quarta-feira, 11 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20724: (De)Caras (149): Carta pungente do Umaru Baldé (c. 1953-2004), um dos meninos-soldados que passaram pelo CIM de Contuboel, entre março e julho de 1969... Era dirigida ao seu antigo instrutor militar, Valdemar Queiroz.



Guiné > Região de Bafatá > Contuboel > CIM - Centro de Instrução Militar > Narço de 1969 > Silhueta do recruta Umaru Baldé, natural de Dembataco, regulado de Badora, setor L1 (Bambadinca), nº mec 82115869.



O AMOR NUNCA ACABA

O Amor nunca acaba,
ninguém se esquece do passado, do melhor  e do pior.
Eu lembro-me desse dia 12 de março de 1969,
quando fui chamado para a tropa, pelos Portugueses.

Na verdade eu tinha poucos anos de idade
e era o único filho do meu pai.
A minha Mamã revoltou-se,
disse que eu não tinha idade para ir para a guerra,
mas infelizmente o alferes que tinha vindo para nos levar,
não podia entender esta revolta.

O Alferes disse-nos:
"Todos somos Portugueses,
saímos de muito longe
para defender a Pátria Portuguesa.
Então, para povo de Dembataco saber
que em Portugal não há diferanças de raças nem de credos,
todo o cidadão tem que ir cumprir
o serviço militar português".
A minha mamã chorou, disse:
"Ai, meu Deus, o meu filho único vai me deixar
para ir morrer na guerra."

Esta data foi um dia de tristeza e de lágrimas
para o povo de Dembataco e de Taibatá.
Na verdade ficámos ali até às 4 horas da tarde
até entramos para as viaturas militares 

que nos levaram para Bambadinca.

Eu, com a pouca idade que eu tinha,
o que é que podia fazer ?
Fiz-me homem,
tirei a recruta em Contuboel,
fui o melhor apontador de morteiro 60.

Depois, na especialidade,
fiquei no mesmo sítio,
sendo a minha primeira companhia a CCAÇ 2590 / CCAÇ 12
onde nunca esquecerei o sofrimento
que sofri pela minha Pátria Portuguesa,
na Guiné Portuguesa.

Na verdade, em dois anos e alguns meses
em que estive como operacional,
fiz 78 operações no mato do Xime,
na zona do Xitole 
e até no Boé,
lá para os lados Canjadude.

Na minha companhia, durante dois anos
só tivemos 5 soldados mortos, quatro pretos e um branco.(*)
Depois fui transferido para Bissau como primeiro cabo,
onde fui colocado no comando das transmissões,
no quartel de Santa Luzia,

até ao fim da guerra em 1974.

Umaru Baldé

[Revisão e fixação do texto: LG]




Envelope da carta enviada pelo Umaru Baldé ao José Valdemar Queiroz Silva, seu antigo instrutor militar, residente no Cacém (foi deliberadamente rasurado o nome da rua do destinário, por razões de privacidade). É pena o carimbo do correio estar ilegível. A carta deve ser de finais de 1999, princípios de 2000, segundo a explicação do Valdemar Queiroz :  

Contuboel, c. março / abril de 1969 > 
O instrutor e o recruita
Foto: Valdemar Queiroz 

"Anexo umas cartas (*) que me foram enviadas, nos finais dos anos 90 e princípio dos anos 2000, pelo Umaru Baldé que estava a residir na Amadora.[São quatro cartas, só duas das quais datadas, uma de 2000 e outra de 2003]. 

"O Umaru Baldé foi aquele menino soldado da CArt 11 e da CCaç 12 que já foi por nós muito falado. (...) Estas cartas que julgava desaparecidas, foram por ele ditadas a alguém com máquina de escrever ou computador e até por ele escritas [, numa delas há uma parte manuscrita.]

Por cá também não teve grande sorte, quer por não arranjar trabalho [estável], quer por já estar muito doente [, em 2000 esteve internado no Hospital Curry Cabral, em Lisboa]. Por cá andou uns anos, voltou a ver camaradas do tempo da guerra [João Ramos, António Fernando Marques,  Fernando Sousa, da CCAÇ 12; Mário Pina Cabral, Abílio Duarte, Aurélio Duarte, Valdemar Queiroz, da CART 11...] e sempre a tentar arranjar forma de ser reconhecido como militar do Exército Português.

Por fim e, depois, de passar por várias internamentos hospitalares tentou arranjar dinheiro para regressar à Guiné e à sua Demba Taco,  em Bambadinca.

Sempre concretizou o seu desejo, mas pouco tempo depois veio a morrer da grave doença que o apoquentava,  viria a morrer em Portugal [não sabemos, ao certo, se no antigo Hospital do Barro, em Torres Vedras, por volta de 2004, ou no Hiospital Curry Cabral; esteve internado, em diferentes períodos, num e noutro] (...)"







Cópia da prineira parte da carta, datilografada, sem data nem local, tem a foto do remetente, o Umaru Baldé, ao canto superior esquerdo. Excerto.

