domingo, 9 de maio de 2010

Guiné 63/74 - P6352: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (11): De Empada a Bissau no Batelão Corubal, acompanhando os restos mortais do camarada Mário Caixeiro

1. Mensagem de Arménio Estorninho* (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381, Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70), com data de 15 de Abril de 2010:

Caro camarada e amigo Luís Graça,
Envio renovadas saudações que são extensivas a todos os tertulianos da Tabanca Grande.

Como já nos habituamos, o prometido é devido, por isso cá estou escrevendo, e desta feita são “estórias mas com algumas peripécias,” sobre a viagem de Empada a Bissau com inicio a 15 de Janeiro de 1970, do tempo de espera para o regresso à Metrópole, contudo, são ilustradas com extractos do meu álbum fotográfico.


De Empada a Bissau -1

Acompanhando os restos mortais do camarada Mário Caixeiro


Estamos nos primeiros dias de Janeiro de 1970, está a aproximar-se o final da comissão e já vou fazendo alguns preparativos para ir de abalada, desta terra de gente amiga que é lembrada. Ocasionalmente “bruxo, máquegête moço” o responsável pela Secção Auto da CCaç 2381, Fur Mil Auto Rodas, Bertino Cardoso (Fotos 1 e 2), interpelara-me para saber se eu estava interessado em antecipadamente marchar para Bissau a concretizar-se nos próximos dias. A minha missão seria zelar pela urna com os restos mortais do Soldado Mário Caixeiro, que morrera em combate na noite de 14/Nov./69, e de diversos equipamentos que estavam adstritos à Companhia, que iriam fazer carga num Batelão a chegar brevemente. Seriam feitos os depósitos na Morgue do Hospital Militar e no Quartel dos Adidos, em Bissau.

Foto 1 > Guiné-Bissau > Região de Quinara > Empada > Oficina Auto > 1969 > Obtida do cimo do depósito de água, com imagem da Oficina da Secção Auto, em zona posterior situa-se a avenida e a seguir a casa do motor gerador, estando esta com o telhado danificado devido a um ataque IN.

Foto 2 > Guiné-Bissau > Região de Quinara > Empada > 1969 > O fotógrafo paparazzi estava lá. O ex-Fur Mil Auto Rodas, Bertino Cardoso, aquando do aproximar do final da comissão, também já estava apanhado pelo clima. Gamara um carneiro que tinha sido comprado pelo Vagomestre e este denunciara-o ao Oficial de Dia. Foi efectuada a apreensão do ónus da prova, a fim de ser organizada a participação para processo de infracção disciplinar por furto.

Tendo eu aceitado a proposta de seguir para Bissau, mas com a condição de não ficar aquartelado nos Adidos, em Brá, situação um pouco embaraçosa e que fora tratada a contento com o nosso 2.º Sargento, Fernando Monteirinho, (que posteriormente passara para a vida civil, tornando a vê-lo no Porto, em 1990). O combinado foi o de eu seguir com a guia de marcha e de forma a apresentá-la no Quartel dos Adidos, contudo eu seria o único responsável ao não apresentar-me. Mas caso não houvesse complicações, e logo que a Companhia chegasse a Bissau, ter-lhe-ia de devolver a dita.

Tratei imediatamente de aprontar a minha saída, emalando logo os objectos de recordação (que muitos ainda guardo), uma mala com garrafas de whisky e outros (que já se foram em eventos), o pagamento da mensalidade à lavadeira e a recolha final dos pesos pelos trabalhos das fotografias. Também não esquecendo cumprimentar e despedir-me da população amiga.

Na noite 14/15 Jan./70, o IN atacou o Quartel de Empada que para mim seria o último, ficando-me em lembrança e fazendo a despedida (Foto 3).

Dirigiu-me ao Cabo Quarteleiro efectuando a entrega do equipamento de roupa da cama, da arma e munições, que me estavam distribuídos.

Livrei-me, em 31/ Jan./70, de sofrer um grande ataque ao Quartel, o qual durou cerca de 45 minutos, não havendo qualquer baixa. A notícia chegara célere a Bissau, onde vim a saber, ficando surpreso pelo tempo que durara a acção.

Foto 3 > Guiné-Bissau > Região de Quinara > Empada > 1970 > Grupo de camaradas e amigos que ainda ficaram em Empada, a partor da esquerda: ex-1.º Cabo Mec Auto José Luís Moreira, de Marco de Canaveses, ex-1.º Cabo Enf. Jorge Catarino, de Vale Vacas - Cardigos, o Soldado Pintassilgo, do Cacém – Lisboa, o Soldado Mec. Auto José António Coelho, de Maiorca – Figueira da Foz e por último um camarada de que não recordo o nome.

Entretanto o Batelão “Corubal,” em serviço de cabotagem, atracara no cais de Empada, na manhã do dia 15/ Jan./70 (foto 4). Foram-me dadas instruções para preparar a saída de imediato, porque o batelão iria zarpar quando logo que a maré o permitisse.

Foto 4 > Guiné-Bissau > Região de Quinara > Empada > Cais de Empada > 1970 > O Batelão Corubal (dizia-se que era dos turras e não dava problemas), a aguardar a enchente da maré. Este barco demandava regularmente e fazia cabotagem no Rio Grande de Buba.

