sábado, 15 de maio de 2010

Guiné 63/74 – P6395: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (4): Politicamente incorrecto…

1. Mensagem de José Marcelino Martins (ex-Fur Mil, Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 14 de Maio de 2010:

Camaradas,

Remeto mais um trabalho do nosso amigo e camarada de armas Pacífico dos Reis, hoje Coronel na reforma, com mais uma das suas divagações.

Anexo segue o relatório da operação referida no texto.

Com um abraço de bom fim de semana,
José Martins
Fur Mil, Trms da CCAÇ 5

DIVAGAÇÕES DE REFORMADO

4 - Politicamente incorrecto…

Realmente a televisão é um veículo de transporte e incentivador das divagações de um reformado. Ultimamente, veio à luz do dia, nos telejornais, a notícia que um conhecido treinador de futebol teria sido hospitalizado por efectuado uma lipoaspiração. Este facto veio recordar-me os bons tempos em que nós fazíamos na Guiné 20 a 30 Km diários em nomadização. Era a nossa lipoaspiração.
Realmente o nosso país está um espanto e perdeu-se a noção da realidade. É a lei do facilitismo. Um indivíduo que devia pugnar pela saúde através do desporto cai na via mais fácil para a perda de alguns “quilitos”.
Durante a minha permanência no T.O. da Guiné, a nossa Companhia tinha directivas do Batalhão para efectuar operações na área a seu cargo, geralmente três a cinco dias por semana. Essas operações eram frequentemente complementadas com outras inopinadas e mais prolongadas.
O nosso “conta-quilómetros” fazia muitas vezes mais de 200 Km por semana. Como atrás referi, era uma lipoaspiração sequencial.
Outra notícia da televisão a que temos direito, chegou através do futebol. Então o nosso país que já foi senhor de meio mundo, passou de seguida ao tamanho da Europa, regressou às fronteiras iniciais (menos Olivença, claro), é neste momento, na boca de um Dunga (nome de anão), como Brasil B.
Interessante para quem se presume de descendência lusa. É uma inversão completa, mas já esperada, depois destes últimos anos de desregramento e corrupção.
Outro assunto que me fez “divagar em velocidade de cruzeiro” foi o casamento entre homossexuais. Tal facto fez-me vir à lembrança a estória que se contava sobre o general inglês que iria abandonar definitivamente a sua pátria natal e explicava: “Dantes era crime contra-natura.
Passou a ser tolerado. Agora casam. Vou-me embora antes que seja obrigatório”. Claro que esta anedota é agora politicamente incorrecta.
Aprendi na Guiné, ao comandar uma Companhia de Africanos, que existem algumas expressões, utilizadas frequentemente durante a instrução de tropas metropolitanas, que são “politicamente incorrectas” junto do pessoal africano.
É a “ovelha negra”, “o caso está preto”, etc. Durante uma prelecção que fazia à Companhia, para realçar o discurso, comecei aquela frase que muitas vezes usava para as tropas metropolitanas: “Eu até pintava a minha cara de preto se…”
Quando comecei a proferi-la – “Eu até pintava… – olhei para as dezenas de faces à minha frente que variavam entre o castanho e o negro retinto e tive um sobressalto.
Fiz uma pausa e continuei:… os meus testículos (em vernáculo, claro) de BRANCO se…”. E respirei fundo.
Uma das imagens de marca da Guiné, são “os gilas”.
Espécie de contrabandistas, vendiam tudo, desde peles de crocodilos e cobra a tecidos e, fundamentalmente, deambulavam por todo o território o território, sendo utilizados pelos dois lados em confronto para recolha de notícias.
Uma manhã entra na tabanca (ficava ligada ao quartel) um grupo de “gilas” proveniente do Senegal, diziam eles.
Após uma breve triagem, detectamos que um dos “gilas”, “homem grande”, tinha uma cicatriz na mão esquerda, definitivamente resultado da passagem de uma bala.
Após prolongados interrogatórios, um dos elementos mais novos informou-nos que a cerca de 15 a 20 km, para leste, os “turras” tinham um acampamento temporário e eles seriam a guarda avançada para colher informações.
Enviamos informação para o COP 5 e pedimos autorização para fazer uma operação inopinada, de imediato. Antes de vir a autorização já a Companhia estava no terreno em direcção ao local.
Quando nos estávamos a aproximar do acampamento começamos a ouvir o ruído característico dum DO e pouco depois a voz do Comandaste do COP 5, no rádio, a solicitar a nossa posição.
Mandei dois berros ao microfone a dizer para sair de cima da posição, mas já era tarde. Quando entramos no acampamento só encontramos material de limpeza do armamento e algumas peças soltas de AK47 numa bancada improvisada junto às cubatas.
Os turras que, não eram deficientes auditivos, puseram-se em fuga, mal ouviram o avião. Só interrompemos a hora de limpeza do armamento e obrigamos a ir dormir para outro sítio por lhes termos queimado as cubatas.
A nossa vida na Guiné não era só operações. Também tínhamos as nossas horas culturais. Nesses curtos interregnos foi composto o Hino da C.Caç 5, que não resisto a deixar para a posteridade:

