quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20641: Historiografia da presença portuguesa em África (199): Relatório da Província da Guiné Portuguesa, 1888-1889, pelo Governador Interino Joaquim da Graça Correia e Lança (2) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Fevereiro de 2019:

Queridos amigos,
Não é despiciendo voltar a sublinhar que este punhado de relatórios que tive a oportunidade de consultar na Biblioteca da Sociedade de Geografia, datados dos primeiros anos da autonomização da Guiné, elucidam o acervo de problemas que irão despoletar a ferro e fogo na transição do século.
O reino está sem dinheiro, vive-se em crise financeira, o constitucionalismo monárquico desengonça-se, a Guiné parece irrelevante. E no entanto estes relatórios tecem diagnósticos, há propostas de sugestões, não se esconde que a tropa é indisciplinada e constituída por degradados, não há Marinha, não há equipamentos, tudo parece que se anda a engonhar e a dançar à beira do abismo. E depois da guerra do Forreá e da revolta do Geba vão eclodir insurreições em série, estão veladamente referidas nestes documentos, que devem ter sido arquivados com sucessivos despachos resignados.

Um abraço do
Mário


Relatório da Província da Guiné Portuguesa, 1888-1889,
pelo Governador Interino Joaquim da Graça Correia e Lança (2)

Beja Santos

Conselheiro Joaquim da Graça Correia e Lança

O conjunto dos primeiros relatórios enviados pelos governadores da Guiné para o Ministro do Ultramar e da Marinha são documentos indispensáveis para conhecer opiniões, reflexões e até sugestões de personalidades que se revelam de preparações culturais bastantes diferenciadas. Não escondem as dificuldades, as guerras entre os Fulas, as questões da agricultura, a degradação das instalações e dos equipamentos, as tremendas carências nos transportes, a falta de infraestruturas rodoviárias e portuárias. O primeiro documento importante saiu do punho de Pedro Inácio de Gouveia, já aqui foi publicado. Correia e Lança apresenta-se com uma enorme humildade, homenageia os governadores que o precederam, sem esconder o muito pouco tempo que por lá permaneceram.

Correia e Lança já discreteou sobre as guerras do Forreá, opinou sobre a questão agrícola, tem ideias seguras sobre o desenvolvimento da colónia. E prossegue o seu relatório dando a saber o estado das finanças.
Havendo um decréscimo da receita, em virtude da decadência económica atrás mencionada, exprime o seguinte ponto de vista, com um travo de humor negro e vitríolo:
“Para ser um bom empregado da Fazenda não basta ser honrado e sério. A honra e a seriedade são atributos de todo o homem digno. Para se ser um bom empregado em qualquer ramo do serviço público é preciso ter inteligência, instrução, zelo e actividade. E esses predicados que faltam muito na Guiné. Um dos mais queridos sistemas burocráticos desta Província é deixar para amanhã o que muito bem se podia fazer hoje. A parte da administração da Fazenda, em que o desleixo e incúria constituem um cúmulo, é o lançamento e a cobrança das contribuições directas. A Repartição Superior da Fazenda, que tem a superintendência em todo o serviço financeiro, declina a responsabilidade dele para os administradores de concelho; estes lançam-na sobre os escrivães da Fazenda, que por sua vez declaram não ter culpa nenhuma, e ser todo o Governo que lhes não paga convenientemente”.

Dá seguidamente o número impressionante da receita que ficou por cobrar em contribuições sobre o aluguer de habitações, predial e industrial, dizendo que uma dívida de tal ordem, numa Província que luta com tantas dificuldades é a prova do que acima proferira, e sentencia: “Reputo hoje como incobráveis dois terços de tal quantia”.
E continua do seguinte modo:
“Nos grandes centros civilizados, os povos constituídos em sociedades cultas, o aumento de impostos pode levantar protestos, mas produz receita; nas colónias como a Guiné, o aumento de tributos, a elevação exagerada da pauta não levanta protestos mas também não produz receita. Produz este simples efeito: a dispersão da colónia comercial, o aniquilamento da agricultura e a ruína da Guiné”. Como o défice orçamental da Província reclama algumas providências financeiras, endereça ao ministro a seguinte proposta: “Não devendo dificultar-se a entrada de mercadorias porque é da sua entrada fácil que pode resultar o aumento da sua circulação, deve suprimir-se o imposto para a importação. Mas devendo compensar de qualquer modo a perda da receita proveniente dessa medida, é à exportação que deve pedir-se essa compensação. O imposto de 10% sobre a exportação não é exagerado”.

