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Queridos amigos,
Suplicar não custa, o que custa é ser atendido.
Pelas minhas contas, estou a chegar ao fim dos anos 80, o que havia a inventariar já está inventariado. Mas será mesmo verdade? Será que vocês não têm uns livrinhos nas estantes que eu ainda não conheço? Estamos a trabalhar aqui no blogue para um futuro historiador que irá encontrar a papinha quase toda feita.
Continuo a pedir um livro do Álvaro Guerra “O Capitão Nemo e Eu”.
Continuo a pedir sugestões sobre os anos 90, estou praticamente às escuras, sejam bonzinhos comigo.
Um abraço do
Mário
Filipe Bento, um combatente que manteve as suas origens de campónio
Beja Santos
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O rio sereno como um espelho, o negro do céu adivinhado na profundeza das águas, os canaviais das margens...
E aquele silêncio... quebrado apenas pela corrente na quilha da bateira ou pelo salto de algum barbo brincalhão.
Aquela serenidade dava-lhe uma tristeza funda, uma saudade de não sei de quê, como uma lembrança de outra vida, de um espaço aberto e infinito onde vivera já. Era uma sensação profunda e vaga. Dolorosa e agradável ao mesmo tempo.
E à tarde, quando na casa do avô, sentado naquele barraco/lar sobre palafitas, sobre lodo e água construído, comendo fataça frita ou uma caldeirada de enguias mal amanhadas, lhe vinha à lembrança aquele sonhar, agora menos concreto ainda, ainda mais difícil de agarrar, faziam-se-lhe os olhos ansiosos sobre o prato, para além do prato e do barraco e do Tejo... e do mundo... e eram estrelas e azul fundo que lhe enchiam a alma”.
Foi furriel responsável pela messe, boas chatices lhe trouxe, isto ao tempo em que estava ali ao pé do corredor de Guileje, com o pessoal da 4022. O que é exemplar nesta escrita de José Brás, o seu selo original, é a mistura frenética de espaços e lugares, em que o acontecimento fortuito ganha, abruptamente, uma dimensão trágica. É a história daquele padeiro que já se habituara aos tiros, às morteiradas e às bazucadas e que um dia lhe deu na bolha, saiu com o pelotão em patrulhamento e achou um engenho artesanal, já ferrugento. Era uma lata velha, tentou desmanchá-la, explodiu:
“O padeiro ficou todo arranhado no peito nu e na barriga. E mão lá se foi!
No lugar dela havia uma pasta de sangue cheirando a trotil que tresandava.
A mão válida agarrou-se ao pulso mutilado e o padeiro iniciou uma corrida doida, aos berros, em direcção ao posto de socorros”. O relato em si assemelha-se a muitos outros que já aqui se transcreveram. Mas veja-se o remate: “– E teve muita sorte!” dizia o cabo do bar. “Teve muita sorte em ser canhoto!” Há sempre uma tirada pícara, uma saída truculenta, inesperada. Veja-se um novo exemplo:
“Dois gajos, o alferes P.G. e um soldado, amparavam o primeiro marino. O sangue corria-lhe da testa, encharcando-lhe a cara toda e o camuflado. Era um Cristo aos baldões da força dos socorristas. A mim pareceu-me que lhe tinham varado um olho.
O Bruno sentou-se no estribo da segunda GMC e limpou-lhe o sangue, usando logo de uma vez o algodão de um pacote.
Afinal, não era nada. Uma bala apenas, se calhar saída de alguma G3 dos periquitos, passara-lhe na sobrancelha esquerda de raspão. O sargento Marino iria fazer a comissão toda de boa saúde e a foder a malta na alimentação”. José Brás recorre frequentemente ao quente/frio, ao trágico e ao cómico, à atmosfera dramática com soluções hilariantes. Como o Alves, cabo da arrecadação, depois dos imbróglios de uma emboscada que se voltou para o furriel: “Ai Nossa Senhora do Sameiro, agora é que a gente vai todos prò caralho!”.
É uma memória que salta como uma mola do Sul da Guiné e vem até à Estremadura, por exemplo a tasca do Gato, entra-se numa rixa mortal, fala-se do Padre Francês que desertou, do Alexandre Lemos que pisou uma mina no caminho de Guileje e ali morreu, Filipe Bento vivia na Gatoeira, tinha oito anos quando a família se mudou para São Jerónimo, um camponês nunca se esquece das suas origens, os sulfates, os dias de festa, e depois a memória volta à Guiné, por exemplo uma peripécia que se passou com o Lemos:
“Um ataque de abelhas deixa a malta louca. Não há regras nem comando. Cada um defende-se como pode, e a única coisa que pode ou sabe é fugir à doida. O Lemos, apanhado na frente da bicha de pirilau, quando o pessoal largou a fugir para trás, nem viu do que era. Hesitou um segundo, meteu-se no carreiro errado depois, e perdeu-se.
As abelhas acharam-no à mesma e, às voltas naquela selva virgem, a fugir do inimigo feroz, afastou-se em sentido contrário ao do resto do pelotão.
Só ao fim de duas horas, e quase por acaso, o encontrámos, deitado junto a um charco, despido, vomitado, cagado, inchado e meio inconsciente.
Contou mais tarde que eram tantas as abelhas poisadas nele que, fugindo, foi tirando a roupa, peça a peça, e mergulhara na água da bolanha.
– O charco foi a tua sorte, pá!
Dizia um camarada na messe no dia seguinte, com o gajo ainda combalido e de olhar absorto.
– É! Fui sempre um tipo de sorte!
É uma narrativa que fala de bruxa de vários tipos, das eleições no tempo de Salazar, do obscurantismo de vários matizes, de um mundo que gradualmente foi desaparecendo com o termo daquela guerra. Compreendemos, no fim da narrativa, porquê vindimas no capim: é a voz do chamamento da terra, dentre as tabancas, ao pé do corredor da morte, com os palavrões da guerra. E também se compreende a dedicatória “Àqueles que se estoiravam, eles próprios, por dentro e por fora, para que a terra continuasse a parir e o sol a fecundá-la”. Seguramente, estas “Vindimas no Capim” têm lugar merecido entre o que melhor se escreveu nos já longínquos anos 80.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6347: Notas de leitura (103): Vindimas no Capim, do nosso camarada e tertuliano José Brás (1) (Mário Beja Santos)
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