quarta-feira, 20 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11282: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (10): À volta de uma fotografia

1. Em mensagem do dia 15 de Março de 2013, o nosso camarada  Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, BissauBissorã e Mansabá, 1965/67), enviou-nos a sua décima "Carta de Amor e Guerra".


CARTAS DE AMOR E GUERRA

10 - À volta de uma fotografia

[Ao início da manhã do dia seguinte à chegada da CCaç 1419 a Bissorã, um grupo ruidoso de jovens mulheres oferecendo os seus serviços de lavagem de roupa “atacava” a “casa dos furriéis” (como era conhecida uma vivenda no centro da vila, “herança” da CCaç 816, segundo julgo).

De entre essas mulheres fixei-me numa que sobressaía pela beleza, pelos cuidados postos na sua apresentação física (magnífica), pela calma e segurança na atitude e pelo brilho do olhar, que me confundiu. E ela percebeu a minha confusão, tenho a certeza!

 “Apanhado”, fiquei à sua espera enquanto ela cirandava na conquista de clientes e me dirigia um olhar furtivo, de vez em quando, como que a dizer “já estás no papo, já tratamos do assunto”. Embevecido, fiquei à espera a apreciar aquele comportamento, típico de alguém que sabia dos efeitos do seu uso. E foi “tiro e queda” quando se me dirigiu. Caí logo, fizemos logo contrato. Com fotógrafo perto, ia lá eu perder uma imagem daquele momento com aquela beleza! E saiu esta foto (foto 1).

Não é a primeira vez que me refiro a esta menina-senhora de há 47 anos. Os seus serviços de lavadeira foram impecáveis, o nosso relacionamento foi magnífico. Passei bons momentos com ela, no seio da sua família. “Honni soit qui mal y pense”, preciso sempre de dizer, pois o nosso relacionamento físico nunca ultrapassou as relações inerentes ao seu trabalho. Mas foi um relacionamento que me deixou boas lembranças.]

Foto 1: Bissorã, 24/10/1965. Linda, a minha lavadeira! 
© Manuel Joaquim 

Lisboa, 9-Dez. 1965

Queridito: 
É muito gira é, a tua lavadeira. Sabes escolher o que te convém e atrevo-me a afirmar que não te envergonharás de a teres a teu lado. Serve-te, não é verdade? Óptimo. 
Como facilmente depreenderás, vi a foto que enviaste à tua Mãe.[foto 1] (…), sem querer, instintivamente, senti um certo mal-estar como se, nesse momento, tudo me fugisse ao olhar-vos. 
Agora (…) reconheço, sem sombra de dúvida, que foi uma reacção descabida, uma reacção sem sentido que valha justificação. Em suma, uma reacção estúpida e indigna de mim. Mesmo assim, não deixo passar a oportunidade de te expor os meus pontos de vista sobre o assunto. 
Por que não enviaste à tua D. um exemplar da foto que enviaste à tua Mãe? Dirás que sou parvinha, que estou com ciúmes e a dar tanta importância ao que não a merece. Sou ciumenta mas posso perfeitamente afirmar que o que senti não foi de modo nenhum ciúme. (…). Senti-me um pouco desgostosa ao ser apanhada de chofre e por atribuir o teu procedimento ao facto de já não confiares em mim, de duvidares sobre qual seria a minha reacção perante a foto. Temias a minha reacção. Foi isso, meu querido?! 
Mas ouve-me, (…). Escuta-me e depois dirás se tenho ou não razão para ficar magoada. 
Ora, se não há nada de anormal, e eu acredito nisso, em contratares uma mulher para te tratar das roupas e do mais que te for necessário, em aproveitares uns momentos de folga para tirares umas fotografias, com que intenção me quiseste ocultar esse facto? (…).
Eu poderia agora, como medida de precaução, ficar de pé atrás, (…). Segundo minha opinião deverias também ter-me confiado essa “pose”. 
Há uma atenuante que ainda formulo para tornar mais branda, menos injusta a tua atitude. Dar-se-ia o caso de teres assim procedido por quereres evitar-me possíveis sofrimentos (…)? 
Mesmo assim, a minha conclusão ao analisar o teu procedimento foi esta: falta de confiança na tua N. Não sabias qual seria a minha reacção e, então, vá de ocultares-me o que poderia induzir-me em erro, levar-me a magicar, a imaginar algo com sentido completamente antagónico ao que a verdade representa. 
Espero e peço-te mesmo que nunca mais assim procedas. Por que não hei-de aceitar com agrado a tua presença junto de uma pretinha? Tanto mais que ela te é indispensável enquanto aí te retiverem! Aceito com certeza, meu amorzito. 
Há sempre uma certa tendência para exagerarmos certos factos, para procurar dar-lhes até um cunho de “maldade” quando se descobre que estão a correr em segredo. Isso desperta a nossa curiosidade e a nossa tendência para uma má interpretação. (…). 
E agora que me justifiquei, vamos pôr uma pedra sobre o assunto exposto. Não é motivo que valha a nossa discussão. 

