segunda-feira, 9 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20716: Notas de leitura (1271): “Bacomé Sambu”, por Afonso Correia; edição de autor, Lisboa, 1931 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Fevereiro de 2017:

Queridos amigos,
Dentro do inventário que Leopoldo Amado fez ao período ascensional da literatura colonial guineense, ele faz uma chamada de atenção a este livro apodando-o de paternalista e moralizador, já que a personagem Bacomé Sambu aparece como um produto acabado das regas da civilização dos brancos. Não contestando a base paternalista, acho que Afonso Correia nos legou uma obra com variados méritos: é a primeira vez, no século XX, que se dá a conhecer Cacine, o povo Nalu, os seus usos e tradições, as contendas religiosas advindas do islamismo; Afonso Correia é manifestamente crítico dos "branquinhos", os diretos exploradores dos indígenas.
Estamos em 1931, dera-se a pacificação, Cacine era uma parcela recentíssima da Guiné Portuguesa e Afonso Correia desvela vícios e impreparação da nossa administração colonial. Nada mau para conhecer com um certo grau de isenção essa nova porção do Império.
E goste-se ou não Bacomé Sambu é o primeiro romance escrito por um branco sobre a Guiné.

Um abraço do
Mário


Bacomé Sambu, o primeiro romance sobre a Guiné

Beja Santos

Chama-se “Bacomé Sambu”, o seu autor é Afonso Correia, é apresentado como romance negro, trata-se de uma edição de autor, Lisboa, 1931, capa de Alfredo Cândido. Em Guineidade e Africanidade, Leopoldo Amado estuda este fenómeno da aurora da literatura colonial guineense em torno de Bolama e o aparecimento de periódicos como O Comércio da Guiné. Amado refere o paternalismo dessa literatura, a sua inserção num período de pacificação e de instalação da administração colonial, são narrativas literárias limpadas de exotismo, fascínio da selva, uma literatura pontuada por situações de primitivismo, feitiçaria, embates religiosos. Não se consegue apurar quem foi Afonso Correia, porém, um dos exemplares que se pode comprar online tem a sua dedicatória para Armando Cortesão, muito provavelmente Correia foi funcionário colonial, percebe-se facilmente que não fala de ânimo leve do palco em que se desenrola o seu romance, a região de Cacine, terá mesmo conhecido a outra margem do rio, na Guiné Francesa.

Atribuo uma certa importância a esta obra. Logo quando nos diz (o que era inteiramente verdade naquela época) que “A Guiné Portuguesa, preciosidade africana que o mar beija com tanta sofreguidão, não possui uma história esclarecida da sua colonização, nem abundam elementos escritos que habilitem o observador imparcial a fazer a resenha da sua existência de quase cinco séculos”. E adianta outros pormenores sobre a vida colonial e os seus preconceitos: “O povo selvagem encastelava-se no isolamento das tabancas, entregue aos seus destinos bárbaros por muito tempo, mas onde havia uma civilização a seu modo, uma civilização cujos ensinamentos bons ainda hoje podem servir de lição a muitos homens arquicivilizados”.

O que quer que Afonso Correia tenha feito na Guiné, é manifestamente crítico da composição da administração e explica porquê: “Quando os militares graduados deixaram os postos de comando e regressaram à metrópole, os serviços administrativos ficaram entregues a elementos civis. Quem eram esses elementos? Soldados rasos de ontem, passados à reserva, com umas calças de cotim branco e um chapéu de palha. Nada mais, além de uma compleição psicológica afeita a todas as possíveis brutalidades”. Mas ajuíza que nem todos os civis foram maus nem todos o são felizmente. Aliás foi um desses bons administradores que originou a fatura deste romance, pelo seu acrisolado patriotismo.

O romance Bacomé Sambu desenrola-se em Cacine, terra de Nalus. Chegaram uma nova autoridade, ele pôs ao seu serviço particular “um pretito dócil”. Deram-lhe um nome diferente, Bacomé, enquanto ele estudava e aprendia as regras dos brancos, à sua volta dardejavam-lhe os comentários mais ácidos: “Não vês que um preto nunca pode chegar a branco? Este livro não te muda a cor e o teu pior destino, a tua mais horrível condição, como a nossa, é essa cor negra, eternamente negra”. Mais tarde, o administrador teve de sair de Cacine, “por motivos a que não era alheia a trica indígena do fabrico dos brancos, a trinca dos aventureiros”.

