sábado, 1 de outubro de 2016

Guiné 63/74 - P16544: (In)citações (103): As outras cartas da guerra... Do Umaru Baldé, da CART 11 e CCAÇ 12, para o Valdemar Queiroz (Parte VI): A última mensagem, de 18/4/2003... "Eu queria [saber] se [a] nossa malta me podia ajudar [a obter] meio[s] para [comprar] bilhete [de avião] para África, porque estou muito mal"... Ainda foi à sua terra, Demba Taco, antes de voltar, cada vez mais doente, para morrer em Portugal


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > CCS / BART 2917 (1970/72 > O Umaru Baldé, soldado da CCAÇ 12 (1969/71)... Depois da independência, veio para Portugal, ao fim de 24 (!) anos de exílio. Morreu em 2004, de doença prolongada... Vários antigos camaradas seus, "tugas", ajudaram-no a sobreviver (mesmo com limitações, trabalhou, no Parque das Nações, numa empresa de construção civil, graças aos bons ofícios do João Gonçalves Ramos, ex-soldado radiotelegrafista, da CCAÇ 12, 1969/71; o seu antigo comandante, hoje cor inf ref, Carlos Brito, assinou um documento para ele se poder candidatar a deficiente das forças armadas, etc.).

Para mim, que o cheguei a comandar, várias vezes, em operações, era uma criança na guerra... Não teria mais do que 16 anos quando eu conheci, em Contuboel fez a recruta e a especialidade (entre março e julho 1969)...

Era um belo efebo, com o seu inseparável cachimbo que ele usava para lhe dar o ar de "homem grande" que não tinha nem podia ter ...

Apesar de "puto", foi um bravo combatente e um temível apontador de morteiro 60, que manobrava como se fosse um morteirete, debaixo de fogo... Chegou a ficar com as mãos queimadas, numa das ocasiões em que fomos emboscados,,,  Fula, pertencia ao 4.º Gr Comb, 2.ª Secção (comandada pelo nosso querido amigo e camarada António Fernando R. Marques).

Não seio se casou, se deixou víúva(s), filho(s)...

Em homenagem à sua vida e à sua memória, decidi integrá-lo, a título póstumo, na nossa Tabanca Grande... Repousa em paz, Umaru... Serás o nosso grã-tabanqueiro nº 729... Tenho pena de nunca te ter visto mais, desde os últimos dias que passámos em Bambadinca, em março de 1971, antes do meu regresso a casa... Com tanta canseira da guerra, faltou-nos tempo para pôr a conversa em dia sobre a tua vida do "menino de sua mãe", nascido em Demba Taco, por volta de 1953... (LG)

Foto: © Benjamim Durães (2010) / Blogue Luís Graça & Camaradas daa Guiné. Todos os direitos reservados


1. Última de quatro cartas do Umaru Baldé (Demba Taco, c. 1953 - Lisboa, 2004), dirigidas ao Valdemar Queiroz, que foi seu instrutor, na recruta, no Centro de Instrução Militar de Contuboel, região de Bafatá, entre março e maio de 1969.





Outras cópias de igual teor devem ter sido dirigidas a camaradas da CART 11 e da CCAÇ 12 que se quotizaram para lhe comprar o bilhete de avião de regresso à Guiné-Bissau. 

Entretanto, como o estado de saúde do Umaru Baldé piorou, como era previsível (sem acompanhamento médico, esgotado o "stock" de medicamentos que levou, para a sua terra, etc.), ele teve de voltar para Portugal,  graças de novo à solidariedade dos seus amigos e 
camaradas (o António Fernando Marques, o João Ramos, etc.)... 

Não sabemos exatamente em que data é que regressou... Terá morrido, ao que parece, não no hospital (como supúnhamos), mas no quarto que tinha alugado, na Damaia, Amadora...  Está sepultado no cemitério do Lumiar, em Lisboa, no talhão dos muçulmanos... Prometo passar lá um dia destes, para o "último adeus" que não lhe pude dar em 2004.


Transcrição da carta, revisão e fixação de texto (parte manuscrita):


Sr. Queiroz, já é [há] uma ano [que] que não me telefonaste [telefonas],

nem [queres] saber como [é que eu] estou [a] viver neste momento.

Até você[s] devem saber que toda  [a] minha

confiança está nas pessoas que eu conhecia

desde a Guiné. E hoje estou cá em Portugal.

Sr. Queiroz, [é] para saber que neste [este] momento

é  muito difícil para mim, nem [até ] para comer

é cota a cota [gota  a gota] porque não estou  [a] trabalhar

porque estou doente. E na verdade estou à

espera da minha reforma. Mas antes disso 

estou mal. Eu queria [saber] se [a] nossa

malta me podia ajudar [a obter] meio[s] para

[comprar] bilhete [de avião] para África, porque estou muito

mal. Tenho [de] comer e pagar quarto e

luz e água, nem trabalho tenho.

Melhor[es] cumprimento[s] para ti e abraço

do Umaro [Umaru]  Baldé.

Lisboa, 18 abril [20]03
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