Queridos amigos,
Estamos quase a chegar ao fim desta coletânea de textos sobre a história dos Mandingas, suas lendas e canções, no fundo reproduz-se um conjunto de textos que foram editados pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa.
E esta canção de Cherno Rachide é uma pequena joia de que a Guiné se deve orgulhar.
Um abraço do
Mário
A canção de Cherno Rachide
Beja Santos
Foi minha primeira intenção limitar este pequeno trabalho às 15 lendas que antecedem. Elas tentam esclarecer algumas facetas da mentalidade dos povos Fula e Mandinga na época das lutas tribais.
O símbolo mais válido dessa época era o “judeu”, o trovar que cantava o heroísmo, a valentia e a fidelidade, ao mesmo tempo que vituperava a traição, a cobardia e a fraqueza.
O trovador, na véspera das batalhas, tocava as canções dedicadas a cada um dos guerreiros, convidando-os a declararem as proezas que se propunham cometer no dia seguinte. No momento dos combates, elogiava os intemeratos e insultava os indecisos, sempre tocando, sempre cantando, e levava assim os combatentes à morte, quase diríamos alegremente, arrebatando-os e enlouquecendo-os.
Os tempos mudaram.
O “judeu” cedeu o seu lugar ao educador e, como se trata de povos islamizados, em que a religião domina todos os aspetos da vida das sociedades, o económico como o político, o social como o educativo, o educador é simultaneamente o teólogo.
Se procura dar uma ideia da mentalidade antiga, dominada pelo trovador, é natural que pretenda agora mostrar a mentalidade nova, plasmada pelo “cherno”, o Fula, ou pelo “caramó” Mandinga.
Por isso achei necessário reproduzir aqui um artigo intitulado “A canção de Cherno Rachide”, que publiquei em 10 de Dezembro de 1961, num simpático jornalzinho de Bissau, “O Arauto”.
Ei-lo:
- “Tive há dias ocasião de conhecer uma das mais interessantes personalidades africanas desta Província. O meu colega de Fulacunda falara-me em termos de muito interesse de um educador Fula cuja fama e influência, dizia ele, seriam imensas em todo o Sul da Guiné portuguesa e muito para além da nossa fronteira.
Fomos a Aldeia Formosa, onde reside Cherno Rachide, o nosso homem, e confesso que no primeiro contacto ele me desconcertou.
No físico não tem nada da debilidade ascética de certos letrados muçulmanos nem da obesidade de alguns outros, originada aquela nos exagerados jejuns e esta por uma vida demasiado sedentária. Ele, pelo contrário, tem mais o aspeto do trabalhador manual. Robusto sem ser gordo, realiza o equilíbrio de uma mente sã habitando um corpo são.
Nas maneiras e no vestuário, foge igualmente à regra.
Nenhuma pose nas atitudes nem presunção no trajar. A longa cabaia era já bastante usada e enquanto durou a nossa conversa manteve-se descalço. Aliás, preparava-se para ir com os seus alunos cultivar o campo que os sustenta a todos. Este facto mostra que não se entrega a um marabutismo parasitário, que é algo corrente. Dias depois, disse-me em Empada um saracolé nada pronto a elogiar os Fulas que o Cherno, contra a opinião dos seus familiares, que o desejariam ver confinado ao ensino religioso e literário, persiste em trabalhar pessoalmente a terra para que os alunos nunca tenham a falsa noção de que o labor físico é degradante e só é nobre a atividade intelectual.
Nos primeiros momentos da conversa, sente-se que Cherno Rachide se entrega cautelosamente a estudar as intenções e o caráter do seu interlocutor. Depois de ganhar certa confiança, anima-se e é então extraordinariamente vivo e simpático.
Mostrou conhecimentos profundos da história e da etnografia dos povos sudaneses e citou muitas das suas máximas favoritas.
Uma delas explica a reserva que habitualmente usa ao fazer um novo conhecimento.
Há três coisas – diz ele – de que um homem reto se arrepende imediatamente: praticar uma ação indigna, dar consideração a quem não a merece e conversar com um tolo.
Quando nos despedimos, manifestei-lhe o desejo de levar comigo, e como recordação da nossa conversa, algumas conversas por si escritas sobre o tema que preferisse.
Recebeu com visível satisfação o meu pedido e escreveu em carateres árabes (o que é vulgar entre Fulas e Mandigas) e em língua árabe (o que já não é comum) a letra de uma canção que compôs para os seus alunos.
É esta canção que vou reproduzir e peço ao leitor desculpa de o fazer em maus versos. Há, porém, uma razão que me leva a cometer semelhante imprudência.
A composição de Cherno Rachide tem ritmo na língua original e eu gostaria que ele, ao ouvi-la ler, notasse também na versão portuguesa alguma musicalidade.
