sábado, 2 de março de 2013

Guiné 63/74 - P11180: Do Ninho D'Águia até África (55): O fim aproximava-se, mas havia desespero (Tony Borié)





1. Quinquagésimo quinto episódio da série "Do Ninho de D'Águia até África", de autoria do nosso camarada Tony Borié (ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66), iniciada no Poste P10177:




DO NINHO D'ÁGUIA ATÉ ÁFRICA - 55


O mosquiteiro, que se usava sobre a cama, já estava roto e cheio de marcas de sangue seco dos mosquitos mortos, que quando vivos, faziam uma zoeira na área das orelhas, e acordavam o Cifra, as picadelas, não produziam qualquer efeito. As botas estavam rotas e gastas, tinha um par delas melhor, que estava a guardar para o embarque, pois queria aparecer aos primos de Lisboa, limpo e com alguma dignidade.

O Cifra estava a passar por uma fase difícil, tinha pensamentos arrepiantes, algumas vezes quando ao final do dia vinha até à ponte, olhava a água, principalmente na maré cheia, parece que ouvia uma voz a chamá-lo, a convidá-lo a mergulhar nessa mesma água, turva e cheia de lama, nesse momento, tirava o cigarro da boca, atiráva-o para a água e via-o desaparecer, num turvilhão sujo, com espuma e alguns pedaços de ervas secas, que iam com destino ao mar do oceano Atlântico, talvez indicando-lhe o caminho da Europa, onde estava a sua aldeia do vale do Ninho d’Águia, nessa altura, uma força interior, fazia-o olhar em outra direcção e fugia, correndo para longe da ponte, em direcção ao aquartelamento, onde aparecia angustiado, e sem falar a ninguém ia deitarse, encolhido dentro do mosquiteiro e olhava os buracos desse mesmo mosquiteiro, com medo que alguém lá entrasse e o fosse levar para junto daquele turvilhão de água suja, com ervas secas, que iam com direcção ao oceano Atlântico.

Esta era uma fase da sua estadia em cenário de guerra, em que andava muito desmoralizado, já não podia ver à sua frente o café preto sem açúcar, que todas as manhãs o “Arroz com pão”, o tal cabo do rancho, lhe dava, e ele bebia. Ao decifrar uma mensagem, denunciando a morte de militares em combate, ficava nervoso, tremia, saía fora do centro cripto, olhava o horizonte, para onde pensava ser o lado de Portugal, e começava a chorar, deprimido.

Falava pouco, e só quando era preciso. Passava muito tempo com o seu macaco, foto em cima, para quem já tinha arranjado novo dono, e que já o tratava algumas vezes. Por vezes irritava-se com o animal, que logo ficava com um ar triste, e vinha lamber-lhe as mãos, e olhava para os olhos do Cifra, de diferente ângulos, como se fosse um ser humano, e percebesse a angústia do Cifra.


Escrevia algumas frases de revolta, numa folha de papel no centro cripto, lia essas frases, e rasgava o papel, atirando esse papel para uma caixa de cartão que estava num canto, onde se colocava algumas fitas do código de mensagens decifradas e que se queimavam ao final do dia, ao lado do cabanal onde se fazia a limpeza das armas, depois vinha a essa caixa, e ia rasgar outra vez, tudo em pedacinhos mais pequenos.

Não podia manter conversação com ninguém, pois se o contrariassem, argumentava, e não procurava quem tinha razão.

Ele é que estava sempre certo.

Os colegas com o mesmo tempo de província, como era o caso do Setubal, ou do Curvas, alto e refilão, pouca diferença faziam do novo carácter e maneira de proceder do Cifra, fumavam, bebiam, falavam pouco e nada lhes interessava.

O Curvas, alto e refilão, a maior parte das vezes, andava nú, ou então só com uns restos de calcões, mesmo rotos, e a medalha, cruz de guerra, pendurada neles, a caminhar pelo dormitório, e quando o questionavam dizia:
- Vai chatear a tua avó!. E cala-te senão és capaz de levar com uma granada no focinho!.

Andava tão “despassarado”, que uma vez, até deixou ir a medalha cruz de guerra, agarrada aos restos dos calções para a lavadeira, e chamava filho da p... a toda a gente, pois tinhamlhe roubado a medalha, e qual foi o seu espanto, quando a lavadeira, no final da semana, lhe vem entregar a roupa, e com a medalha na mão, lhe diz mais ou menos isto:
- Isto parece patacão, mas não é, deve ser patacão do Portugal, tem uma fita agarrada, se tú não queres, eu coloca na orelha, tem manga de ronco!.

E exemplificava, com a medalha encostada na orelha, gravura em cima, e como tinha umas argolas no pescoço, até nem lhe ficava nada mal!.

Por vezes, quando com eles falavam, tinham que repetir as palavras, pois o seu pensamento estava longe. Tirando o comandante, não lhes interessava que fosse oficial, sargento ou qualquer outra pessoa, eles não falavam, nem saudavam.
Era melhor assim, pois no contrário, havia conflito.

Era muito tempo dentro do arame farpado, andavam desesperados.
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Nota do editor:

Vd. último poste da série de 26 de Fevereiro de 2013 > Guiné 63/74 - P11156: Do Ninho D'Águia até África (54): Ano e meio já lá vai (Tony Borié)

2 comentários:

Anónimo disse...

No fundo passámos todos pelo mesmo, mas enfim ainda cá estamos e com tantas histórias para contar, embora ninguém a não sermos nós combatentes, compreenda o que foi sofrer. Passou-se está passado, e prá frente é que é o caminho.Abraços Tony.
Veríssimo Ferreira

Rogerio Cardoso disse...

Amigo Tony
Mais uma vez consegues sensibelizar a malta, pois é um dom que nasceu contigo. Continua a escrever, pois o que transmites tem qualidade e faz-nos recordar com muita nostalgia, tudo o que passamos, uns de uma maneira, outros de outra, mas com muito sacrificio, que só a nossa juventude consegui-o superar.
Um abraço, amigo Tony, extenssivo á familia.
Roger-Cart.643-AGUIAS NEGRAS