quinta-feira, 13 de maio de 2010

Guiné 63/74 – P6381: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (20): Choro na noite

Choro na noite, mais uma Estória de Mansambo, de autoria do nosso camarada Torcato Mendonça, ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69).
ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 20

CHORO NA NOITE


Noite clara e a chegar rápida.
O cansaço a tomar conta deles, a paragem a ser feita na bolanha do Bissári.

De repente choro de criança, choro de bebé a soar forte, a cortar a noite, a avisar o inimigo da posição.

- Vai com um milícia dizer à mãe para calar o gaiato.

Traziam três mulheres, uma ou duas com bebés e dois ou três rapazes. Vinham de Cancodea Beafada. Traziam os prisioneiros porque tudo ficara destruído e essas eram as ordens.

O choro parou e o sono foi tomando conta dele e dos outros.

De repente o som forte a cortar a noite. Choro de bebé novamente.

- Foda-se, vai calar o bebé.

- A mãe não percebe. É balanta ou beafada.

- Anda comigo.

A mulher olha-os, embala a criança, afaga carinhosamente o corpito, tenta dar-lhe a mama, cala-se por breve momento o bebé, breve muito breve e volta a chorar forte.

Por gestos tenta fazer-se entender. Sente que o som põe em perigo todos aqueles homens.

E agora? Agora, em gesto brusco, olhar de louco puxa da faca enorme e encosta-a ao seu pescoço. Faz o gesto de degolar.

Na pouca claridade da noite sente o olhar de terror daquela mulher a fundir-se com o seu, sente a criança a ser mais fortemente apertada, sente, nas outras mulheres o medo.

Levanta-se. Sente, ele mesmo, ser um selvagem. Mesmo sendo impossível concretizar a ameaça. Volta com a cabeça a latejar e ouve barulho noutro lado.

- O rapaz mais velho fugiu e outro está ferido…

Fala com o Capitão e rápido iniciam a marcha de regresso. Passos apressados, fatigados, caminhar de gente farta de andar e pouco depois ouvem a saída e o estrondo da granada de morteiro, logo mais outra e curtas rajadas… cabrões… foi o rapaz… Estavam perto… o gaiato ou o rapaz?

Apressam o passo. Andam, mexem as pernas como autómatos e esgotados param uns quilómetros à frente. Consultam o guia, a carta e a bússola, metem-se debaixo do “ponche”, encostam-se ombro com ombro sentados nos calcanhares… só uma hora… fuma um cigarro e “vê” o olhar da mulher… sente-o… raios o partam.

Voltou a vê-la com a criança já em Mansambo. Ela olha-o com terror… afasta-se dali… pede ao Leonardo, chefe da tabanca, para lhe darem o que ela quiser e conta-lhe. O velho ouve-o, bate-lhe no ombro e sorri ao afastar-se.

O olhar dela, daquela mãe não sorri… andou muitas noites de suor com ele e, mesmo agora que alinho letras, se fechar os olhos vejo-o ali… mesmo ali… e arrepio-me…

Mansambo 18 de Março de 1969
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 12 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 – P6375: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (19): Tabanca de Fá Mandinga

7 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro Torcato

Li. Imaginei. Só isso.
Aceita estas pancadinhas, silenciosas, fraternas, que te dou agora no teu ombro.
Um abraço
Hélder S.

Cesar Dias disse...

Caro Torcato

Esta tua narrativa está um espanto, gostei muito e ao mesmo tempo veio-me á memória quando tinhamos que interromper o ressonar dos milicias que adormeciam nas emboscadas.
Continua partilhando as tuas recordações, é um gosto ler-te.
Um abraço
César Dias

Anónimo disse...

Muito bonito, comovente.
Cumprimentos
Filomena

Juvenal Amado disse...

Meu caro Torcato

Não vale a pena fazer grandes descrições do terror e do medo e tu prova-lo com este teu texto.
O terror do que tu escreves sente-se pega-se à pele.
Foi assim uma guerra com muita solidariedade, mas também perto muitas vezes do terror, que se vê nos olhos da mulher.

Um abraço

Juvenal Amado

Anónimo disse...

Bravo Torcato!

Tão tristemente belo..

Abraço.

Jorge Cabral

Luís Dias disse...

Caro Torcato

Na operação "Trampolim Mágico" com forças do BCAÇ3872 a reforçarem o BART3873, em Fevereiro de 1972, nas matas do Fiofioli, o denominado Grupo Castanho (CART3493, reforçada com o meu GC e o do meu camarada e amigo Alf. Farinha, tivémos esse problema, com os elementos da população "capturados" (recuperados) das tabancas do PAIGC que havíamos queimado durante a operação. Durante a noite o IN ía lançando morteiradas à toa, para obter uma resposta nossa e saber da nossa localização. Nesses momentos também um dos bebés desatou a chorar e o meu amigo Farinha calou-o colocando fita da bolsa do enfermeiro na boca da criança. Eu sei que a situação era perigosa e que o chora daquela criança representava a nossa possível localização e o sermos atacados....mas eu não consegui manter a situação, depois de olhar para a mãe e ver a sua aflição e da dificuldade do bebé para respirar e, como era o alf. mais antigo, ordenei ao meu amigo que retirasse a mordaça à criança -o que ele cumpriu. Foi um alívio para a mãe e também para nós porque o bebé lá se calou. E foi a única vez que tive em desacordo com o meu camarada (os nossos GC alinhavam habitualmente juntos nas operações).Às vezes perguntava-me se por força da minha ordem e se a criança continuasse a chorar o IN nos localizasse, nos atacasse e houvesse baixas, o que eu sentiria. Estávamos no princípio da comissão (teríamos 2 meses, 2 meses e meio)e a guerra ainda não nos tinha afectado/"apanhado" grandemente, como o iria fazer mês/mês e meio depois.
Gostei de ler e "ver" as sensações sentidas.
Um abraço
Luís Dias

Anónimo disse...

Torcato

"Sincopado" mas com carga,como costumas !

Recordas-me que passei por identico! Com final mau, mas sem peso na consciencia^!
Talvez a contar ... um dia .

Um abraço
Luis Faria