quarta-feira, 14 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1593: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (8): A. Marques Lopes


1. Post do A. Marques Lopes > Ir ou desertar

Caro Luís:

Pensei, primeiramente, não entrar nesta discussão da aceitação, ou não, de desertores na nossa tertúlia (1). Mas entro porque me parece que estamos a falar calmos e serenos, cada um com as suas ideias, o que é natural e bom que seja. E eu penso assim:

(i) Os 2.179 mortos na Guiné (centenas dos quais nem de caixão regressaram), os oficialmente reconhecidos como tal (houve mais...), não foram para lá simbolicamente nem eram filhos de reis - sabemos, aliás, que a maioria dos nossos reis da altura nem sequer por uma questão simbólica quiseram enviar os seus filhos.

Todos eles, e nós que regressámos em cima de duas pernas - ou numa só ou em cima de dois cotos - e pudémos abraçar os nossos queridos com os dois braços - ou com um só ou com dois cotos - e conseguimos rever a nossa terra - ou cheirá-la apenas, porque nos tiraram os olhos -, todos nós e todos esses mortos fomos para lá por imposição de serviço. Houve quem terá ido galhardamente para cumprir um dever sagrado, mas a grande maioria foi com o coração apertado de receios e afogado nas lágrimas dos pais e das mulheres, todos obrigados ou para cumprir um dever profissional. O meu grande respeito e consideração por todos.

Os casos que se falam de aproveitamento oportunista da guerra, da guerra no ar condicionado, não podem ser generalizados, meu caro amigo David Guimarães (2), e fazer esquecer os sacrifícios próprios e os dos familiares dos militares profissionais que também deram o litro na guerra. Todos sabemos do Pedro Lauret e do Lema Santos. Os meus respeitos também por eles.

Creio que é todo este panorama que nos faz estar aqui unidos nesta tertúlia, num só sentido de troca de vivências, na recordação de factos com um fundo comum, na recordação de amigos, de dificuldades partilhadas.

(ii) E isto é política, a discussão da vida naquela nossa cidade distante. Mas, mesmo quando lá estávamos, apercebo-me que a maioria de nós já punha em dúvida ou não estava já de acordo com a vivência nela. Já púnhamos em causa a justeza e os objectivos de quem governava a cidade (3) . Começámos a reflectir politicamente, e houve quem decidisse tomar os caminhos que as suas reflexões lhe indicavam. Desertaram, como já tinham desertado outros antes de partir, bastantes mais, porque já tinham antecipadamente reflectido sobre a falta de justeza e maus objectivos dos governantes.

Houve também os que desertaram por medo. E quem, operacional, não teve medo na Guiné? Não posso por em causa os desertores. Até porque, confesso, essa ideia também passou pela minha cabeça quando estava deitado numa cama do HMP. Só que havia outra opção, mais dolorosa e mais arriscada, sem dúvida, e que era continuar lá junto de todos, partilhar e influenciar a vida de todos, falar com todos sobre a falta de justeza da guerra e dos seus objectivos, criando condições para a aceitação da mudança. Foi o que pensei, eu e muitos outros. Generalizando, agora, todos tivémos uma ideia comum: acabar e voltar vivos.

(iii) E a questão fulcral desta discussão: penso que não faz sentido a presença de desertores neste blogue. Não por serem desertores e escorraçá-los por isso, mas unicamente porque acho que não podem minimamente contribuir nesta troca de experiências que só nós vivemos. Não poderão dizer-me: é verdade porque eu também conheci os fulas, os mandingas, os balantas... lembro-me bem porque eu também estive lá... ou também passei por isso... ou não foi bem assim... ou o Pilão, ah!...
Todos nos percebemos porque vivemos uma experiência comum.

Abraços
A. Marques Lopes
Ex-Alf Mil At Inf (Hoje Cor DFA, reformado)
CART 1690 (Geba) / CCAÇ 3 (Barro)
1967/69
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema Santos

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1587: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (3): Vitor Junqueira / Sousa da Castro

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1588: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (4): Torcato Mendonça / Mário Bravo

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha

13 de Março de 2007 >
Guiné 63/74 - P1591: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (6): Pedro Lauret

14 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1592: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (7): João Bonifácio / Paulo Raposo / J.L. Vacas de Carvalho

(2) Vd. posts de:

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha

13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1590: O sacrifício dos oficiais do quadro permanente (Pedro Lauret)

(3) Recorde-se a etimologia da palavra Metrópole: do grego metropolis, que significava cidade-mãe, metrópole, cidade natal > metra (matriz, útero, ventre) + polis (cidade).

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