sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14978: Notas de leitura (744): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Agosto de 2014:

Queridos amigos,
Acabou-se a narrativa de Calambata, romance memorável de João de Melo onde encontramos a tragédia da guerra e as facetas mais boçais do colonialismo. Há para ali aerogramas de intenso lirismo e descrições onde a senhora da gadanha triunfa em majestade. E despeço-me com uma citação:
- Prometes que ficas aqui à minha espera? O ferido disse vagamente que sim com a cabeça, nada era já importante; se algo de importante houvesse na vida, era estar-se vivo e certo de se ser ainda o único dono dela. O furriel desandou a correr, mas parou a dois metros do sítio onde o Gonçalves se afundava sem remédio. Como um barco, pensou, como um barco a ser devorado pela grande e definitiva tormenta. Recebeu ainda o seu olhar de animal abatido no último instante, recordou que tinha mulher e três filhos e quis fugir dali. Encostou a cabeça ao peito dele. Não corria o rio sonoro de um coração, corriam águas mansas; deslizavam cinzas e pequenos animais de agonia. O furriel descarregou os dois punhos sobre o peito do moribundo, ouviu-se o som das costelas partidas com a pancada, e nada mais, a não ser os olhos, perdurou no último sopro da respiração.
Estou a escrever-vos esta citação e comovo-me pelos meus mortos, os mortos de todos nós, não só no norte de Angola, mas naquele território de palmares, bolanhas, rias e florestas-galeria, a nossa inconfundível e transcendente Guiné.

Um abraço do
Mário


Autópsia de Um Mar de Ruínas (4), por João de Melo

Beja Santos

João de Melo foi furriel enfermeiro, dividiu a sua comissão num destacamento perto de S. Salvador, norte de Angola, entre o apoio direto aos militares e os cuidados com os civis de duas sanzalas de Calambata. Tornou-se um bom observador social, mostra-se esclarecido quanto às relações de domínio entre colonizador e o colonizado, entre a polícia branca e o soba, conhece as doenças tropicais, vê a miséria, pressente nas entrelinhas a pressão dos guerrilheiros junto das populações. A todos os títulos, “Autópsia de Um Mar de Ruínas” é um livro referencial, há um cuidado inexcedível em registar os falares nativos, os usos e costumes, é magistral quando capta a atmosfera de repressão.

Vem aí a caminho uma coluna que é fundamental para a economia de quem vive da agricultura do café, e o autor dá-nos uma impressiva água-forte:
“A polícia branca de S. Salvador vinha a escoltar essa coluna, com os seus jipões azuis, descapotados e sujos de lama, trazendo homens fardados que apontavam as armas no capim.
Os homens tinham-se reunido no centro da sanzala, de braços cruzados no peito, na conversa ou no difícil silêncio; uns e outros mostravam apreensão por esse dia que chegava finalmente. Vender café e receber dinheiro de volta não podia meter cerimónia? Vestiam fatos puídos e remendados, esquecidos muito tempo no caixote das arrumações. Soba Mussunda usou mesmo uma gravata muito velha, talvez quase da sua idade, e o chapéu cinzento dos distantes tempos de contratado.
Madrugada ainda, puseram os sacos do lado de fora da cubata, emparedando-os em pilhas de diversas alturas que, em alguns casos, chegavam mesmo ao zinco ou atingiam a casa a todo o comprimento. Depois, o sol veio subindo nos morros. Bateu no zinco das casas com a bola de fogo que alumiava e ia deslizando vagarosamente. Também as senhoras andavam num remoinho, falando, sorrindo, imitando a felicidade da vida. Houve quem pusesse um rádio a tocar alto as músicas congolesas – canções batucadas e sacudidas que vinham mexer no corpo das pessoas e obrigavam a abanar as ancas e a gingar, gingar sempre (…).
Entrou, primeiro, um jipe da polícia. Logo de seguida, um camião vermelho, de três rodados. Deram a volta ao largo e foram parar em frente da casa do chefe Valentim que esperava à porta, de mãos na barriga. O povo observou os carros a enfileirar cuidadosamente, uns ao lado dos outros, os jipes intercalados com os camiões cobertos pelas lonas que pendiam dos taipais. Lá dentro, centenas de garrafas tilintavam, e os homens sorriam entre si, satisfeitos. As mulheres, não; compreendera imediatamente que o propósito desses brancos era arrancar mais um dia de negócio, levando de volta o dinheiro que traziam, recuperado das monstruosas bebedeiras”.

Começa o cerimonial da apreciação. Todos deram pela chegada do chefe da polícia secreta, limitou-se ao cumprimento de continência de Valentim. Os comentários dos comerciantes brancos são de puro desdém. Começam as negociações para comprar o café, os comerciantes oferecem quatro angolares por cada quilo, os africanos contrapropõem com seis, os brancos não saem dos quatro. Um deles comenta:
”E quem não estiver interessado, guarde o café em casa ou então junte-o, espalhe-o pelo quintal fora, misture-o com a estrumeira que lá tem”.
A contraproposta desce para cinco angolares. O árbitro será o polícia Valentim:
“Quem quiser vender por quatro e meio, vende; quem não quiser, que se lixe. Toca a trazer o café, gente. E eles obedeceram. Vencidos e calados”.

