sábado, 17 de março de 2007

Guiné 63/74 - P1604: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (12): J. L. Mendes Gomes

Guiné > Região de Tombali > Catió > CCAÇ 728 (Catió, 1964/66) (1) > 1965 > Mulher Grande de Catió.

Foto: © J. L. Mendes Gomes (2007). Direitos reservados.



1. Mensagem do Joaquim Luís Mendes Gomes:

Assunto - Ex-desertores... tertulianos ou não?...

Meu caríssimo Luís:

Antes de mais, os meus cumprimentos de chegada. Regressei de Berlim. Cheguei bem. Começava a entrar em sofrimento, com saudades deste cantinho nosso solarengo e soalheiro. Somos uns pobretas... muito ricos. Chegou de frio, de céu baixo, pardacento e uma língua intragável.

Aqui estou. Com acesso à Net quando quero. Li, reli o teu/nosso maravilhoso blogue. Pus-me a par das brisas, tempestades e morteiradas...que por ele vão.

A daquela mini-polémica, entre marinheiros e infantes, por causa da fogachada da Orion ou da Hydra, sobre a minha CCAÇ 728... Podia ter sido mais trágica, mas deu para jamais esquecer. Tiro curvo?...Quem é que o disse?...Bem razante, lá de cima até cá baixo. Não questiono que tenha passado despercebida... Tanta coisa grave, muito grave passava em branco... Estranho que tudo isto não conste nos arquivos militares!...

Dei uma espreitadela na Internet, sobre a Lista de todas as Operações Militares, sobretudo as da Guiné que são as que conheci. Fiquei de boca aberta com o elenco de uma meis dúzia, apenas... Que é das outras?... Que andámos nós todos a fazer aqueles anos todos- pareceram séculos... de pesadelo - a fazer nas Áfricas? À caça de gambuzinos?...ou à pesca de sardinha?...

O nosso País desabou, não sei se se vai levantar...Cá por mim, espero e faço tudo para que sim.

Gostei e agradeço o teu empenho em pôres lá os meus textos sobre o dia a dia de Catió (1). Como esperava, já reencontrei as preciosas fotos do meu tempo. Com ajuda da expert daqui ao lado, e que foi como minha Madrinha de guerra... Desde o Cachil/Como, que tudo começou... já lá vão quarenta e três anos...Vai ser possível mandar-te as mais representativas...

E agora, vou meter o meu bico na vexata quaestio, em epígrafe (2)...É só a minha opinião, respeitadora de quem não a partilhe, como é óbvio.

Quando, logo nos começos, me deparei com as primeiras linhas da história do Medeiros Ferreira, confesso que a minha primeira reacção foi negativa, de rejeição, dum magoado... por reparar. E fiquei à espera do que se viria a dizer, entre nós. Já esperava que esta questão não fosse pacífica... Não vou ser original nem dizer mais do que já foi dito, porque não sou capaz de ver melhor.

Compreendo que quem partiu de cá, foi arriscar a vida, perder e ganhar... dos melhores anos da juventude, viu tombar a seu lado amigos da alma e guardas do corpo e coração...Pela Pátria, que somos todos nós, os de antes, de durante e do depois... Uns com amor, outros com sentido de dever, outros porque não foram capazes de dizer não... De todos estes, os últimos, penso, foram os em menor número...

Quem fugiu, jamais pode descalçar a nódoa da traição... Pelo menos para com os seus camaradas de destino: fugiram, deixaram-nos para trás. Ninguém em perigo ou sofrimento gosta de ficar esquecido... e para trás... Por isso a reacção de rejeição é justa, legítima e muito humana. Penso eu. Se já não há Pátria, com este sentido solidário, andamos todos a fazer figuras de urso...ou de macacos. O País não passa duma confusa sociedade anónima de irresponsabilidade ilimitada... Preferível seria a selva...

Mas, logo depois do 25 de abril, durante aqueles turbulentos tempos que aqui vivemos, abertas as portas para quem quis voltar, aí vieram eles...lá de Paris, da Suiça e sei lá donde. Com luzentes canudos universitários e toda a escola que lá tiraram...Uns próximos, outros próximos dos mais próximos das figuras ou figurões da proa... Foi vê-los a trepar, na escada escancarada da política, passando por cima de tudo e todos, nas escolas, nos empregos... subir...subir, como balões.

Escarneceram e fomentaram o desprezo por nós, ex-combatentes, como uns coitaditos...sem tomates, como os seus, deles, claro.

Que fizeram esses, especialmente, os que se guindaram às cadeiras do poder...nas universidades, nas empresas, em São Bento, por nós?... Que andam a fazer os seus herdeiros e bastardos?...

Durante muitos anos, os ex-combatentes não tinham uma só lápide nem de ardósia ou monumentos em honra dos seus mortos!...Só mais tarde, apareceu aquele muro aproveitado das paredes de outro vetusto monumento, mais parece o muro dum cemitério (onde até as letras de tinta d'água, se foram ... à chuva e ao sol... em tantos nomes...) com um lago sem cisnes e duas guaritas descabeladas... Alguma vez aquela amostra de mau gosto tem a estatura, a dignidade, do que se propõe e que é devido?...

Creio bem que irá ser nos corações dos nossos netos, ou seus filhos, que vai nascer a verdadeira chama do carinho e da gratidão pelo que fizeram seus avós...

Algum dos desertores já nos brindou, os da Tertúlia, com algum gesto ou palavra de simpatia?... Conhecendo-os eu como conheço, estou mesmo a vê-los a rir às gargalhadas da fogueira que para aqui fazemos... Por isso, penso que venham, entrem na tertúlia, mas com pedidos sinceros de desculpa... Até lá, cada um use o boné que escolheu...

Aqui fica a minha colherada. Sincera e respeitosa. Para que conste. Se quiserem mais, passem no blog... bico de pato.

Um abraço enorme do tamanho da Terra para Ti e toda caserna.

JMendesGomes
Ex- Alf Mil
CCAÇ 728 (Catió, 1964/66)

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de:

11 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1582: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (9): O fascínio africano da terra e das gentes (fotos de Vitor Condeço)

8 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1502: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (8): Com Bacar Jaló, no Cantanhez, a apanhar com o fogo da Marinha

22 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1455: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (7): O Sr. Brandão, de Ganjolá, aliás, de Arouca, e a Sra. Sexta-Feira

8 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1411: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (6): Por fim, o capitão...definitivo

11 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1359: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (5): Baptismo de fogo a 12 km de Cufar

1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1330: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (4): Bissau-Bolama-Como, dois dias de viagem em LDG

20 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1297: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (3): Do navio Timor ao Quartel de Santa Luzia

2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1236: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (2): Do Alentejo à África: do meu tenente ao nosso cabo

20 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1194: Crónica de um Palmeirim de Catió (Mendes Gomes, CCAÇ 728) (1): Os canários, de caqui amarelo

(2) Vd. último post sobre a questão dos desertores:

16 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1599: Debates da nossa tertúlia (I): Nós e os desertores (11): Paulo Salgado

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