HINO DOS GATOS PRETOS [a]
I
Nós somos os GATO PRETOS
Somos JUSTOS E VALOROSOS,
No combate contra os turras
Somos os vitoriosos.
Patrulhamentos, colunas
Pelas matas da Guiné,
Somos únicos Senhores,
Desde o GABÚ ao BOÉ!


  • Refrão
    Desde que estamos todos juntos
    Todos nos dão a razão:
    Que para a guerra vencer
    É preciso união.
    E de hoje em diante
    Todos iremos lutar,
    Que é para esta terra,
    Dos turras libertar.
II
Nós somos os GATOS PRETOS
Pela justiça lutamos,
P’ra desta terra expulsar
Os turras e os cubanos
Europeus e Africanos
Temos o mesmo ideal:
Nós somos a C. Caç 5
Militares de Portugal
  • Refrão
    Desde que estamos todos juntos
    Todos nos dão a razão:
    Que para a guerra vencer
    É preciso união.
    E de hoje em diante
    Todos iremos lutar,
    Que é para esta terra,
    Dos turras libertar.
Claro que hoje, talvez, nada disto seja “politicamente correcto”, mas era vivido intensamente por todos nós. O isolamento, o perigo, o esforço diário em conjunto, o ideal comum foram a massa que cimentou a camaradagem unindo as diferenças étnicas, rácicas e sociais da nossa Companhia.
E sempre que seja necessário e possível, haverá um GATO PRETO para apoiar outro GATO PRETO.

[a] – Nota inserta no Cancioneiro de Canjadude:
Depois de ter os seus grupos de combate dispersos por Nova Lamego, Canjadude, Cabuca e Che-Che, a Companhia de Caçadores nº 5 reúne-se, em Abril de 1969, no subsector de Canjadude. É a primeira vez, desde a sua criação, que a Companhia de encontra toda reunida.
“Desde que estamos todos juntos” foi o mote para a criação deste Hino, cuja letra, ainda que em voga na época, e de um ritmo de certa forma marcial, desconhecemos o autor,

(o texto também foi publicado na revista ASMIR de Jan/Fev 10)

RELATÓRIO DA OPERAÇÃO “LUTA” em 14 e 15MAR69

01. Situação Particular
A Unidade encontra-se a guarnecer o Aquartelamento de Canjadude, sendo responsável pelo mesmo sector.
Acções feitas ao aquartelamento de Cabuca e tabanca de Cambajá Bentem. Em 13MAI69 02 gilas detidas em Canjadude referem a existência de um aquartelamento IN com cerca de 150 elementos localizada no Rio Buoro, a leste de Ganguiró.
02. Missão da Unidade
Aniquilar ou capturar o IN que se vem revelando na estrada Nova Lamego – Piche, apreendendo os materiais que se encontram no presumível acampamento e destruindo as suas instalações.
03. Força Executante
  • a) Capitão de Cavalaria Pacífico dos Reis
  • b) 1º Grupo de Combate – Alferes Gago
    2º Grupo de Combate – Alferes Gomes
    3º Grupo de Combate – Alferes Sousa
    4º Grupo de Combate – Furriel V. Silva
    Secção Comando Dragão
  • c) 4 Grupos de Combate
    d) Secção de Comando Dragão, Comandante, 1º Grupo de Combate, 2º Grupo de Combate, 3º Grupo de Combate e 4º Grupo de Combate.


