sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Guiné 63/74 - P16540: Notas de leitura (884): “Vozes de Abril na Descolonização”, a organização é de Ana Mouta Faria e Jorge Martins, edição do CEHC – Centro de Estudos de História Contemporânea do Instituto Universitário de Lisboa, 2014 - Testemunho de Carlos de Matos Gomes (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Setembro de 2016:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo ao testemunho de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização na Guiné, como ele a viu, viveu e interpreta.
Teve o privilégio de pertencer ao núcleo fundador do MFA da Guiné, ofereceu-se para aquela comissão militar porque queria conhecer a política africana de Spínola. Interpreta o seu regresso a Lisboa, em fins de Julho de 1973 como o fim da continuidade militar, Spínola pretendia uma solução negociada, Marcello Caetano recusou. Dá uma interpretação singular à operação de reocupação do Cantanhez, "Grande Empresa", como um sinal de que Spínola queria deixar a Guiné mais ou menos como encontrou e é nesse exato momento que estalam as ofensivas do PAIGC na região de Guidage e de Guileje. Spínola não queria partilhar do que se avizinhava, a retração do dispositivo até se chegar a um fim iníquo.
E o que se passou a seguir ao 26 de Abril, observa ele, denota o estado de alma das nossas tropas.

Um abraço do
Mário


A descolonização da Guiné: testemunho de Carlos de Matos Gomes (2)

Beja Santos

Na sequência do texto anterior, voltamos a abordar uma obra que se intitula “Vozes de Abril na Descolonização”, a organização é de Ana Mouta Faria e Jorge Martins e os entrevistados dos três teatros de operações foram Carlos de Matos Gomes, José Villalobos Filipe e Nuno Lousada, edição do CEHC – Centro de Estudos de História Contemporânea do Instituto Universitário de Lisboa, 2014. O objetivo da obra é de contribuir para o conhecimento sobre a descolonização portuguesa na sua fase final, e resulta de um projeto de investigação sobre a participação dos militares portugueses na descolonização.

O testemunho de Carlos de Matos Gomes abre com o seu perfil militar, descreve a sua preparação e as memórias daquele mosaico étnico e das contradições em que por vezes se desenvolviam os apoiantes de um lado e do outro. Fez parte do Batalhão de Comandos Africanos e ao mesmo tempo participou na génese do MFA na Guiné. Estamos agora nos acontecimentos históricos de 26 de Abril de 1974. O golpe militar em Lisboa fora bem-sucedido. À revelia de qualquer decisão do novo poder constituído, o MFA na Guiné depõe o Governador, nomeia um Encarregado de Governo, foram estabelecidos contactos com quadros do PAIGC e decidiram para as operações militares por sua conta. E assumiram decisões políticas que se vieram revelar contraditórias ao pensamento de Spínola:
“Fomos nós que dissemos que o nosso interlocutor era apenas o PAIGC, não havia cá mais outros movimentos. A partir daí, fomos nós que estabelecemos também a ação militar que devia ser adotada. Na Guiné, os oficias que não quiseram entrar neste processo, vieram-se embora”.
O MFA na Guiné não iludia a grande questão do exército africano, Comandos, Fuzileiros, Companhias de Caçadores, Pelotões, Unidades de Milícias, ao todo 12 mil homens. Não se sentiam derrotados no campo de batalha. Confiaram no que ficou exarado no acordo de Argel. Carlos de Matos Gomes insiste que foram dadas todas as oportunidades a esses militares para vir para Portugal. E observa:
“O que é curioso é que não optaram por isso e a mim não me surpreendeu, porque sabia que mesmo no Batalhão de Comandos, 60 ou 70% daquela gente tinha contactos com pessoas do PAIGC”.
Pensou-se que se ia dar um processo de integração. No seu testemunho, e perante o processo trágico dos fuzilamentos e humilhações a que foram sujeitos os Comandos, interpreta a brutalidade como uma fuga para frente da elite dirigente do PAIGC. “Esta elite vai encontrar sempre um inimigo externo para justificar as lutas pelo poder interno. Estes homens, os africanos combatentes das forças portuguesas, serviram de bode expiatório às lutas que sempre se travaram entre este grupo dos cabo-verdianos e dos guinéus”. Consumou-se uma tragédia:
“O Batalhão de Comandos tinha à volta de 900 homens, dois terços desapareceram. Não há, na Guiné, nenhum oficial nem quase nenhum sargento que tenha ficado”.