Debruça-se agora sobre a questão política, pretende pronunciar-se sobre o mosaico étnico, quem é quem na colónia: “Estudada que seja uma colónia sob o ponto de vista da sua riqueza própria e adquirível, deve procurar saber-se em que mãos se acham essas riquezas para que se possa fixar a fórmula da sua exploração. Uma tribo existe na Guiné que é menos conhecida, os Bijagós, acerca da qual entendi alargar este trabalho”.
E lança-se minuciosamente, com estatísticas da população e tudo, a descrever a região do arquipélago, passando depois para as outras etnias e demora-se sobre os acontecimentos do Forreá:
“Desde que os Beafadas foram expulsos do Forreá as lutas multiplicaram-se e o Rio Grande decaiu tanto que hoje não pode decair mais. De 53 feitorias só restam 3! Da liberdade dada ao Forreá pela expulsão dos Beafadas, uma raça essencialmente da Guiné Portuguesa, só resultou a sujeição daquele território a um régulo estranho à nossa Província e de uma raça que ainda é mais estranha”. E neste ponto o seu relatório detém-se sobre os Fulas-Pretos e Mussá Muló e refere-se à revolta da Geba, contida por Francisco Marques Geraldes. Vê-se que Correia e Lança estudou com rigor o arquipélago dos Bijagós e conhece a ilha de Bissau, a quem dá muita importância não só pela sua área como pelo seu valor agrícola, e queixa-se: “É vergonha confessar que desde há séculos a nossa acção se não estende além dos muros que circundam a povoação”. A tecla dos Bijagós é constante, e profetiza: “Eu entendo que a parte mais rica da Província é o arquipélago dos Bijagós. Explorem-se estas extensas e numerosas ilhas e a prosperidade da Guiné surgirá”.

O último capítulo do seu relatório centra-se na questão administrativa. É terminante sobre a sua organização, escrevendo o seguinte: “A anacrónica instituição dos presídios, que fizeram o seu tempo, deve acabar de vez”. Propõe seis residências, divisão praticada no Congo, que ele acha bastante conveniente para a Guiné, em vez dos quatro concelhos de Bolama, Bolola, Bissau e Cacheu. Como era da praxe, expõe a situação nas áreas da instrução pública, imprensa nacional, saúde, obras públicas, serviços dos correios, administração da Fazenda, justiça, eclesiástica, militar e da Marinha. Não se coíbe de dizer que a Província carece de obras importantes, tais como: construção de edifícios para alfândega e hospitais em Cacheu e Bissau, saneamentos, pontes, cais, fortificações, era imperativo a ocupação de Cacine, ao deus-dará.
Não perde oportunidade para se pronunciar sobre a questão eclesiástica e a missionação:  
“A Guiné, que tem para opor à marcha dos muçulmanos os povos fetichistas do litoral, precisa com urgência do provimento de todos os cargos eclesiásticos. O elemento mais preponderante para a resolução desta grave questão é o religioso. Desenvolvam-se as missões na Guiné; transforme-se o vicariato geral numa prelazia, como a de Moçambique, ou ainda como a que vigora em São Tomé e Príncipe, e ter-se-á dado um passo importante para a sua civilização. Nesta Província está tudo por fazer”.
Também não quer ilusões sobre a questão da administração militar:  
“Da qualidade das praças que compõem o efectivo dos corpos da guarnição da Província nada tenho a acrescentar ao que têm dito os meus ilustres antecessores. Na sua maioria, são provenientes das companhias de correcção e dos depósitos disciplinares do reino, quando não vêm das prisões das colónias. A força pública, que deve ser a garantia da segurança e da ordem, é constituída pelo elemento indisciplinado do reino e das diversas províncias ultramarinas. Cabo Verde, São Tomé e Angola, quando têm esgotados os meios correccionais, socorrem-se à última medida de segurança: despejam para a Guiné a escuma da sua tropa”.
E apresenta uma proposta:  
“Nas guerras a valer da Guiné, a prática tem demonstrado que a força regular, por mais numerosa que seja, precisa de ser coadjuvada por forças auxiliares indígenas muitíssimo mais numerosas. O gentio grumete, com uma disposição extraordinária e entusiástica para o serviço militar, irregular porque tem horror ao assentamento de praça, podia formar um contingente numeroso para se organizarem dois batalhões de segunda linha”.

Na hora da conclusão recapitula a necessidade do impulso à agricultura e ao comércio e despede-se do seguinte modo:
“A Guiné reclama imperiosamente a atenção de Vossa Excelência. A questão política tem de ser resolvida com a máxima urgência. Da falta de um plano e de uma acção governativa, enérgica e repressiva, apoiada fortemente pelo governo da metrópole, podem resultar desastres assombrosos. Tenho estudado durante os dois anos que estou na Província a índole dos diferentes povos que a habitam; e pela sua origem, pela sua história, pelas suas ambições, e sobretudo pelo seu estado social, podem num futuro muito próximo causar sérios cuidados e embaraços não só ao Governo da Província mas principalmente ao Governo da metrópole e ao país. A raça Fula, que podia estar aniquilada há 10 anos, tem progredido por tal forma, é tão contrária aos nossos interesses e à nossa civilização, que é urgentíssimo tomar uma medida rápida e enérgica a seu respeito”.
Não esconde que em política era urgentíssimo captar a simpatia das raças fetichistas do litoral, incluindo as raças Mandinga e Beafada e contrariar as marchas dos Fulas. Apela que se mande com urgência para a Província lanchas canhoneiras e lanchas a vapor, pois sem material naval a vapor não era possível governar a Guiné.

Edifício bolamense com seis arcos de volta perfeita que definem um alpendre alongado de acesso às habitações. 
Fotografia de Francisco Nogueira no livro “Bijagós, Património Arquitetónico”, Tinta-da-China, 2016, com a devida vénia.
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Nota do editor

Último poste da série de 5 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20624: Historiografia da presença portuguesa em África (198): Relatório da Província da Guiné Portuguesa, 1888-1889, pelo Governador Interino Joaquim da Graça Correia e Lança (1) (Mário Beja Santos)

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