1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Maio de 2010:
Queridos amigos,
Suplicar não custa, o que custa é ser atendido.
Pelas minhas contas, estou a chegar ao fim dos anos 80, o que havia a inventariar já está inventariado. Mas será mesmo verdade? Será que vocês não têm uns livrinhos nas estantes que eu ainda não conheço? Estamos a trabalhar aqui no blogue para um futuro historiador que irá encontrar a papinha quase toda feita.
Continuo a pedir um livro do Álvaro Guerra “O Capitão Nemo e Eu”.
Continuo a pedir sugestões sobre os anos 90, estou praticamente às escuras, sejam bonzinhos comigo.
Um abraço do
Mário
Filipe Bento, um combatente que manteve as suas origens de campónio
Beja Santos
Será que Filipe Bento é José Brás? Será que na literatura memorialista da guerra colonial é justo procurar conhecer o disfarce do autor nas suas personagens? Útil ou desnecessário encontrar resposta, o narrador Filipe Bento de “Vindimas no Capim”, de José Brás (Prémio de Revelação de Ficção 1989 da APE e IPLL, Publicações Europa - América, 1987) encarrega-se de nos dizer abertamente que a sua memória saltita, com aparente desembaraço, entre o Sul da Guiné e o seu terrunho de origem, algures numa Estremadura de onde se avistam lezírias. Filipe Bento tem azedumes e não os esconde nas suas várias vertentes: políticas, militares e até morais. É sentenciador com vários tipos de intermediários, negociantes e vigaristas, não esqueceu a brutalidade da instrução militar, recorda a todo o momento com saudade os vinhedos mas também o Tejo, por entreposta pessoa, o camarada Santarém. Oiçamo-lo a falar do rio, são parágrafos muito belos:
O rio sereno como um espelho, o negro do céu adivinhado na profundeza das águas, os canaviais das margens...
E aquele silêncio... quebrado apenas pela corrente na quilha da bateira ou pelo salto de algum barbo brincalhão.
Aquela serenidade dava-lhe uma tristeza funda, uma saudade de não sei de quê, como uma lembrança de outra vida, de um espaço aberto e infinito onde vivera já. Era uma sensação profunda e vaga. Dolorosa e agradável ao mesmo tempo.
E à tarde, quando na casa do avô, sentado naquele barraco/lar sobre palafitas, sobre lodo e água construído, comendo fataça frita ou uma caldeirada de enguias mal amanhadas, lhe vinha à lembrança aquele sonhar, agora menos concreto ainda, ainda mais difícil de agarrar, faziam-se-lhe os olhos ansiosos sobre o prato, para além do prato e do barraco e do Tejo... e do mundo... e eram estrelas e azul fundo que lhe enchiam a alma”.
Foi furriel responsável pela messe, boas chatices lhe trouxe, isto ao tempo em que estava ali ao pé do corredor de Guileje, com o pessoal da 4022. O que é exemplar nesta escrita de José Brás, o seu selo original, é a mistura frenética de espaços e lugares, em que o acontecimento fortuito ganha, abruptamente, uma dimensão trágica. É a história daquele padeiro que já se habituara aos tiros, às morteiradas e às bazucadas e que um dia lhe deu na bolha, saiu com o pelotão em patrulhamento e achou um engenho artesanal, já ferrugento. Era uma lata velha, tentou desmanchá-la, explodiu:
“O padeiro ficou todo arranhado no peito nu e na barriga. E mão lá se foi!
No lugar dela havia uma pasta de sangue cheirando a trotil que tresandava.
A mão válida agarrou-se ao pulso mutilado e o padeiro iniciou uma corrida doida, aos berros, em direcção ao posto de socorros”. O relato em si assemelha-se a muitos outros que já aqui se transcreveram. Mas veja-se o remate: “– E teve muita sorte!” dizia o cabo do bar. “Teve muita sorte em ser canhoto!” Há sempre uma tirada pícara, uma saída truculenta, inesperada. Veja-se um novo exemplo:
“Dois gajos, o alferes P.G. e um soldado, amparavam o primeiro marino. O sangue corria-lhe da testa, encharcando-lhe a cara toda e o camuflado. Era um Cristo aos baldões da força dos socorristas. A mim pareceu-me que lhe tinham varado um olho.
O Bruno sentou-se no estribo da segunda GMC e limpou-lhe o sangue, usando logo de uma vez o algodão de um pacote.
Afinal, não era nada. Uma bala apenas, se calhar saída de alguma G3 dos periquitos, passara-lhe na sobrancelha esquerda de raspão. O sargento Marino iria fazer a comissão toda de boa saúde e a foder a malta na alimentação”. José Brás recorre frequentemente ao quente/frio, ao trágico e ao cómico, à atmosfera dramática com soluções hilariantes. Como o Alves, cabo da arrecadação, depois dos imbróglios de uma emboscada que se voltou para o furriel: “Ai Nossa Senhora do Sameiro, agora é que a gente vai todos prò caralho!”.
É uma memória que salta como uma mola do Sul da Guiné e vem até à Estremadura, por exemplo a tasca do Gato, entra-se numa rixa mortal, fala-se do Padre Francês que desertou, do Alexandre Lemos que pisou uma mina no caminho de Guileje e ali morreu, Filipe Bento vivia na Gatoeira, tinha oito anos quando a família se mudou para São Jerónimo, um camponês nunca se esquece das suas origens, os sulfates, os dias de festa, e depois a memória volta à Guiné, por exemplo uma peripécia que se passou com o Lemos:
“Um ataque de abelhas deixa a malta louca. Não há regras nem comando. Cada um defende-se como pode, e a única coisa que pode ou sabe é fugir à doida. O Lemos, apanhado na frente da bicha de pirilau, quando o pessoal largou a fugir para trás, nem viu do que era. Hesitou um segundo, meteu-se no carreiro errado depois, e perdeu-se.
As abelhas acharam-no à mesma e, às voltas naquela selva virgem, a fugir do inimigo feroz, afastou-se em sentido contrário ao do resto do pelotão.
Só ao fim de duas horas, e quase por acaso, o encontrámos, deitado junto a um charco, despido, vomitado, cagado, inchado e meio inconsciente.
Contou mais tarde que eram tantas as abelhas poisadas nele que, fugindo, foi tirando a roupa, peça a peça, e mergulhara na água da bolanha.
– O charco foi a tua sorte, pá!
Dizia um camarada na messe no dia seguinte, com o gajo ainda combalido e de olhar absorto.
– É! Fui sempre um tipo de sorte!
É uma narrativa que fala de bruxa de vários tipos, das eleições no tempo de Salazar, do obscurantismo de vários matizes, de um mundo que gradualmente foi desaparecendo com o termo daquela guerra. Compreendemos, no fim da narrativa, porquê vindimas no capim: é a voz do chamamento da terra, dentre as tabancas, ao pé do corredor da morte, com os palavrões da guerra. E também se compreende a dedicatória “Àqueles que se estoiravam, eles próprios, por dentro e por fora, para que a terra continuasse a parir e o sol a fecundá-la”. Seguramente, estas “Vindimas no Capim” têm lugar merecido entre o que melhor se escreveu nos já longínquos anos 80.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6347: Notas de leitura (103): Vindimas no Capim, do nosso camarada e tertuliano José Brás (1) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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