(… …. ……) 

Para ti, os beijos e abraços que quereria dar-te neste momento. 
Sou a tua N. 


Bissorã, 12dez65 

(…) recebi hoje a tua última carta que, (…), provocou (…) um certo sorriso “malicioso” mas, ao mesmo tempo, também muito carinhoso. 
Com que então ficaste aborrecidita com uma fotografia toda pinocas, (…). 
(…) mandei-a para a minha Mãe, precisamente porque pensei que ela se iria divertir muito mais do que tu. E parece-me que foi isto mesmo que aconteceu. 

Começas por afirmar que não é questão de ciúmes mas, (…), cais em contradição com o que dizes à frente. Se calhar sou capaz de ficar por aqui a criar garotinhos mulatos. É que eu, sabes, gosto tanto da Guiné, adoro a Guiné, vai ser a minha futura pátria! 

Gostava de saber, minha querida, que género de controvérsias o caso poderia vir a provocar entre nós. (…). Julgas então que não te enviei a fotografia por pensar que ias ficar tão magoada que daqui poderia haver um rompimento dos laços que nos unem? 
(…). 
(…) afirmares a hipótese de ficares de pé atrás, como medida de precaução, (…) é “do arco da velha”. Oh D.! Não procures atenuantes para a minha atitude. Não te mandei uma foto igual porque não tinha mais nenhuma. Só isto. Como nem sequer pensei em enviar-ta. A que tinha estava destinada à minha Mãe. Mais nada. 
(… … …) 
Bem, como também afirmas, e eu corroboro essa tua afirmação, não sei onde está a importância do caso. Mas se aquilo que disse te levar a qualquer aflição, (…) peço-te encarecidamente que não te cales e que exponhas o que te aflige, (…). 
(… … ….). 
(…).Os beijos e abraços de sempre do teu M.

Foto 2: Mansoa, 1970, Lavadeiras.
Bela foto do camarada desta Tabanca Grande, César Dias, retirada com a devida vénia de http://bcac2885.com.sapo.pt/index.html
____________

Nota do editor:

Vd. último poste da série de 13 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11247: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (9): Saída de Bissau para Bissorã

3 comentários:

Anónimo disse...

E eu acredito mesmo. Então serviço de lavadeira, só para lavar...E não passava a ferro? Abraços Manuel Joaquim.
De Veríssimo Ferreira

Cherno Baldé disse...

Caro amigo Manuel Joaquim,

Mesmo gira, a tua lavadeira e por outro lado a foto tem valor etnografico.

Se observarem bem o seu penteado verao que tem fiadas grossas de cabelo tranchadas de cima para baixo, terminando em pontinhas mais pequenas, e (este é o pormenor mais importante) da fronte saiem (de cima para baixo) duas linhas de cabelo em tranchas mais finas, trata-se de um penteado tipicamente Balanta.

Na altura em que esta imagem foi captada, as mulheres dos diferentes grupos etnicos da Guiné usavam penteados que as distinguiam das outras mulheres, da mesma forma que no interior de cada grupo podia-se distinguir uma menina (mulher solteira) de uma mulher casada, através dos seus penteados.

Com um abraco amigo,

Cherno Baldé

Bispo1419 disse...

Olá, Cherno!
Muito obrigado pela achega etnográfica.
Um grande abraço
Manuel Joaquim