  • e) 1) 40 Carregadores.
    2) 2 Granadas de mão defensivas e 1 granada de mão ofensiva por homem; 3 elementos com dilagrama por grupo de combate.
    3) -----------------
    4) Dotação suplementar, por homem, de 40 munições 7,62 mm. Reforço de 400 munições 7,62 mm por grupo de combate.
    5) -------------------
    6) Material de Transmissões:
    1 CVHP-1
    1 PRC-10
    3 AVP-1
    2 Sharp
    Telas
04. Planos Estabelecidos
  • 1º Fase – dia D – Patrulhamento Canjadude – Canducuré – Ganguiró, montando emboscada em Ganguiró:


  • 2ª Fase – Dia D+1 – Batida da zona que margina o Rio Buoro e Golpe de Mão sobre qualquer acampamento que seja referenciado.
05. Desenrolar da Acção
Partiu-se de Canjadude em 150600MAI69, tendo a força seguido em direcção a Cansamba, para despiste da possível direcção. Depois seguiu-se para Canducuré, tendo a força chegado cerca das 10H00 a Bante (A) onde foi feito um grande alto para almoço.
Pelas 16H00 seguiu a força para Ganguiró onde chegou em 151700MAI69 tendo montado emboscada à entrada de Gangiró na mata densa.
Em 160500MAI69 a força seguiu para a nascente do Rio Buoro (que se encontra seco) tendo seguido em fila indiana pelo Rio Buoro. Mandei pôr dois pelotões em linha de batida, ficando com um pelotão de reserva.
No entanto a marcha tornou-se muito lenta, devido à mata ser muitíssimo densa, tendo o pessoal de rastejar muitas das vezes, para manter a linha de batida.
Cerca das 06H45 foram encontrados paus cortados de fresco. O gila que servia de guia não queria dizer onde ficava o acampamento, mas, à vista dos paus cortados, disse que estávamos em cima dele.
O pessoal entrou no acampamento às 07H30 tendo sido vistas 12 tabancas com camas para cerca de 6 a 8 elementos IN.
Passada revista foram queimadas as tabancas. Foi visto, sobre o trilho em direcção ao Siai, sinais de fuga apressada e recente de três elementos IN.
A força seguiu em fila indiana pelo trilho de modo a tentar apanhar aqueles elementos. Apesar de serem perseguidos durante cerca de 2 a 3 Km não foram vistos.
Foi visto um trilho de gilas do Rio Cumbera para Ganguiró, com sinais de passagem de vacas, deduzindo-se que os gilas estão a fazer o caminho Rio Cumbera – Ganguiró – Nova Lamego, tendo o IN montado o acampamento em Ganguiró para reabastecimento de carne fresca.
Seguiu-se em direcção a Ganguiró onde foi feito reabastecimento de água por helicóptero, seguindo em seguida a força para Canjadude, e por ter cerca de 10 indivíduos desidratados e que já não podiam andar, foram pedidas viaturas ao quartel com água.
A força entrou em Canjadude em 161700MAI69.
06. Resultados Obtidos
  • c) Na revista ao acampamento, foram encontrados: 2 Cantis, 1 lata de óleo de lubrificação, 1 fervedor de seringas, 1 bolsa para pistola, 1 lata de água oxigenada e álcool, 5 marmitas, 2 cunhetes de munições vazios, além de pilhas diversas de origem russa e inglesa, cadernos diários, livros escolares, cartas e diversos papeis.

  • d) Por cansaço o soldado 82º13164 Dauda Mané foi evacuado.
  • e) Segue anexo.
07. Serviços
  • a) 2 Dias de ração de combate,
  • b) -------------------
  • c) 1 Sargento enfermeiro, 1 auxiliar e 1 maqueiro.
  • d) 1 Evacuado de Heli.
08. Apoio Aéreo
  • PVC em DO 27
    T6 em alerta no solo
    Heli em Nova Lamego
09. Ensinamentos Colhidos
  • O acampamento estava feito em mata densíssima que não permitia a batida e onde o pessoal para avançar tinha que rastejar. Acampamento muito bem camuflado, impossível de ser visto pela Força Aérea. Com saídas em direcção ao Siai e Rio Cumbera. Um posto de vigia elevado virado para a bolanha de Ganguiró.
10. Diversos
  • Nada
  • Documentos Anexos
  • 1 – Motivos que originaram o extravio
    Passagem por mata muito cerrada em que obrigava a rastejar muitas das vezes, mesmo à entrada do acampamento.
  • 2 – Relação do material extraviado
    2 Abafos de pescoço,
    1 Cantil m/964.
Um abraço,
Pacífico dos Reis
Coronel na reforma
___________

Nota de M.R.:

Vd. último poste da série de 13 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5987: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis)(3): “Divagações de reformado - 3” É a vida… (José Martins)

2 comentários:

Anónimo disse...

