quarta-feira, 11 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20723: Antropologia (37): Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes…, pelo Cónego Marcelino Marques de Barros (1) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Março de 2019:

Queridos amigos,
A referência a este primoroso trabalho do cónego Marcelino Marques de Barros não é o de uma mera referência cultural. Em termos científicos, ao nível das ciências sociais e humanas, é um trabalho pioneiro, talvez mesmo o primeiro de todos que saiu das mãos de um guineense. O antigo Vigário-Geral da Guiné era correspondente da Sociedade de Geografia, sentiu-se instado a alinhavar um punhado de notas, tudo apareceu rigoroso, conforme se sabe, fala no modo de saudar, nos pactos e juramentos, na hospitalidade, vai à família, aos costumes que podem ser agrícolas ou guerreiros, fala na morte e na sepultura, no modo de habitar, na vida doméstica, no vestuário, é o primeiríssimo etnolinguístico e poucas dúvidas tenho de que terá sido o pai da sociologia na Guiné, o percursor dos estudos linguísticos.
Este venerando investigador que se preparou em Cernache do Bonjardim veio a falecer em Portugal, ainda na I República.

Um abraço do
Mário


Guiné Portuguesa, breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes… (1)

Beja Santos

O Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 3.ª Série – N.º 12, 1882, publicou um artigo do Vigário-Geral da Guiné, Marcelino Marques de Barros, porventura o primeiro grande intelectual guineense, com o título “Guiné Portuguesa ou breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes, línguas e origens dos seus povos”. Marcelino Marques de Barros tem sido alvo de alguns ensaios, deplora-se que o conjunto da sua obra não tenha tido a republicação que se justifica, ele foi etnolinguístico e explorou, com os seus conhecimentos, a dimensão antropológica, como um verdadeiro pioneiro. Dirige-se em primeiro lugar ao Governador da Guiné, Pedro Inácio de Gouveia, nos seguintes termos:  
“Ponderosos motivos de sincera admiração e reconhecimento com o ilustre governador me levaram gostosamente a escrever esta breve notícia sobre os usos e costumes do meu país. E apesar da diligência que nisso empreguei, vejo bem que me devem ter escapado muitos desalinhos e incorrecções de frase e mesmo erros na exposição dos factos, como é de esperar que aconteça sempre a todas as obras desta natureza feitas à pressa, na Guiné, sem livros, sem bibliotecas públicas em quem se vê forçado a recorrer quase exclusivamente à memória dos seus esclarecidos amigos, à sua e aos seus apontamentos”.

Lança-se num esboço sobre o mundo étnico, ele que se diz desconhecedor das inextrincáveis raças que povoam a Senegâmbia: fala dos Beafadas habitando as margens do Geba e Rio Grande, dos Mandingas, dos Fulas, dos Bijagós, Nalus, Brames, Papéis, Balantas, Felupes e mestiços. Reconheça-se que esta divisão tem imperfeições, o curioso é que o investigador tenta esmiuçar as diferentes subdivisões étnicas, caso dos Fulas onde coloca os Turoncas, Futa-Fulas, Fulas livres e Fulas Pretos ou escravos. Passando para a etnografia, observa o modo como os povos se saúdam. Diz que “quase todos os habitantes desta costa saúdam como nós e com apertos de mão. Os Felupes cumprimentam as pessoas de elevada hierarquia abanando as mãos juntas. Os Papéis de Cacheu levam bruscamente o indicador aos olhos da gente. Os mouros, deixando as suas sandálias à porta de quem muito respeitam, entram dizendo salamaleques. O Fula leva um século a fazer os seus cumprimentos: pergunta pela saúde do seu interlocutor, de toda a sua família, individualizando; pelo estado de todas as suas coisas, especificando; de todos os seus negócios feitos e por fazer".

