segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Guiné 61/74 - P20639: Notas de leitura (1263): O nosso Guiné de Cabo Verde: as metamorfoses de um espaço (séculos XVI-XVII), por José da Silva Horta (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2017:

Queridos amigos,
Creio ter chegado à altura de procurar dar alguma precisão ao conceito do que era a Guiné de Cabo Verde nos primeiros séculos de viagens e presença portuguesa luso-cabo-verdiana na costa e algum sertão.
Esta investigação do professor Silva Horta ilumina o que os viajantes e mercadores pensavam e sentiam, nem sempre em conformidade com as determinações da Coroa. Em concreto, partia-se de Santiago em direção ao rio Senegal e descia-se a costa até pontos indeterminados do que se convencionava chamar Serra Leoa. Aqui se faz comércio, aqui as autoridades africanas permitiam livre circulação a judeus portugueses que depois se fixaram em território que é hoje o Senegal, aos poucos descobriu-se a conveniência de Cacheu para o tráfico de escravos, tal como se veio a operar com a aquiescência dos reinos africanos, useiros e vezeiros nestes comércio, de há muito que o continente africano comerciava escravos.

Um abraço do
Mário


O nosso Guiné de Cabo Verde: as metamorfoses de um espaço (séculos XVI-XVII)

Beja Santos

Numa comunicação de José da Silva Horta, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, intitulada “O nosso Guiné: representações luso-africanas do espaço guineense (séculos XVI-XVII)” e publicada nas Atas do Congresso Internacional O Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades (Lisboa, 2-5 de Novembro de 2005, FCSH da Universidade Nova de Lisboa, organizado pelo Centro de Estudos de História de Além-Mar e pelo Instituto de Investigação Científica Tropical), Instituto de Investigação Científica Tropical e Centro de História de Além-Mar, 2009, penso ter encontrado uma explicação clara sobre a nossa presença na Guiné e quais as representações dos viajantes que percorreram tal espaço.

Mapa retirado de Landlords And Strangers: Ecology, Society, And Trade In Western Africa, 1000-1630 (African States and Societies in History)

Primeiro, o significado de Guiné do Cabo Verde. A África Atlântica entre o rio Senegal e a Serra Leoa (limite difuso, diga-se desde já) era conhecida por Guiné do Cabo Verde, Rios de Guiné do Cabo Verde, Rios de Guiné ou Rios do Cabo Verde. Não esquecer que diferentes autores localizavam a região como Terra dos Negros ou Etiópia Menor ou Etiópia Inferior, com base nas viagens junto ao litoral africano, o rio Senegal seria a transição dos “pardos” para os negros. O historiador lembra que na carta afonsina de 4 de Maio de 1481 fala-se explicitamente em Gujnea a propósito do comércio da região, doado ao príncipe D. João. Guiné era um conceito antigo, correspondendo a diferentes e por vezes contrastantes perceções do espaço africano, nem sempre era claro o que se designava por área navegável, qual o espaço frequentado por portugueses e seus descendentes luso-africanos. No entanto este espaço de presença estava em estreita ligação com o arquipélago cabo-verdiano. Basta pensar em André Álvares de Almada que escreveu no seu Tratado Breve de 1594: “E pode este homem atravessar todo o sertão do nosso Guiné, de quaisquer negros que seja”. O espaço em causa destina-se às práticas económicas, políticas e religiosas. Projeta-se um sentimento de posse e fala-se com naturalidade no nosso Guiné.

Segundo, os limites da Serra Leoa são uma nebulosa. D. Afonso V não estava interessado em que o comércio da costa da Guiné chegasse à feitoria portuguesa de Arguim, era claro que os moradores de Santiago só podiam comerciar para Sul do rio Senegal. Comerciar na Serra Leoa era percorrer uma área costeira que começava em frente a Conacri e que tinha como sua máxima fronteira a Sul o cabo do Monte. A documentação existente confirma que os cabo-verdianos reivindicavam direitos sobre a Serra Leoa, a Coroa achava assunto de discussão. Seja como for, o arquipélago de Cabo Verde, a Guiné e a Serra Leoa podiam ser encaradas como espaço económico mas eram áreas geográficas profundamente independentes. Autores como Francisco de Lemos Coelho deixam claro que se partia de Santiago e o primeiro objetivo era o rio Senegal, onde também estão presentes franceses, holandeses e ingleses, pelo menos a partir de meados do século XVI. O que ressalta é que o rio Senegal durante este período continuou na mira dos interesses da Coroa.