Estimado Coronel, Pacífico dos REIS

Meu Coronel, começo por saudá-lo. Agradeço o contributo do artigo, tão pormenorizado, que fica para a história da nossa CCAÇ. 5. Eu nesta época, ainda não fazia parte da Companhia, mas em 13 de Setembro de 1969, realizou-se uma operação comandada pelo meu Coronel, na qual eu também fui, à qual eu já fiz referência no Poste “P 6117”, cujos trilhos foram praticamente idênticos aos da operação “Luta”. Seria interessante uma descrição dessa operação, que penso ter sido a operação “Lírio”. Segue o relato que eu escrevi:
Dia 13 de Setembro, mais uma operação em que saíram para o mato os quatro grupos de combate da CCAÇ. 5, por três dias. Ficou o pelotão de outra companhia, que ontem nos acompanhou, a proteger o Aquartelamento. Logo às 6.00h, as viaturas foram-nos levar a cerca de 4km na direcção da picada do Cheche, apeamos e começamos a progredir para a esquerda obliquamente, orientação Siai, a caminhar como habitual em terreno pantanoso, algumas vezes com água até à cintura. Acampamos para comer a ração de combate e descansar cerca de duas horas. Na parte de tarde progredimos constantemente dentro de lodaçais e por duas ou três vezes tivemos que fazer paragens, para repor energias, pois há pessoal estoirado visto ser muito desgastante caminhar em zonas alagadas. Acampamos para passar a noite que felizmente pouco choveu. O pessoal de transmissões juntamente com enfermagem, ficámos próximo do Capitão, como é normal. O Capitão, provavelmente ainda resquícios dos ferimentos da mina de ontem, passou a noite com dores e lamentações, possivelmente mialgia muscular.
Ainda estava o alvorar envergonhado, já toda a companhia caminhava dentro de lamaçal, em direcção a Ganguiró, com os corpos amarfanhados e friorentos devido à noitada agreste. O pessoal chegou exausto a Ganguiró e tivemos que pedir meia dúzia de evacuações, entre as quais a do nosso Comandante Capitão Pacífico dos Reis. Depois das evacuações, progredimos durante 2.00h, sempre em terreno hostil e a circundar na zona, fomos acampar junto da margem do rio Bauro, (deve ser afluente do rio Corubal) onde passámos a noite, não muito longe de Ganguiró. A passagem da noite não foi muito agradável, pois ainda choveu. Ausente ainda, o alvorecer, pois vinha a aurora a subir a encosta de Madina de Boé, já nós estávamos todos a pé, um pouco encharcados, enlameados e conformados a palmilhar terrenos alagados em direcção ao objectivo, Siai. Chegámos a este sem nada digno de registo, nada de vestígios. A partir daqui tomámos o rumo de Canjadude, onde chegámos por volta das 16,30h, com todo o pessoal extenuado. Está-se a tornar impossível a mobilidade das viaturas para nos ir levar ou buscar ao mato, porque ficam atoladas nos trilhos e só o guincho, com corda amarrada ao tronco de árvores, as consegue libertar para avançar.

Um abraço

José Corceiro

Anónimo disse...

O Brasil B, do futebol é politicamente incorreto?

José Martins, depende dos pontos de vista.

Tambem podemos dizer que o Brasil poderá ser o Portugal A, o que para os brasileiros seria ridículo à primeira vista. E até os deixaria com um sorriso amarelo, se forem cultos.

Visto à distância a selecção dos Magriços, 1966, com os africanos, Eusébio, Coluna, Santana, Hilário, Vicente, como chamariamos a essa selecção?

Porque já eram africanos, Matateu, José Águas, Félix, Peyroteu, Jacinto João, etc.

Ou seja, sem colónias não temos futebol. Será?

José Martins, os suecos já teem um avançado que destôa na epiderme.

Ou Portugal, terá razão antes do tempo? por instinto, não por sabedoria.

Portugal já teve um clube africano, Desportivo de Lourenço Marques, em hoquei, campeão da EUROPA na Suiça. Um pouco antes de Amilcar Cabral e Marcelino dos Santos serem recebidos pelo Papa.

Pessoalmente não acho mau ter brasileiros na selecção, porque historicamente vivemos sempre com brasileiros ou descendentes deles, não só na bola, e está provado que não sobrevivemos sem brasileiros e sem os irmãos africanos.

Era São Tomense, o grande Almada Negreiros.

José Martins, um ponto de vista para desanuviar.

Um abraço

Antº Rosinha