Bacomé já está em litígio com os usos e costumes da sua tabanca de Nalus, irá refugiar-se na selva, esta é o melhor aconchego dos mártires. Maravilham-no as belezas que dali se avistam até ao Tombali, o fritambá, a onça, a selva é espaço de formação: “É o cadinho onde se depuram sentimentos agrestes e onde se forma o carácter, no contexto exclusivo da Natureza. Viveu na selva, mesmo por momentos, é tatear o mistério, desvendar as incógnitas do Além, chegar ao paraíso”. A tabanca de Bacomé, o seu berço natal é Cametobã, ele foge para a selva porque não se quer sujeitar às regras do fanado e por lhe ter sido negada a rapariga mais formosa da tabanca. O régulo Queta manda-o procurar no mato, em vão, Bacomé atravessa o rio Cacine e chega ao contacto com uma família francesa cujo chefe se chama Antoine Dumont, “tem as faces inchadas, cor de rabanete e ostenta uns louros e fartos bigodes farfalhudos”. Tinha dois filhos, um corajoso caçador profissional e uma linda estampa da selva. O francês fala-lhe no macholi, o poderoso irã dos Nalus. Desperto pela curiosidade, Bacomé vai até à tabanca de Cabudu onde o respetivo régulo lhe propõe uma prova de resistência, irá procurar defuntos. Regressa triunfante e recebe como prémio uma bela mulher. Toma a decisão de voltar à sua terra natal.

Neste ponto da obra Afonso Correia introduz novos elementos que nos ajudam a interpretar o que seriam as grandes questões que se punham à administração naquele período da pacificação, ainda na década de 1920. Há uma crítica explícita aos mouros, que riscam da vida indígena todos os naturais extintos do trabalho, é impensável que alguém possa trabalhar nos campos com aquelas indumentárias próprias para dias de festa. E escreve-se claramente que “o fanado, o macholi e o mauritanismo são os três maiores tornados que devassam a loira seara da vida forte”. O romancista aproveita para criticar a duplicidade religiosa do régulo Queta, um alarve que namoriscava as fórmulas de Maomé sem esquecer as práticas do feiticismo primitivo. Bacomé, pelo seu grau de civilização, torna-se um educador muito apreciado pelas crianças, diz-lhe abertamente: “O rei Queta que vos ensina a derrota que sofreu quando, há anos, abandonou o seu chão para ir provocar os fulas. Estes, segurando as armas fornecidas pelos brancos, aplicaram-lhes um grande castigo”.

Faz-se uma exposição sobre o fanado e o batuque, assiste-se a uma cerimónia fúnebre do rei Camará, régulo vizinho. Bacomé diz às crianças que “os homens são todos iguais ao nascer, seja qual for o colorido da pele que o irã lhes dá. Há brancos e branquinhos, estes são os que vivem à custa dos brancos, andam no mato a farejar os negócios, comem-nos tudo”.

Afonso Correia conhecia seguramente ao milímetro este território, diz-nos que os Nalus de Cacine procuravam o território francês para as suas relações comerciais, económicas e cíveis, mas também esclarece que não procurava a autoridade francesa procurava sim os Nalus, seus irmãos, os sossos, seus aliados e aparentados. Afonso Correia discreteia entusiasticamente sobre os encantos da parte mais setentrional da Guiné, exalta a produtividade agrícola, aquelas terras davam milho, feijão, amendoim, coconote, borracha, arroz, todas as culturas hortícolas dos países brancos. E não ilude os gravíssimos erros da administração que fustigava os indígenas em vez de os acarinhar.

E ficamos-lhe a dever uma impressiva discrição de Cacine:
“Cacine, ao tempo, era um pequenino burgo indígena, sem ruelas, sem becos, um largo terreiro a embranquecer-lhe a face, algumas colheiras, uns débeis pezitos de coqueiros, dois barracões velhos, esburacados, cobertos de zinco que semelhava largos crivos de regadores, quando a chuva tamborilava sobre ele; a branca e pequena casa do secretário e o casarão abarracado, de madeira velha, com resguardos exteriores de zinco pintado a negro, onde se instalava, opípara e majestosamente, o “comandante Espinha”. Uma varanda erguida a toda a roda do casarão, com pavimentos de cimento armado, desenhos e cores de asfalto, duas bonitas laranjeiras a esconderem as arestas angulares da frontaria, uma cozinha estreita, mas severa de cortes, uma casa de banho, improvisada, um jardinzito amigo e terno, rosas a abrirem-se, brisas do rio a mordê-las, pássaros a debicarem nas pétalas, o rio largo, a ponte estreita e curta, barriga de pedregulho e cimento, quebrada com o longo e insistente martelar das águas salgadas”.

Admito que Bacomé Sambu não tem a qualidade literária que vai surgir, em 1934, com Auá, o romance premiado de Fausto Duarte e incensado por Aquilino Ribeiro. Mas não deixa de ser um retrato impressivo desse Sul da Guiné que até há dezenas de anos era território francês cedido como contrapeso à perda do Casamansa. Mais uma razão para se ler os comentários críticos, a denúncia da exploração e até da religiosidade trazida pelos mauritanos, ao arrepio dos usos e costumes dos Nalus.
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Nota do editor

Último poste da série de 6 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20707: Notas de leitura (1270): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (48) (Mário Beja Santos)

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