2.º GCOMB/CART 2339
Repasto
ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 19
Tabanca de Fá Mandinga
Tabanca de Fá Mandinga
Sento-me num banco de madeira, baixo e feito de uma só peça.
Banco confortável e muito usual nas tabancas.
Observo a destreza do artesão a dar cor ao cabedal. Gestos quase de ritual, repetidos de há muito, gestos, certamente herdados e transmitidos há séculos pelo seu Povo. O povo Mandinga.
Falamos, entre um português que ele não domina bem, e um crioulo que eu, ainda, nada sabia. Entendemo-nos contudo.
Observo o artesão e toda a zona envolvente. Tudo é novidade para mim. Estou na Guiné há cerca de um mês. Um mês a parecer já muito tempo.
Um mês de descobertas e um mês a mostrar que, de África, muito pouco sabia. Tantas questões que a mim colocava. Logo essa da língua e porque, em cinco séculos, só ínfima minoria sabia falar português.
África era terra praticamente desconhecida, terra a necessitar quase uma aprendizagem total. O que lemos ou o que nos explicaram pouco, muito pouco, tinha a ver com a realidade vivida.
Os cheiros, a cor da terra, as gentes e a guerra. Tudo. Praticamente tudo merecia total aprendizagem. Em Fá de Cima, onde estava com a minha Companhia, reinava a paz e era um bom local para se aprender.
Não parávamos lá por muito tempo. Depois de termos ido ao Xime receber o treino operacional, sendo a Companhia de intervenção do Batalhão, estávamos quase sempre de saída.
Rusgas aos Nabijões, seguranças a Mato de Cão ou, em Bafatá à visita do Presidente da Republica, em operação, bem sucedida, ao Galo Corubal e onde recebemos o baptismo de fogo.
Mês intenso que relato em poucas linhas. Intensidade a prolongar-se até final.
Para ali viver, para estar de bem comigo e com aquela gente, para sentir África e passar melhor aqueles tempos, tentava adaptar-me o melhor e o mais rápido possível. Relevo só dois ou três acontecimentos:
- Bafatá; a primeira ida aquela cidade mostra-me uma realidade diferente. Cidade bonita, edifícios com ar colonial, vivendas a ladearem a rua principal e esta a terminar no rio Geba.
Só que antes estava um edifício, o que mais gostei em Bafatá, o Mercado com a sua arquitectura a imitar edifícios árabes. Um pouco mais abaixo, já com o Geba à vista uma piscina.
Recordo bem a primeira visita ao mercado. Os cheiros agoniaram-me.
Visita curta a não conseguir ver a diversidade dos produtos, a variedade das cores dos panos e o bulício de mercadores e compradores. Um encanto a ser vivido posteriormente.
O cheiro que me fez sair do mercado. Já, tempos antes, me tinha incomodado numa rusga aos Nabijões ou, pior ainda, numa visita para encontro de sexo. Foi sol de pouca dura e rapidamente me habituei e adaptei.
Agora, ali estava eu a ver a bainha da espada mandinga cada vez mais composta. Já tinha o cabo e a bainha da faca de mato coberta com um entrançado em preto e branco, em desenho mandinga.
O artesão tinha-me oferecido uns amuletos. Retribuí com outros objectos.
A afabilidade daquele povo, mandinga ou fula, era admirável e deixou-me marcas indeléveis. O modo como as mães tratavam os filhos ou o carinho e respeito para com os “velhos” não se esquecem.
A minha aprendizagem continuou até ao fim da comissão. Muito, mesmo muito, ficou por aprender.
O Povo das tabancas é diferente do das cidades, das “elites” dominadoras. Certamente, o fosso entre os detentores de poderes e dinheiro, de hoje, aumentou negativamente claro.
São conjecturas subjectivas. Certamente e infelizmente estão próximas da realidade.
A minha velha espada Mandinga ainda vive. A guerra acabou felizmente e a amizade, o carinho, o respeito e a saudade que sinto por aquela gente, aumentou com o tempo.
Não se explica e para quê? Parece um paradoxo a guerra, a convivência com o povo e a recordação de hoje.
Mas de facto não se explica. Só vivendo o ontem e o hoje.
Um abraço,
Torcato Mendonça
Alf Mil At Art da CART 2339
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Nota de CV:
Vd.último poste da série de 10 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6363: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (18): Dia final
2 comentários:
"Africa terra praticamente desconhecida".
Torcato, esta é a frase que todos os que andaram naquela guerra, portugueses (brancos) deviamos repetir, mesmo os que nasceram lá.
Mesmo os funcionários e militares que já tinham feito várias comissões, desde Governadores e governantes, deviam repetir essa frase, se quizermos explicar um pouco do que se passou connosco.
Mesmo os missionários, tanto os catolicos de Paulo VI, como os protestantes americanos, foram todos ultrapassados, embora virassem , conforme os ventos da história. Tudo por desconhecerem a terra.
No caso da Guiné, por desconhecimento, sairam de lá completamente desiludidos (derrotados) russos e suecos. E até Luis Cabral e os caboverdeanos convocados por Amilcar. O motivo foi o mesmo: "Africa terra praticamente desconhecida".
Talvez um dia os guineenses e os africanos em geral, se desinibam e comecem a escrever.
Antº Rosinha
Caro Torcato
O teu relato é bem revelador de como se foi fazendo a aproximação à realidade rural guineense.
O que o Rosinha escreve, completa e explica muito bem o que sinto e que não tenho jeito de exprimir.
Acho que ficam muito bem, o texto e o comentário anterior.
Abraço
Hélder S.
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