Terceiro, se é compreensível o comprimento da Costa percorrida até à Serra Leoa, é muito discutível a interiorização da presença portuguesa. Uma coisa são as descrições de quem percorreu o sertão, outra a ocupação efetiva, comprovadamente precária. Como observa o autor, a perceção do espaço organiza-se da costa para o interior, profundamente marcada por aquilo que era o espaço fluvial e terrestre que os mercadores portugueses e luso-africanos poderiam percorrer. Lembra-nos o que escreveram sobre essas digressões no sertão André Álvares de Almada, André Donelha, Lemos Coelho, o padre Baltazar Barreira, e o missionário Manuel Álvares, todos tinham uma noção do reino dos Mandingas do rio acima do Casamansa dos diferentes reinos como os Bagas ou os Fulas, o aspeto mais curioso, observa igualmente José da Silva Horta é que estes mercadores e viajantes não encaravam este espaço como um mosaico étnico mas como uma confluência de diferentes poderes. Os portugueses nunca dominaram o comércio oeste-africano, havia o reconhecimento tácito da supremacia do imperador do Mali sobre a Guiné. Valentim Fernandes foi um desses mercadores que esteve em grande contacto com os comerciantes Mandingas e com o mundo mandé desde a segunda metade do século XV. Dito de outro modo, quando se falava da Guiné do Cabo Verde não havia ilusões sobre a esfera de política de Mandinga ou mandé. O nosso Guiné era portanto a alguma influência mercantil de “nossos portugueses”, na expressão de Almada, expressão de um desejo nunca realizado: um controlo seguro do espaço económico, onde, como se sabe até circulavam livremente judeus de origem portuguesa no Grão Fulo ou Fuuta Tooro (na bacia do médio rio Senegal). João Ferreira, natural do Crato, chamado pelos negros o Ganagoga atravessava todo o sertão do nosso Guiné.

Imagem já utilizada no blogue a propósito da minha recensão sobre o Tratado Breve dos Rios da Guiné, de André Álvares de Almada

Estamos perante uma representação de um território humano, um território que não se define pela extensão do espaço físico mas pela extensão do domínio sobre os homens. Os comerciantes e viajantes não tinham quaisquer ilusões sobre os impérios, os farins, a importância do Mandimansa, tido como o monarca de toda a Etiópia, Donelha escreve expressamente: “Este grande rei, o que eu sei é que lhe dão obediência os Fulos, Jalofos, Berbecins, Mandingas e todos os mais reis e senhores que há até além da Serra Leoa". Os Mandingadas foram percecionados como o limite interior da Guiné do Cabo Verde, nada mais sendo representado para além deles. E diz o autor: “Do ponto de vista dos agentes mercantis do mundo cabo-verdiano guineense, os espaços dominados pelos Mandingas ou outros povos mandé, constituíam o limite da cadeia de comércio que começava na costa atlântica. Neste contexto sertanejo, os comerciantes mandé eram simultaneamente os últimos parceiros comerciais e os rivais que lhes vedavam o caminho”. E o autor conclui: “Afinal, a extensão do nosso Guiné do Cabo Verde dependia da vontade dos senhores africanos da terra e do modo como organizavam o espaço, modo a que os autores que se analisaram foram sensíveis. Esta sensibilidade foi, afinal, o resultado de uma cultura luso-africana ou de formas de pensamento mestiço que emerge noutros planos das representações que as descrições de matéria guineense veiculam, como seja a forma de incorporação na escrita da memória histórica oral da região”.
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20628: Notas de leitura (1262): Missão cumprida… e a que vamos cumprindo, história do BCAV 490 em verso, por Santos Andrade (44) (Mário Beja Santos)

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