1. Sexagésimo episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:
DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 60
Era manhã, a maré estava a encher, cheirava um pouco a maresia e os barcos baloiçavam no cais de embarque. A ordem era todo o pessoal estar preparado, pois iam começar a embarcar, mas seguindo uma certa ordem, e como os do Comando do Cifra eram poucos, foi dos primeiros a embarcar. Quando o Cifra, com o saco ao ombro e a malita nas mãos, passava por algumas unidades, ao passar pela unidade onde estava o Curvas, alto e refilão, logo ouviu este dizer, alto e bom som:
- Os malandros são sempre os primeiros, tinha que ser!
No barco, o Cifra bebeu cerveja com o Setúbal e na primeira noite dormiu no convés, e só se lembra de acordar e ver umas luzes ao longe, pois já se encontrava no alto mar, de regresso a Portugal. De ver o Trinta e Seis a querer segurar o Curvas, alto e refilão, pois este agarrava pela camisa o empregado que estava encarregue do local onde vendiam cerveja e outros licores no barco, dizendo:
- Quero mais cerveja, filho da p...! Não vês esta medalha cruz guerra? Vou enfiá-la onde tu sabes e vou atirar-te ao mar, lá isso vou!
E mais tarde, o Trinta e Seis contou ao Cifra, rindo-se, um episódio que também fazia os outros rirem-se, que era o momento em que determinado coronel entregou as insígnias da campanha da Guiné ao Curvas, alto e refilão, e vendo-lhe a medalha cruz de guerra no peito, colocou-se na posição de sentido e fez-lhe a respectiva continência. E o Curvas, alto e refilão, dizia:
- Aqui até os coronéis me “batem a pala”, e lá em Portugal, vou carregar a caixa de engraxar sapatos, cheio de fome, sem ter onde dormir, desprezado por todos, eu até podia continuar, sendo um militar ou um polícia, mas não sei receber ordens, está dentro de mim, é mais forte do que eu!
No barco “Uíge”, o Cifra, dormia no terceiro piso, no porão, com camas improvisadas em madeira, parecidas com as que se usavam no aquartelamento de chão vermelho e arame farpado. Para usar o quarto de banho, tinham que subir as escadas, quase até ao convés. Muitos não o faziam e urinavam pelos cantos. Passados uns dias de alto mar, com o calor, era impossível descer uma dúzia de degraus para o porão. O cheiro pestilento era insuportável, por mais que lavassem e desinfectassem. Quase todos os militares dormiam no convés, a céu aberto.
No último dia de viagem, o Cifra despediu-se de todos os seus amigos, deu-lhes o seu endereço em Portugal, daquele grupo de amigos mais íntimos, no qual se incluía o Curvas, alto e refilão, o Setúbal, o Mister Hóstia, o Marafado, o Trinta e Seis e o furriel miliciano, porque o Pastilhas, o Arroz com Pão, e o sargento da messe vieram mais cedo umas semanas, talvez um mês, o Cifra não se recorda, todos queriam levar o Curvas, alto e refilão, para junto de si, para as suas aldeias, mas ele não queria ir com ninguém, excepto com o Trinta e Seis, e disse abraçado ao Cifra:
- Eu não tenho endereço em Portugal, para já vou com o Trinta e Seis, para a sua aldeia, que ele não me deixa ir para mais nenhum lado, e como sabes só recebo ordens dele. Veremos o que ele me arranja, depois, andarei por aí, tal como fazia antes, qualquer dia bato-te à porta.
Pela manhã, com quase todos os militares no convés do barco, começaram a ver umas nuvens ao longe. Passado um tempo, já não eram nuvens, mas sim terra. Era Portugal.
Entraram no rio Tejo, viram de perto o Forte do Bugio, foto em baixo, Cascais, Estoril, a ponte sobre o Tejo, já em fase de acabamento, e começaram a atracar no cais da Alfândega. Todos gritavam, faziam sinais, mostravam cartazes, tais como, “estou aqui, mãe”, “sou eu, o Zé”, “olá Évora, o Manel chegou”, “Isabel, anda pró meu colo”, “Pai, já cheguei”, e um que o Cifra se recorda, e era um pouco arrojado para a época, dizia assim: “P’ras Caldas, vou já, e em força”!
Todos queriam um lugar na borda do barco. O Cifra, empoleirado numa escada de corda e madeira, viu os primos de Lisboa, lá ao fundo, ela de lenço preto, amarrado à cabeça e ele com uns grandes óculos escuros e de bigode.
Sim eram eles.
Acenou, gesticulou com os braços, chamou por eles, com toda a força dos seus pulmões, fez tudo o que lhe era possível, mas nada, não o viam. Só em terra, já com o saco do exército às costas e a mala de papelão e fibra nos cantos, amarrada com uma corda, é que o Cifra correu para os primos de Lisboa, que estavam lá, banhados em lágrimas, pensando que o To d’Agar não tinha regressado a Portugal.
Ainda no cais da Alfândega, o comandante veio cumprimentar e despedir-se de todos os militares que faziam parte da sua unidade militar. Ao cumprimentar o Cifra, parou, olhou-o nos olhos e disse:
- És um bom homem, gostava de continuar a ter-te sobre o meu comando, desejo-te as maiores felicidades pela tua vida fora. Enquanto for vivo e necessitares de mim para alguma coisa, que entendas que posso ser útil, por favor contacta-me. Adeus, oh Cifra.
Depois de ouvir estas palavras, o Cifra abraçou-o e não pode conter uma lágrima.
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 19 DE MARÇO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11277: Do Ninho D'Águia até África (59): A saída de Mansoa com destino ao cais de embarque (Tony Borié)
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