Passando para os pactos e juramentos, refere que estes se fazem sempre perante duas os mais testemunhas e diz o seguinte: “Os parentes, embora ausentes, são sempre fiadores natos de qualquer pacto havido entre duas ou mais pessoas; no caso de rescisão, os parentes do culpado são reduzidos ao cativeiro e vendidos. O gentio não tem ideia do que seja palavra de honra e não se julga obrigado a dar cumprimento aos seus compromissos sem que os ligue a um juramento. O juramento individual é o que fazem aos seus manes ou aos grandes feitiços da sua nação. O juramento mais solene de paz e amizade entre duas nações ou tribos contendoras consiste no enterramento de pólvora e bala, acompanhado de outras cerimónias de rito sobre as asas de um ídolo ou feitiço”.

E passa para novo tema, a hospitalidade, praticada pela maior parte dos povos de um modo irrepreensível: “Até se julgam na obrigação de defender o seu hóspede dos danos ou ultrajes que possa sofrer dentro da sua casa ou fora dela, e, sendo preciso, cumprem este dever à mão-armada. Por excepção, entre os Balantas, ladrões famosos, não raras vezes o hospedado goza dos benefícios da hospitalidade enquanto não dá um passo fora da cabana ou enquanto não faz as suas despedidas”.

O tema agora é o tabu, e bem curioso é o seu punhado de observações: “Assim como os insulanos da Polinésia, os nossos gentios envolvem qualquer coisa ou pessoa num manto de prestígio sagrado; e os símbolos que representam este acto supersticioso são principalmente as manilhas de ferro, búzios ou ramos de palmeira. Na pessoa ou coisa sagrada não se pode tocar, sob pena de morte, que tarde ou cedo sobrevém de uma maneira misteriosa, isto é, por meio de um veneno mais ou menos lento”.

Passamos agora para a vindicta, dizendo o aprendiz de antropólogo que há para ali selvagens que são vingativos: “Qualquer membro de uma tribo é assassinado, justa ou injustamente, não se recorre ao tribunal dos reis ou dos grandes; qualquer dos filhos, e na falta destes seus próximos parentes, ficam na imprescritível obrigação de espingardear o assassino, e, na sua ausência, qualquer membro da sua tribo”.

Tema recorrente em todas as investigações antropológicas é o roubo. Eis o que nos diz Marcelino Marques de Barros: “Os Balantas roubam sempre, dia e noite, e em toda a parte; e muito se honram com isso, não como acto em si digno e meritório, mas como uma arte por onde se avalia a destreza, a astúcia e a audácia de um homem. O filho família de um Balanta que não mostra desde cedo suficiente habilidade na arte de furtar é desprezado pelos seus pais como ente inútil e efeminado. Estão convencidos que todo o homem tem direito de matar um ladrão apanhado em flagrante”.

Recordemos que estamos no século XIX e que a presença portuguesa é ténue, faz todo o sentido o que ele escreve sobre as correrias:
“As nações guerreiras armam-se muitas vezes, e vão, junto aos caminhos, atacar as caravanas para as despojar das suas mercadorias, ou então, envolvidos nas sombras de uma noite escura, assaltam de improviso uma aldeia inteira, metendo tudo a ferro e fogo, e arrastam as donzelas e as crianças para terras longínquas, onde as vendem ou as matam, quando não encontram quem as inverte por compra ou resgate”. E deixa uma palavra sobre a pirataria, as pirogas de guerra que atacam embarcações entre Bissau, Bolama, Pecixe e Cacheu.

Aborda igualmente a epigamia, a poligamia e a poliandria. Escreve o seguinte:
“Em toda a parte nesta costa o pai respeita a filha, o filho, a mãe e o irmão a irmã. O direito de contratar uma união conjugal é sempre restrito a certas condições. A idade entre os 14 a 20 anos é o limite médio em que geralmente têm lugar os casamentos. Exceptuando os Bijagós, entre os quais nenhumas condições existem para toda a espécie de união conjugal, gentios há que não cedem as suas filhas em casamento sem que seja de antemão comprada a seus pais por 60 a 200 mil réis, que se dão e se recebem a troco de presentes, isto especialmente entre Papéis e Mandingas. Por causa dos maus tratos, a mulher volta a casa dos seus pais, que ficam na obrigação de restituir os presentes que receberam ou o seu valor”.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de janeiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20584: Antropologia (36): As insígnias de autoridade dos Felupe e Marcos no Chão Felupe, por Lúcia Bayan (Mário Beja Santos)

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