Dando-se o embarque de passageiros, alguns eram portadores de cabritos, porcos, galinhas, peixe seco e outros, também era necessária a entrada da urna com o cadáver do Mário Caixeiro. Não estando devidamente soldada, dela exalava um cheiro cadavérico e por isso os estivadores africanos recusavam-se a transporta-la - “homem grande papeia,” tsi..! djubi, amim ka mist ku péssoal nega,” - dando estalito com a ponta da língua, e com o bater do braço no tronco do corpo.

(i.e., do crioulo: “O chefe falou,” tsi..! olha, eu não quer e o pessoal recusa).

Como ia safar-me desta, porque o batelão tinha que sair? Inspirei o ar e fui ao pé da urna, depois expirei em um só período, eles viram, e tendo explicado no meu precário crioulo, como se faria, ficaram duvidando mas ensaiaram. Transportamos a urna em três levas e tudo se resolvera. “Sibi mesmo nós Cabo, nhabó tem cabeça mesmo. “Ku amim papeia,” ku nhabó ka sibi, nhabó tem cabeça suma nha burri di Bafatá, ió.

(i.e., do crioulo: Sabe mesmo nosso Cabo, tu tens cabeça que pensa. “E eu falei” e tu não sabes, tu tens cabeça igual a burro de Bafatá, sim).

Tendo o Batelão zarpado e tomando o rumo do Cais de Fulacunda, quando lá chegamos já se encontravam militares e civis esperando, feito o respectivo tráfego, descemos o rio com rota para o Cais de Bolama onde chegamos ao pôr-do-sol.

Na viagem, disse-lhes qual era a origem da frase “da cabeça suma a burro de Bafatá.”
Assim, ao tempo encontrava-se em Bafatá a Autoridade Máxima do Islão, na Guiné, Cherno Rachid, (Foto 5) que teria que viajar e instalar-se em Aldeia Formosa (Quebo), para onde era impensável ir a pé. Como mandavam as regras, deveria deslocar-se montado num camelo ou num cavalo, bichos que para aquelas bandas da Guiné há muito não eram vistos. Por conseguinte as entidades religiosas tinham que dar uma solução. Encontraram um burro e a decisão foi tomada, tendo o senhor seguido montado no dito cujo.

Foto 5 > Bissau > Teixeira Pinto > 1970 > Cerimónia religiosa do Ramadão. Autoridades máximas do Islão, na Guiné-Bissau na presença das Autoridades Militares e Civis. Na imagem, no lado direito, o Cherno Rachid, de etnia Futa Fula, (falecido em Novembro de 1973), à sua esquerda, vestido com calça e camisa branca, se bem me lembro, era um dos seus filhos.

Chegado a Aldeia Formosa, foram feitas as formalidades da praxe e havendo festa de arromba com pompa e circunstância, mas foi como uma pedra no sapato, do Chefe Cherno Rachid, de não se ter feito deslocar num meio de transporte adequado e ao nível da sua posição social.

Cherno Rachid, aparentava ser um religioso afectuoso e com um forte ascendente sobre a população do Credo Islâmico A sua presença dizia-se, fazia malograr qualquer intenção de perigo vindo do inimigo pois granjeava o respeito de todos.

Segundo se falava, tinha um sobrinho que integrava o PAIGC com influência na zona, em que os ataques de uma forma geral eram do lado da pista o que befeciava a povoação.

Quando passeava, dando uma volta pela Tabanca Grande de Aldeia Formosa, tendo-o reconhecido, tive oportunidade de lhe dirigir a saudação.

Batelão atracado no cais de Bolama, fora de todo conveniente falar com um camarada que era presença militar efectiva no batelão e a quem eu ficara a confiar, para lhe dizer que não ficávamos no barco e que íamos pernoitar no Quartel.

Na manhã seguinte e após o tráfego inerente à cabotagem, à hora marcada lá estávamos para embarcar e agora rumando a Bissau.

Chegados ao Cais de Pidjiguiti - Porto de Bissau, havia uma viatura do Exército a aguardar-me e transferimos o que estava a meu cargo. Foram feitas as devidas entregas na Morgue do Hospital (foto 6 e 7) e no Quartel dos Adidos.

Pernoitei no Quartel dos Adidos, era fim-de-semana e os serviços estavam fechados, e por isso um camarada emprestou-me um mosquiteiro e dois lençóis para os usar na cama. Quando era dia, porque o camarada estava de serviço, não pude agradecer-lhe por me ter proporcionado aquele conforto. Isto passou-se precisamente há quarenta anos.

Foto 6 > Bissau > Brá > Hospital Militar 241 > 1970 > Local temido e indesejável para as nossas tropas. Era preciso chegar com vida, que o resto os Médicos e Enfermeiros, tratavam e/ou enviavam para o Hospital da Estrela.

Foto 7 > Bissau > Morgue e Capela do Hospital Militar > 1970 > Depois do pesadelo, poderia vir a ser passagem para o destino final
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 7 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6336: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (10): Em Empada, o caso do borrego furtado

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