1. Comentário do Pedro Lauret, Capitão de Mar e Guerra, na reforma, antigo imediato do NRP Orion, Guiné (1971/73)
Caros Camaradas e Companheiros,
O problema dos desertores tem sido colocado recorrentemente na nossa tertúlia e, de forma quase unânime, a opção pela deserção tem sido condenada (1).
Nas observações que se seguem vou colocar num mesmo saco os desertores e os refractários. Sei bem que juridicamente constituem actos diferenciados e com punições distintas, no entanto no âmbito da nossa discussão penso não constituir diferença ética assinalável a não apresentação para o cumprimento do serviço militar e o acto de deixar ilegalmente o mesmo serviço militar após a incorporação. Excluo desta simplificação os desertores em teatro de operações que passam para o inimigo, situação, essa sim, de contornos claramente diferentes e que não são abrangidos pelas observações que abaixo me permito fazer.
Em primeiro lugar gostaria de afirmar que considero que o problema é complexo e que os motivos para a deserção são muito variados:
(i) Nalguns casos podem inserir-se numa lógica de medo e cobardia;
(ii) Noutros inserem-se em opções egoístas de reconstrução de vida noutros países, fugindo à guerra, normalmente com recursos financeiros de suporte apreciáveis, e fazendo-se passar, oportunisticamente, por opositores à guerra e lutadores políticos.
Claro que critico estas opções.
Analisemos agora alguns enquadramentos da nossa realidade nas décadas de 60 e 70.
Portugal nos anos 50 e 60 crescera e desenvolvera a sua indústria num modelo baseado em mão-de-obra barata e pouco qualificada, numa lógica de substituição de importações e não desenvolvendo uma estratégia exportadora.
A Europa, por seu turno, encontrava-se em pleno período de ouro de desenvolvimento necessitando de importar mão-de-obra.
A guerra vai impor um orçamento com 40% da despesa dedicada à defesa e com a necessidade de aquisições múltiplas ao estrangeiro. Havia que encontrar mecanismos de entrada de divisas para equilibrar a balança comercial. A emigração surge como solução.
Gravura (belísssima, de resto, dentro da estética do Estado Novo... ) do famoso Livro da Terceira Classe, Ed. Domingos Barreira, 4ª Ed., 1958, por onde todos estudámos e aprendemos a amar a Pátria. Era, no entanto, um manual profundamente ideológico... servindo o propósito de um Estado, sem legitimidade democrática, de educar o povo, do berço à tumba....
Foto: Luís Graça ( 2007).
O Estado Novo desenvolve uma política de difícil equilíbrio entre a necessidade de ter jovens disponíveis para o serviço militar por 4 anos, e a necessidade de exportar mão-de-obra.
Este equilíbrio vai ocasionar que 18% de mancebos faltem à incorporação, um número que no seu total oscila entre os 150 000 e 200 000.
Muitos destes jovens, do interior, em situações de extrema pobreza, acabam por ser, directa ou indirectamente aliciados para emigrarem com o beneplácito das autoridades.
Meditemos: como foi possível, num estado policial um tão elevado número de emigrantes clandestinos?
Coloco à nossa tertúlia a seguinte questão: serão estes nossos compatriotas merecedores da nossa critica e julgamento? Por mim, decididamente não.
Podemos ainda colocar o problema da deserção noutro nível. A legitimidade da guerra e a legitimidade do poder.
O problema da legitimidade do poder é um problema filosófico antigo e difícil. Não pretendo aqui teorizar sobre a matéria, até porque não é área da minha especialidade, o que não me impede de não ter dúvidas em qualificar o Estado Novo como um poder ilegítimo. Emergiu de um golpe de estado e nunca desencadeou mecanismos da sua própria legitimação. Assim se manteve durante quase cinco décadas. Para mim este é um facto evidente.
O outro problema que se coloca é o da legitimidade da guerra. Todos fomos para a guerra em nome de uma nação pluriterritorial e pluricontinental. Um povo único, do Minho a Timor, como nos ensinaram desde os bancos da escola. Esta construção é falsa e não me vou alongar na sua demonstração. Penso que basta analisar o Acto Colonial de 1933 e a sua evolução (1950-1961) para nos apercebermos da mentira e da hipocrisia que aquela formulação significava.
Por outro lado o direito internacional, através da carta das Nações Unidas reconhecia desde 1945 o direito dos povos a se autodeterminarem.
Por estes motivos para mim a guerra colonial era ilegítima e injusta, pelo que era legítima a deserção.
Quando em 1971 embarco para a Guiné já era para mim clara esta visão. Decidi ir, pois considerei que servia melhor o meu País indo que desertando.
Este é um pequeno contributo numa matéria difícil. Se a tertúlia considerar, útil poderei voltar ao tema.
Com um abraço amigo
Pedro Lauret
__________
Nota de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:
3 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1560: Questões politicamente (in)correctas (25): O ex-fuzileiro naval António Pinto, meu camarada desertor (João Tunes)
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1585: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (1): Carlos Vinhal / Joaquim Mexia Alves
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1586: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (2): Lema Santos
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1587: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (3): Vitor Junqueira / Sousa da Castro
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1588: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (4): Torcato Mendonça / Mário Bravo
13 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1589: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (5): David Guimarães / António Rosinha
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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