Esperando que esta boa intenção me absolva inteiramente de meter foice numa seara que nunca foi minha, aqui deixo a canção:
Filhos amados, vosso pai Rachide
Uma regra de vida vos vai dar
Segui-a com rigor e não tereis
Nada que lastimar.
Raparigas, sabei que um homem espera
Encontrar na mulher três qualidades:
Respeito aos seus segredos, ao seu leito
E a todas as vontades.
A vós, rapazes, dou-vos um conselho
Que todo o sábio para si tomou
De outro, ainda mais sábio, Logomane,
Que outrora assim falou:
— Deves ter fé em Deus que tudo vê
E tudo pode acerca dos mortais
Trabalha com ardor e serás útil
A ti e aos demais.
— Estuda e elevarás a tua alma
Que os livros bons te podem ensinar
Muitas coisas formosas deste mundo
E a Deus agradar
— A palavra, o alimento e o sono
Como remédio deverás tomar:
O bastante p’ra que o corpo não sofra
Mas sem nunca abusar.
— A boca é uma e as orelhas duas
Isso te indica como proceder
Usa o ouvido mais do que o falar
E saberás viver.
— Em três partes o estômago divide
P’ra comida só uma reservar
As outras hão de ser bem necessárias
P’ra água e para o ar.
— A noite é grande e não deve ser gasta,
Do sol-posto à manhã, toda a dormir,
Destina parte dela à oração
Terás feliz porvir
— Deves casar p’ra nunca cobiçares
Mulher de outro. Não nego, o casamento
Traz desgosto profundo.
Mas se a fêmea procuras fora dele,
Em vez desse desgosto terás dois.
Neste e noutro mundo.
Meus filhos, quem seguir estes conselhos
No decurso da vida há de contar
Satisfações a esmo.
E maiores triunfos que o atleta
Que vença toda a gente nos torneios,
Pois vence-se a si mesmo.
Esta canção entoada diariamente pelos seus alunos define Cherno Rachide, o homem que se confessa profundamente grato ao governo da Província por haver possibilitado a realização do sonho da sua vida: a peregrinação a Meca.
Como português e como cristão, só me regozijo que lhe tenhamos dado tal alegria”
Bilhete postal da era colonial, mostra os pais de Braima Galissá
____________
Nota do editor:
Vd. postes anteriores da série de:
1 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11174: Notas de leitura (460): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (1) (Mário Beja Santos)
4 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11190: Notas de leitura (461): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (2) (Mário Beja Santos)
e
15 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11255: Notas de leitura (465): Texto policopiado e publicado pelo Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa - Ultramar (3) (Mário Beja Santos)
3 comentários:
Olá Mário,
Como é ?
O que aqui escreves é o Posfácio do livro Grandeza Africana - Lendas da Guiné Portuguesa - o Autor é Manuel Belchior.
Efectivamente está relacionado com a Mocidade Portuguesa (nunca estive ligado a ela mas, como todos os estudantes do nosso tempo tínhamos que pagar x? e passar pela Milícia depois dos 18anos).
O Prefácio do livro é do Major Carlos Gomes Bessa - Comissário Adjunto para o Ultramar da Moc. Portuguesa. Li agora.
Esta Canção já foi aqui publicada mas com menção do autor -Manuel Belchior - que me ofereceu em 1963 o livro.
Porque o ofereceu, porque tenho outros livros de África desse mesmo tempo etc, são assuntos de minha vida e não tem interesse para o Blogue. O que interessa e deve vir escrito é o nome do Autor.É normal aqui neste "espaço".
Abraço T.
Torcatal Figura, Estás a fazer uma tempestade num copo de água. Expliquei como este conjunto de folhas reapareceu nas arrumações que fiz aos meus armários, coisas de limpeza da reforma. No folheto não há uma só menção do autor. É facto que já fiz recensão dos “Contos Mandingas”, não de “Grandeza Africana”. Digo claramente que havia ali um sabor a Manuel Belchior. Reproduzem-se as capas do livro ao longo dos 4 textos. Como é que tu querias que eu desse como certo e seguro tratar-se do Manuel Belchior? Em que ponto é que violei os direitos de autor? Como podia eu adivinhar que o texto contido num velho folheto que só refere a Mocidade Portuguesa era do Manuel Belchior? Por favor, passa uma vista de olhos pelas recensões anteriores e respeitantes à cultura mandinga. Um abraço de um amigo que só te quer bem, Mário
Olá Amigos Torcato e Beja Santos
Tenho o livro que está esgotado e quando se encontra nos alfarrábios, estes pedem "couro e cabelo".
De facto o que o Torcato diz está correcto.
Este livro é muito procurado e querido pelos fulas, pelo menos, todos os meus amigos falam do livro e quando sabem que o tenho, pedem logo cópias.
Dos mandigas que conheço já não sinto tanto esse entusiasmo pelo livro.
Um abraço
Carlos Silva
Enviar um comentário