradas perto do local. Sei que estava do lado contrário ao refeitório, porque nos dias seguintes para tentar comer qualquer coisa tinha de atravessar a parada, o que noutras situações seria normal, ali era demasiado perigoso, pensava duas vezes antes de ir, mas era a situação real do quartel que nos ditava essas regras, porque não havia local seguro em Guidaje, embora já se tivesse atenuado a pressão devido à operação “Ametista Real” levada a cabo pelo Batalhão de Comandos Africanos.

Perdi a noção do tempo, vivemos esse dias como ratos, a alimentação era escassa e a verdade é que o apetite era proporcional. Também não havia horas para comer e para não irmos todos, um camarada trazia comida para dividirmos, e no dia seguinte era outro, e assim evitávamos muito a circulação pelo aquartelamento. De forma alguma podia haver ajuntamento por isso esperávamos a vez para ir buscar um bocado de arroz.

Uma das vezes ia eu a meio da parada, ouvi a saída dum morteiro, corri e atirei-me pelos pequenos degraus dum abrigo que ficava já perto do refeitório, onde me resguardei de mais um ataque. Confesso que me é difícil localizar com alguma precisão, os edifícios do quartel, porque os dias que lá passei foram de loucos, se por alguma razão se fazia algum ruído por mais leve que fosse, sobressaltava-nos de imediato, e a tensão aumentava e o sistema nervoso abalava. No quartel, o forçado silêncio só era interrompido pelas morteiradas enviadas pelo IN.

Quando houve ordem de partida, dia 11 logo ao alvorecer, foi aberta nova picada com a máquina D-6 que tinha feito a abertura a 29 na ida da coluna para Guidaje, esta nova picada era de todo necessária, pois suspeitava-se que os caminhos existentes estariam de novo minados.

Enquadrados pelos Comandos, lá viemos a corta-mato em marcha lenta por causa do trabalho de derrube de árvores feita pela máquina, e a meio da tarde já ao chegarmos a Binta, cruzámo-nos com a coluna que seguia para Guidaje.
O nosso aspecto devia parecer o de autenticos bandoleiros, pois o olhar que nos lançavam era de espanto, lá os encorajámos dizendo-lhes que o pior já passara, e felizmente era verdade.

Deixámos Nema em 10 de Junho, juntando-nos ao resto da Companhia em Binta, onde permanecemos até Agosto de 1974, sempre a calcorrear aquela picada, (e trilhos que iamos fazendo), fomos o começo, o meio e o fim.

Durante a estação das chuvas (Junho-Outubro), fizemos a actividade operacional de forma mais intensa do que era habitual, com mais patrulhamentos e segurança a colunas, e acções de reconhecimento que iam até Guidaje, mesmo com as condições adversas do terreno.
Por essa altura havia problemas com a alimentação, que não chegava de Bissau, creio que por problemas logistícos, pois fomos abastecidos por barcaças pelo rio Cacheu, depois de arroz com atum, arroz com salsichas, e finalmente arroz com marmelada. O que nos valia era termos um camarada especialista na subtração de cabritos à população que nos permitia resistir e não ficarmos enjoados com tanto arroz.


2.ª fase- construção da estrada Binta-Guidaje:

Em princípios de Janeiro de 1974 com a chegada da Engenharia, iniciam-se os trabalhos de alargamento da picada a partir de Binta, e começámos nós na protecção e segurança à mesma, com o reforço da 1.ª CCAÇ/BCAÇ 4516.
Era um trabalho desgastante, a começar logo de manhã bem cedo com a respectiva picagem e o reconhecimento da zona, sempre mais à frente, onde as obras recomeçam. Depois era a paragem forçada nos lados da picada para a protecção aos trabalhos, numa imobilidade forçada durante as horas de trabalho da Engenharia, com o especial cuidado onde se ficava por causa de minas.

A estrada nova foi o mais possível em linha recta até Guidaje, e ficou feita até perto da bolanha do Cufeu, quando cessaram os trabalhos, já depois do 25 de Abril.

Todos os dias ficava um Grupo de noite no mato a guardar as máquinas, de modo que praticamente uma vez por semana tocava-nos a nós. Fazíamos 24 horas seguidas no mato, regressando ao quartel quando recomeçavam as obras no dia seguinte, sendo rendidos pelos que chegavam para esse dia. Nos primeiros quilómetros foi assim, mas quando a distância já era longa, tornava-se perigoso ficar apenas com um Grupo no mato. Assim ao entardecer, quando findavam os trabalhos, as máquinas retrocediam o mais possível para evitar riscos desnecessários, no dia seguinte voltava-se a fazer as picagens e o reconhecimento mais à frente.

Em meados de Março, já com a estrada em adiantado estado, sofremos a emboscada esperada há algum tempo. As condições eram outras, porque até a largura da estrada não permitia grande proximidade pelo IN que montou a emboscada do lado esquerdo. Precisamente do lado direito da picada seguiam os Grupos da CCAÇ 4516 à frente, e mais atrás o meu Grupo entrou a corta- mato pelo lado esquerdo, quando rebenta o tiroteio. De imediato avançámos com o objectivo de envolvermos o IN, pois estavam à nossa frente. Pedimos o cessar fogo à 4516 para intervirmos nós, senão corríamos o risco de sermos atingidos pelos nossos, assim foi feito fogo de morteiro e dilagramas, e em progressão rápida depressa atingimos o local onde o IN se emboscara, e donde retirara deixando no local um ferido.

No local procedemos ao reconhecimento e a indícios que o IN deixara e qual não é o meu espanto, atrás de mim um camarada aponta a G3 para uma cova camuflada por folhas de árvores e dispara um tiro ao mesmo tempo que exclama:

- Está aqui um!!

O ferido passou a morto. Era o comandante daquele Grupo IN, talvez o equivalente aos nossos Alferes, pois a divisa que ostentava era idêntica.
Um dos africanos que nos acompanhava, preparou-se para lhe cortar uma orelha, no que foi de imediato travado pelo nosso Alferes e pelos que estavam perto.
O meu camarada explicou-me depois que num último esforço o guerrilheiro, embora bastante ferido, tentou alvejar um de nós, pois estava já com a arma levantada nas nossas costas, porque tínhamos passado por ele sem o vermos.
Eu fui um deles. Como ele estava bem camuflado pelo seu esconderijo, um de nós teve sorte, pois houve alguém do meu Grupo que foi mais cuidadoso.


Binta > Alguns elementos do 2.º GCOMB/1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512/72

Elementos do 1.º GCOMB/1.ª CCAÇ/BCAÇ 4512/72 na estrada Binta/Guidage, arranjada depois do 25 de Abril

Picada Bigene/Binta - Novembro de 1973 > Manuel Marinho ao lado do condutor

Um grande abraço
Porto-19 de outubro de 2009
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Nota de CV:

(*) Vd. poste com data de 7 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5067: Guidaje, Maio de 1973 (1): Momentos difíceis para as NT (Manuel Marinho)

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