Fotos (e legendas): © Valdemar Queiroz (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]






Guiné > Região de Bafatá > Bambadinca > CCAÇ 12 > c. 1970 > Umaru Baldé (c. 1953-2004), soldado do recrutamento local, nº 82115869, tirou a recruta e a especialidade no CIM de Contuboel. Foi apontador de morteiro 60, soldado arvorado e depois 1º cabo infantaria da CCAÇ 12 (1969-1972). Foi depois colocado, em Santa Luzia, Bissau, no quartel do Serviço de Transmissões, até ao fim da guerra. Conheceu, em mais de metade da vida, a amargura e a solidão do exílio. Veio morrer a Portugal onde teve grandes camaradas e amigos, solidários, que o ajudaram: cit
e-se, entre outros, o João Ramos, o António Fernando Marques,  o Fernando Sousa, da CCAÇ 12; o Mário Pina Cabral, o Abílio Duarte, Aurélio Duarte, Valdemar Queiroz, da CART 11.


Foto (e legenda): © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados . [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Comentário de LG:


Nunca é de mais ler e reler esta carta do Umaru Baldé, de excecional valor documental, datilografada, sem data, expedida da Amadora (onde vivia depois de chegar a Portugal, em meados de 1999). A primeira folha tem a foto do remetente, caonto superior esquerdo. Acarta era dirigida ao José Valdemar Queiroz, a viver na altura no Cacém,e seu antigo instrutor no CIM de Contuboel (, em março/maio de 1969). É possível que outras cartas de igual teor tenham sido remetidos outros camaradas da CCAÇ 12 e da CART 11, que ele conhecia de Contuboel e de Bambadinca. A carta deve ser interpretada como um SOS, um pedido de ajuda. 

Como já comentei, é um relato pungente da sua  experiência de recrutamento por parte do exército português e da despedida da sua mãe e da sua tabanca, Demba Taco, 
regulado de Badora,  setor L1 ( (Bambadinca), em 12 de março de 1969.  Na altura ele era um miúdo, de etnia fula, que deveria ter 15/16 anos, "filho único de sua mãe". 

No Centro de Instrução Militar de Contuboel, o Umaru Baldé (c. 1953-2004) fez a recruta e a especialidade, sendo integrado na CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, como soldado arvorado.

Era um exímio apontador de morteiro 60, como o demonstrou em exercícios de fogo real, no CIM de Contuboel, na presença do gen Spínola e seus acompanhantes, e em inúmeras situações em que esteve debaixo de fogo, durante cerca de dois anos e meio. 


Na CCAÇ 12 ele era o nosso "djubi", o nosso menino, às vezes mimado demais... Por sorte já não estava no Xime, em agosto de 1974, aquando da retração do nosso dispositivo militar, da entrega do aquartelamento do Xime ao PAIGC e da extinção da CCAÇ 12 e da CCAÇ 21... Por sortem estava em Bissau, em Luzia. Consta que em Madina Colhido foram fuzilados alguns quadros da CCAÇ 12 (Abibo Jau, por exemplo) e da CCAÇ 21 (Jamanca), ainda antes da saída definitiva das tropas portuguesas do território da Guiné-Bissau. O PAIGC estava impaciente para ajustar contas com os "cães dos colonialistas", e em especial com os fulas de Bambadinca...

Depois da independência da Guiné-Bissau, e com justificado receio de represálias por ter servido no exército português, atravessou quase meia África para chegar a Portugal, em 15 de abril de 1999, tendo entretanto vivido ou sobrevivido (, não sabemos como...) no Senegal (11 anos), Mali (1 ano), Costa do Marfim (2 anos), Gana (2 meses), Burkina Faso (7 meses). etc, e passando  ainda pelo Benin, Guiné-Conacri, de novo Guiné-Bissau, e por fim, Portugal, Guiné-Bissau e de novo Portugal (onde veio, finalmente, para morrer).

É membro, a título póstumo, da nossa Tabanca Grande (**)

Esta carta terá sido escrita em meados ou finais de 1999 / princípios de 2000. Morreu de tuberculose e HIV/SIDA em 2004. Nunca escondeu o seu grande amor à Pátria Portuguesa que lhe foi madrasta. Não sabemos se, no regresso do seu longo "exílio", chegou a reencontrar a sua "mamã".

Este documento humano, lancinante, precisa de ser melhor conhecido, analisado, divulgado e comentado. Na altura da publicação das cartas, escrevi entre outros o seguinte comentário:


O Umaru Baldé é outro exemplo paradigmático da desgraça que aconteceu a todos aqueles guineenses, fulas e não só, que acreditaram no sonho de uma Pátria Portuguesa onde todos podiam caber, e que combateram nas nossas fileiras... Spínola foi o arauto desse sonho mas também o seu coveiro... A História nos julgará a todos!

Spínola já não está cá para se defender... E os spinolistas, se é que existem, não vão ter a maçada de nos ler e muito menos responder... Mas eu acrescentaria que, além de Spínola, todos nós, e fomos muitos, deixámos correr o marfim: 
"militarizámos" o chão fula, defendemos o chão fula, morremos na defesa do chão fula, os fulas combateram e morreram na defesa do projeto spinolista, recrutámos jovens fulas (alguns eram crianças, "filhos de sua mãe" como o Umaré Baldé e outros putos com quem fizemos a guerra), formámos unidades de elite com jovens guineenses, formámos companhias de milícias, formámos companhias africanas, algumas totalmente africanas (como as CCAÇ 21 e 22), obrigámo-los a "invadir" um país vizinho, como a Guiné-Conacri, onde fica o Futa Djalon... e nunca sequer pusemos a hipótese de as coisas correrem mal para o nosso lado...