Seguir-se-á a orgia do álcool e os vários negócios em que os agricultores deixaram o seu precioso dinheiro. E regressamos à guerra, dias de marcha através dos pântanos. O cronista chama-se Renato, alguém que teme morrer, invoca a mãe, olha assombrado para a vastidão do território e o seu espetáculo de formas:
“Calambata é este promontório suspenso sobre formas pardas, ao qual trepamos dois caminhos em S e onde as viaturas derrapam na época das chuvas. Por ali passaram todos os mortos: passou a morte de Júlia, a mulatinha do sorriso verde, passaram as viaturas sinistradas pelas minas, os rapazes adormecidos, tapados com a lona mortuária. Era por ali que se regressava sempre, depois de todas as coisas terem acontecido muito longe, nos caminhos por onde não transita a memória, nem o esquecimento”.
Renato olha à volta, vê bambus, hortas de milho e mandioca, os lastros de abacaxi e das bananeiras, os canaviais de uma sanzala. É um momento patético. E de novo o escritor volta ao aerograma e aos chilreios do amor:
“À da Canda, amor, aos morros do Seixel vai demoradamente fixar-se a amargura das noites de guerra. Calambata é um morto que não morre mas adormece. Aqui o tens vivo, as mãos fechadas sobre a sua metralhadora. Pior do que estar de sentinela, pior do que tudo são as chamas ao longe, os olhos que me vigiam. Sente-se um homem espiado pelas próprias árvores, ouvindo carrilhões impossíveis na calada da noite (…). É o que escrevo aqui, sentado na noite. No sítio onde estou, amor. De frente para os morros que cercam o Calambata cercada de guerra pelo Norte. A pensar, amor, que há em mim um morto que não morre”.

E temos uma nova coluna em movimento, até que se ouve um estrondo, um Unimog explodira.  
“Voavam ferros e pneus e peças de motor: caíam corpos decrépitos, e uma fumarola negra, de um negro muito denso, abria-se numa espiral. Do capim em chamas, subiu logo o bafo de dezenas de metralhadoras”.
E fica-nos a ilusão do que o narrador morreu simbolicamente em nome de todas aquelas mortes que lhe tinham passado pelos olhos e ferido a alma. É uma morte universal com que o romancista trava combate:
“Amor, eu não sei se dói. Caiu-me a arma das mãos. O meu último pulmão enche-se de uma agonia de corais, como quando os navios encalham nas rochas. Sei que viram os médicos, os helicópteros: alguém chamará pelo meu nome, abre os olhos, abre os olhos, respira fundo, respira fundo”.

E o romance de João de Melo acaba como um pesadelo, os soldados andam à procura de Romeu, o agente da guerrilha, empurram e pontapeiam, tudo revistam. O soba apercebe-se que se avizinha uma tragédia, se Romeu não aparecer haverá fuzilamentos, e então oferece a sua vida:
“Respondo sempre na minha gente. Deixa viver esses homens, nosso arferes. Grande favor…”.
E então Romeu surge de uma sombra, explica que esteve no mato a montar armadilha, o alferes está fora de si, bate-lhe desalmadamente. Romeu é levado para a viatura, nunca mais voltará a Calambata.

João de Melo burilou um universo concentracionário onde se movem militares e civis num ponto do norte de Angola. Tragédia, agonia, o levantamento do homem, e aquele furriel enfermeiro em que o romancista se vêm ao espelho zela, solícito, tem um pé na guerra, outro na construção do desenvolvimento. Assombra a cultura registada, a perceção de que toda aquela beleza não pode iludir o mar de ruínas deixado pelo colonialismo.
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Nota do editor

Postes da série de:

27 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14934: Notas de leitura (741): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (1) (Mário Beja Santos)

31 de julho de 2015 > Guiné 63/74 - P14954: Notas de leitura (742): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (2) (Mário Beja Santos)
e
3 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14963: Notas de leitura (743): “Autópsia de um Mar de Ruínas”, de João de Melo (3) (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Obrigado BS.

Aprecio sobremaneira o luisgracaecamaradas, porque é aqui, na Guiné e ao vivo, em que sem sofismas, nem ideologias nem romantismos nem meias verdades nem meias mentiras, se relata discute e se «faz» guerra com toda a pluralidade de pontos de vista.

A pior coisa para falsear a história, são os romantismos e as ideologias

E também aqui no João Melo, aquela história de caserna do comerciante colonialista «ladrão do preto», que «embebeda o preto», que «explora o preto» e «engana o preto»...história recalcada sobretudo no caso de Angola (internacionalmente era Angola que contava)entre os «milicianos» «progressistas», «politizados» que embarcavam para as colónias durante a guerra, com esse disco posto a girar antes do embarque em Lisboa.

O comerciante, na Guiné ou em Angola, mais do que o padre, do que o chefe de posto, do que o militar ou funcionário, era o «colonialista» mais respeitado e compreendido e mesmo acarinhado e cativado pelas sanzalas e tabancas e muceques.

É difícil entender em dois anos de arame farpado, mesmo a escritores, que era mais fácil o merceeiro do rol nas nossas aldeias enrolar os nossos pais «sem letras», do que em Angola «enganar o preto».

Calambata e a feira do Bandim, conheci eu, e até o Pintozinho.

Nunca se devia colonizar ninguém, isso é que é, mas neste caso colonial, o anti-colonialismo primário, até deixava os africanos boquiabertos.

Mesmo eu, cheguei a pensar durante muito tempo que era fácil «enganar o preto».

Até que...tive a minha própria guerra e compreendi de outra maneira com quantos paus se faz uma canoa.

Como gostei de Calambata, Farim, Bandim e Luanda e de quem lá vivia e com quem convivi.

Uma das coisas que os guineenses tinham saudades após a independência, era da falta dos comerciantes coloniais.

Cumprimentos.