Capitão Carlos Matos Gomes, à esquerda, e Major Raul Folques. Bissau, 10 de Julho de 1973, na Recepção oferecida pelo Governador, General António de Spínola, depois de terem recebido a Cruz de Guerra de 1.ª Classe por feitos em combate.

Espraia-se sobre o assassinato de Amílcar Cabral e observa:
“Aquilo que nós sabíamos é que havia um tipo que para nós era perigosíssimo que assumisse o controlo do PAIGC, que era Nino Vieira. Porque ele iria radicalizar a ação militar, iria colocar a guerra pelo lado do PAIGC na guerra pura, que era aquilo que nós não desejávamos. Sabíamos que Nino Vieira iria etnicizar ainda mais a guerra”.
Vitorioso o golpe de 25 e 26 de Abril, houve múltiplas respostas em direção à paz, houve Unidades que estabeleceram prontamente contacto; muitos intermediários das forças africanas e outros foram trazendo elementos do PAIGC, foi a partir desta rede familiar e étnica que começou a esbater a desconfiança. E, curiosamente, vão-se encontrando antigos colegas que tinham estudado em Portugal. Cumprimentam-se efusivamente, as negociações correm em degelo.

Carlos Matos Gomes

As interpretações de Carlos de Matos Gomes são uma achega valiosa, partem de um prestigiado militar que no comando de tropa de elite assistiu à evolução da guerra para um patamar para a qual a resposta portuguesa era manifestamente insuficiente. Ele ajuíza que todo o esforço da chamada “reocupação do Cantanhez”, uma grande operação no sul da Guiné, numa área em pleno confronto com o PAIGC correspondia a uma mensagem que o General Spínola estava a dar de que se preparava para partir, operação muito bem urdida, com muitos atos de heroísmo, mas simbolizava que Spínola ia deixar a Guiné mais ou menos como a tinha encontrado e comenta:
“O agravamento da situação que se ai dar depois, em Maio de 1973, é já uma constatação de que todo o edifício que o General Spínola tinha arquitetado estava a ruir. A ruir, porque não tinha nenhum apoio político em Portugal. É um período também muito rico em termos de politização de todos os militares na medida em que o General Spínola tinha procurado sempre ganhar as populações. Já tentara ganhar populações como os Beafadas, no Sul de Bissau. Então, o PAIGC, com um grande ataque, vai revelar as fragilidades que esta manobra tinha, porque não era apoiada politicamente. O mês de Maio de 1973 foi revelador da incapacidade de, já não digo uma vitória militar, mas de sustentar uma situação apenas pelas forças militares. Maio de 1973 foi decisivo, em termos de consciencialização política, para os militares da Guiné, porque fomos pela primeira vez confrontados com o derrube do mito de Spínola”.

Atenda-se que este testemunho foi publicado anteriormente ao livro do Coronel Jorge Sales Golias, documento que já foi aqui apresentado. Trata-se de um testemunho em grande angular, que se põe mesmo em causa a viabilidade da Guiné e onde fica igualmente esclarecido que o 26 de Abril envolveu o núcleo principal das Forças Armadas e quase espontaneamente a generalidade das Unidades aspirou ao fim da guerra. O grande equívoco (para alguns) que a guerra tinha continuidade e motivação, caiu assim por terra.
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de setembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16526: Notas de leitura (883): “Vozes de Abril na Descolonização”, a organização é de Ana Mouta Faria e Jorge Martins, edição do CEHC – Centro de Estudos de História Contemporânea do Instituto Universitário de Lisboa, 2014 - Testemunho de Carlos de Matos Gomes (1) (Mário Beja Santos)

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