Qual era a alternativa ? Embarcar todos os "putos" Umaru Baldé e suas famílias, tão portugueses como eu, e instalá-los em Portugal, no Algarve ou no Alentejo ?

A maior deceção que teve o Umaru Baldé, quando chegou a Portugal, ao fim de um longo exílio de 24 anos, foi contatar que afinal Portugal e as autoridades portuguesas o consideravam um "estrangeiro"... Julgo que esse choque apressou a sua decisão (temerária) de voltar à terra natal... E apressou a sua morte... Portugal era a sua "terra prometida"!... Sofrendo de uma grave doença crónica (julgo que a tuverculose, associada ao  HIV/SIDA) e esgotado "stock" de medicação que levou consigo, só lhe restou voltar a Portugal, para aqui morrer...

É uma história cruel, mas é também a história de vida (trágica) de muitos guineenses que escolheram ficar do lado dos "tugas"... É uma história amarga para alguns camaradas como eu que também enquadrei e comandei homens como o Umaru Baldé, o Abibo Jau, o Zé Carlos Suleimane Baldé, o Sori ...

______________

Notas do editor:

Vd. postes de;



28 de setembro de  2016 > Guiné 63/74 - P16532: (In)citações (102a): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte IV): "Viva Médicas e Médicos Portugueses. Viva Portugal com os Negros Unidos" (sic) (carta de 15 de novembro de 2000)


29 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16537: (In)citações (102b): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte V): O Umaru Baldé que eu conheci... O "show" de morteiro 60 que o "puto" deu, no CIM de Contuboel, em exercício de fogo real, na presença do próprio gen Spínola em maio de 1969... (Valdemar Queiroz, fur mil, CART 2479 / CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70) 29 de setembro de  2016 



3 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Esta situação poderá ter explicações, mas não tem justificações.
Só há uma: é a guerra subversiva em África entre 1961-74 e, no caso da Guiné, 1963-74.
Como forças governamentais - ou de ocupação, como quiserem chamar-lhe - tentávamos tudo parra inverter o curso da guerra.
Havia experiências por todo o mundo nas quais as forças governamentais procuravam engrossar as suas hostes à custa do "recrutamento local". Se a vietnamização da guerra assentava em questões chamemos-lhe sociais, na Guiné pretendia-se que, para além destas surgissem imperativo patrióticos. No caso da Guiné, o mosaico rácico era uma questão a ter em conta.
As "formas de recrutamento" em África, eram mutatis mutandis idênticas às praticadas pelos alemães nas áreas ocupadas para obterem mão-de-obra.
Testemunhei a chegada de 8 soldados "820" a Cacine que ocuparam as vagas que existiam nos 4 Gr. Comb. Alguns vinham da Milícia e após o cumprimento do SMO foram reclassificados. Recordo dois que em 1974 estavam em serviço no HM 241 e GA 7. A um deles ainda aconselhei a que deixasse a tropa e fosse trabalhar como civil. Não seguiu o meu conselho e pagou-o com 9 anos de trambulhões vários. Emigrou para Portugal onde se manteve a trabalhar como segurança na residência sénior da Telecom. Mas teve de voltar à terra onde morreu há cerca de um ano.

Um Ab.
António J. P. Costa

Valdemar Silva disse...

É extraordinário.
Passados 50 anos, ainda andamos com estas lembranças.
Julgo que o meu/nosso caso, em mantermos estas lembranças, deve-se ao facto de termos pertencido a Companhias de soldados do recrutamento local e, talvez, por serem fulas/futa-fulas.
Acho que todos nós ficamos marcados e sempre com aquela, pelo menos na CART11, de termos tido uma muita sorte com aqueles soldados.
Ainda agora, quando nos nossos Encontros anuais, falamos sobre o assunto, ficamos com a ideia que o IN não se metia connosco por causa dos nossos soldados serem fulas daquela região.

Valdemar Queiroz

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Poderemos perguntar porque é que estes soldados aderiam ao Exército Português. Creio que tudo tinha a ver com a sua cultura e religião. Os grupos étnicos próximos do litoral - a maior parte - tinham uma religião pouco evoluída, mas que não aceitava o catolicismo. Os balantas, excepto os de Mansoa, não aceitavam o domínio do homem branco e aderiam ao PAIGC na esperança de o expulsar.
Conseguiram, mas tal como seria de prever saíram do mato com "canhotas às costas" e sem nada para dar ao povo que os esperava para beneficiar da independência.
Sempre que o neo-colonialismo não fosse além do domínio das ex-colónias por parte do poder económico das ex-metrópoles. Nunca esperei que se entrasse nesta cóboiada...

Mas isto já são outros "caminhos da História".

Um Ab
António J. P. Costa